Publicada em 5 de novembro e 1997
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
RIO – Hoje, quando se comemora o Dia Nacional da Cultura, uma nova geração
de estudantes de artes, nascida na Favela de Vigário Geral, celebra a sua
primeira exposição pública. A Casa da Paz – organização não-governamental
(ONG) criada após a chacina de 21 pessoas em agosto de 1993 – inaugura uma
mostra de trabalhos feitos pelos jovens que têm como fonte de inspiração o
artista Di Cavalcanti. Também hoje será inaugurada a Biblioteca Ziraldo, com
a presença do desenhista.
Cerca de 70 jovens e crianças entre 7 e 27 anos participam das atividades da
Oficina de Artes da Casa da Paz. Liderados pelo artista plástico Valmir
Vale, de 28 anos, os moradores de Vigário Geral querem criar uma nova imagem
da favela. E a arte foi o meio encontrado para dar essa nova roupagem ao
cenário ainda marcado pela chacina.
“A idéia é colorir toda Vigário Geral”, afirmou Vale, que pretende não só
ensinar os seus alunos a conquistar um novo ofício, mas dar a eles
oportunidade de refletir sobre a situação em que vivem. “Eles vão chocar a
sociedade porque ninguém espera que esse movimento de resistência cultural
esteja ocorrendo dentro de uma favela”, ressaltou, orgulhoso.
Restauração – Os novos pintores deverão participar da restauração de
Vigário Geral. Em busca de patrocínio para o projeto, a Casa da Paz pretende
pintar as fachadas das casas de alvenaria com obras de artistas plásticos,
sobretudo de Di Cavalcanti. Outra meta é, para o próximo ano, realizar uma
grafitagem nos 600 metros de muro de uma linha de trem que fica na entrada
da favela.
O professor de grafite Alessandro Rabelo, de 25 anos, quer aproveitar o
centenário do bairro de Vigário Geral para ilustrar no muro a história
local. Grafiteiros de São Paulo e Belo Horizonte foram convidados para
integrar o grupo carioca. Na oficina, jovens aprendem que o grafite pode
muito bem substituir a pichação na tarefa de embelezar a favela. “Com o
grafite, o jovem não é reprimido pela polícia”, acrescentou Rabelo.
Corredor da vida – “Vigário Geral pode se tornar um importante corredor
para a arte, deixando de ser o corredor da morte e das drogas”, afirmou o
artista plástico Vale. O curso de artes começou há poucas semanas e
conseguiu atrair a curiosidade dos aprendizes da favela. Atualmente, às
terças e quintas-feiras, pela manhã e tarde, a Oficina de Artes
transforma-se em um autêntico ateliê onde a idéia é deixar fluir a
imaginação.
Para a estudante Raquel Motta, de 13 anos, a nova atividade está lhe dando
novas esperanças. “Antes, em casa, fazia só desenhos bobos, mas agora estou
conseguindo aperfeiçoar meus traços”, explicou. Sua empolgação é tanta que
já pretende, no futuro, prestar vestibular para a Escola de Belas Artes.
“Estou feliz em encontrar um bom caminho para um futuro que eu mesma estou
construindo”, disse. O entusiasmo dos estudantes contagia a todos. Tanto que
muitos já freqüentam cursos fora da favela, como os de restauração
promovidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
Di Cavalcanti foi escolhido como fonte inspiradora por causa da
identificação de sua obra com a vida dos moradores do local. Segundo Valmir
Vale, o pintor brasileiro buscava nas favelas material para retratar a vida
no Rio.
“Mas era numa época diferente, em que o Rio não se tinha tornado a rota do
tráfico internacional”, ressaltou. “Hoje, 99% dos moradores de uma favela
são trabalhadores e querem, assim como Di, viver alegremente”, afirmou. Para
Vale, os moradores querem reconquistar essa “magia” que sempre fez parte da
história – hoje manchada – da favela de Vigário Geral.
Para ele, pobreza e violência não são sinônimos, mas muitos querem fazer com
que isso seja encarado dessa forma. “Vigário Geral ficou muito marcada com a
chacina e isso é inevitável”, reconheceu Vale.
Projetos – O coordenador-geral da Casa da Paz, André Fernandes, de 26
anos, quer ampliar a participação de jovens nas atividades da ONG. Além do
curso de pintura, há oficinas de música, teatro, fotografia e informática.
Na Casa da Paz, onde oito evangélicos morreram no dia 30 de agosto de 1993,
funciona a sede da organização que busca novos espaços para abrigar os mais
de 800 alunos. A idéia é criar uma escola do pensamento, o Espaço Cultural
Paulo Freire, em homenagem ao educador.
A inauguração da Biblioteca Ziraldo, hoje, é um passo nesse caminho.
Ziraldo, o criador do Menino Maluquinho, confirmou sua presença em Vigário
Geral, a partir das 10h30. Haverá ainda a exibição de um filme sobre a vida
de Di e, em seguida, a abertura da exposição com os trabalhos dos jovens
artistas da Oficina de Artes. “Essas atividades mostram que estamos no
caminho certo, que é dar uma nova vida a Vigário Geral”, afirmou Fernandes.
Nos próximos dias, a Casa da Paz pretende levar os alunos da Oficina de
Artes para uma exposição com as pinturas de Di no centro do Rio. Atualmente,
a única forma de contato dos estudantes de artes com a obra do pintor é por
meio de gravuras e fotos em revistas e catálogos. Uma exposição dos alunos
fora da favela também está sendo estudada. Mas todos esses projetos dependem
de novos parceiros que a Casa da Paz busca. Mesmo com financiamento do
Ministério da Cultura, segundo o coordenador Fernandes, a Oficina de Artes
tem poucos recursos até mesmo para a compra de materiais, como pincéis,
tintas e telas.
Casa da Paz: Rua Antônio Mendes, 13, Vigário Geral; telefone (021)
372-9373; e-mail: casadapaz@ax.apc.org