Publicada em 2 de maio de 2004
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
BELO HORIZONTE – Como Deus ajuda quem cedo madruga, a Estrada de Ferro
Vitória a Minas sempre inicia seu dia abençoada. Bem antes de as bilheterias
abrirem, às 5 horas, os trens já estão prontos para enfrentar os 664
quilômetros que separam as capitais capixaba e mineira. Num sentido e no
outro, partirão duas composições no hoje único trem de passageiros de longo
percurso com saídas diárias do País. Serão 13 horas de uma viagem que é o
retrato do Brasil.
Trem de passageiros é coisa rara. Além do Vitória a Minas, só resta o de São
Luís, no Maranhão, a Parauapebas, no Pará, mas este corre em dias alternados
de um lugar para o outro e nunca às quartas-feiras. As duas linhas regulares
somam pouco mais de 1.500 quilômetros. Antes da era dos automóveis, os
brasileiros contavam com mais de 30 mil quilômetros de trilhos para cruzar o
País. No passado, viajar de trem dava status, simbolizava a modernidade. No
século 21, virou sinal de resistência.
O jovem maquinista Sóstenes Sobrinho, de 31 anos, sabe o que isso quer
dizer. Isolado na locomotiva à frente de nove carros – há quem chame de
vagões, que são para cargas –, ele conduz milhares de histórias de
passageiros que, provavelmente, nunca tomará conhecimento. Mas a
responsabilidade é das maiores. São 7h32 da quarta-feira, soa o apito e com
dois minutos de atraso a composição parte de Belo Horizonte rumo a Vitória.
Seu irmão Rogério é, por coincidência de escala, o chefe do trem. É ele quem
lida com as pessoas, vê se todos embarcam e desembarcam direitinho, orienta
e fiscaliza o bom atendimento ao público.
Embarcada na classe econômica, vai a família de João Antônio da Silva, de 39
anos, plantador de café. Mineiro, que vivia em Alto Alegre dos Parecis (RO),
está a caminho de Central de Minas, onde ficará de favor na casa do pai.
Segue acompanhado da mulher Ana Maria Furtado da Silva, de 34, e de três
filhos, Prosperino, de 12, Raquel, de 11, e Rafael, de 8, os quatro pela
primeira vez num trem. O casal veio com um objetivo: ter esperanças de que a
outra filha, Regina, de 14, se recupere de um tumor reincidente no nariz e
na garganta.
Sem dinheiro para pagar os R$ 5 mil do tratamento, deixaram a filha com a
tia em Belo Horizonte para ser atendida pelo Sistema Único de Saúde. Em
Rondônia, teriam de amargar uma fila enorme do SUS. Em Minas, já vão
economizar. “Da nossa casa até Porto Velho, a gente pagava R$ 87 para levar
a Regina de ônibus no tratamento. Aqui vamos ficar longe dela, mas ela vai
ter mais chances”, diz a mãe, um tanto resignada. Os filhos, entre tímidos e
curiosos, abriam bem os olhos para não perder nada. “É um trem bom. Achava
que era meio zoerento (bagunçado), nem era tão grande assim”, diz
Prosperino, que não descuida do violão caipira do pai, dentro de uma das 11
sacolas e 5 malas da mudança.
Do luxo ao pó – O trem de passageiros conduzido por Sobrinho nesse dia é
composto da locomotiva azul B36, de um grupo gerador e carro comando, de
dois carros da classe executiva e sete da econômica, mais uma
lanchonete-vagão separando os ricos dos pobres. Para ir de Belo Horizonte a
Vitória, quem pode paga R$ 41,10 para ter direito a poltrona semileito,
ar-condicionado e serviço de bordo. Quem precisa economizar desembolsa R$
26,90 para viajar em poltronas comerciais e enfrentar janelas que quando
abertas recebem o pó do minério de ferro.
As locomotivas perderam o glamour do passado, mas se tornaram mais seguras.
Os maquinistas de hoje devem ser profissionais técnicos, basicamente. A
maior preocupação deles é não deixar o trem ultrapassar os 66,7 quilômetros
por hora. Se isso ocorrer, o sistema dispara um alerta e o operador tem de
frear a composição. Se demorar demais, o trem começa a frear automaticamente.
O “pedal do homem morto”, que o maquinista tinha de ficar pisando para
indicar que estava acordado de verdade, não funciona mais – sim, havia
aqueles que colocavam pedras no lugar. Hoje, há o alertor, um controle
eletrônico que emite sinais se num intervalo de dois minutos o maquinista
não der um toque no painel. Pode até parar a composição.
“Nosso atraso já é de 30 minutos”, informa Sobrinho, que sorri com a
informação, enquanto espera o embarque de passageiros na estação de Dois
Irmãos, às 9h32. No fundo, ele sabe que isso já está de bom tamanho. Uma
hora antes, teve de aguardar parado por alguns minutos a manobra de um trem
carregado de minério de ferro na mesma linha.
Carga pesada – O Vitória a Minas é, na verdade, uma espécie de brinde da
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) à população que vive ao redor de suas 25
estações. A empresa não ganha dinheiro com a operação, mas sim no transporte
de cargas. No ano passado, ela carregou 119.644.702 toneladas de materiais,
sobretudo minério de ferro, aço, carvão mineral, soja, coque e eucalipto.
Carga humana, gente mesmo, 100.016 toneladas.
O vaivém de cargas não pára o ano inteiro. Já o de pessoas varia muito. Na
quarta-feira, 913 pessoas embarcaram no sentido Minas-Vitória. É menos de um
terço da média diária. Por ano, são transportados 1,2 milhão de passageiros
nessa linha – na de São Luís-Carajás (Parauapebas), 440 mil. O fluxo sobe se
forem os meses de férias ou de bonança na economia que gera empregos. Agora,
há o início da colheita do café, só que essa atividade cada vez menos atrai
mão-de-obra.
Desde 1990, quando viajou pela primeira vez com o pai para o Espírito Santo,
o lavrador Geraldo Ferreira da Silva, de 31 anos, faz esse movimento
sazonal. Entre maio e junho trabalha 12 horas por dia numa fazenda colhendo
400 sacas de café. Recebe, no total, uns R$ 1 mil. É dinheiro que vai
permitir plantar arroz, milho, feijão e uma hortinha numa terra arrendada em
São Sebastião do Maranhão, no norte de Minas. Desta vez, Silva levou um
grupo de amigos para trabalhar junto. “Espero um dia voltar no trem só para
passear. Nesse vai para lá, volta para cá, a gente só cansa e nunca vai para
frente.”
Sueli Siqueira, de 51 anos, professora de sociologia na Universidade da Vale
do Rio Doce, em Governador Valadares, é companheira de viagem do lavrador
Silva. Só que na classe executiva. Uma vez por semana vai até Belo
Horizonte, onde faz o doutorado sobre as famosas migrações dos mineiros aos
Estados Unidos. Mas a sua relação com o trem vem de berço. Seu pai era
ferroviário.
Como é até hoje, filhos de funcionários da CVRD viajavam de graça e a
pequena Sueli era uma delas. A proximidade a fez encarar o trem de
passageiros com muito mais respeito e menos preconceito. “Esta viagem é
muito mais agradável e econômica. Num país onde as questões econômicas são
fundamentais, é um absurdo pensar que não utilizamos maciçamente esse meio
de transporte.”
Padrão europeu – A professora já viajou à Europa e aos Estados Unidos e sabe
como nesses lugares os trens valem ouro. Mas melhor que ela é ouvir a
impressão dos irmãos suíços Cedric e Diana Froidevaux, de 26 e 28 anos,
sentados no carro P3, entre os pobres. “Estes são até parecidos com os
nossos, só que mais lentos.”
E também do casal de namorados americanos Myles Lank e D’Lynn Rotondo, de
24 e 23. “Vamos viajar também para o Rio e Salvador. Uma pena que não vão
até lá”, diz Lank, acomodado no carro E2, entre os ricos. “Já imaginou ver
mais paisagens brasileiras da janela de um trem?”
Se soubessem português, não só veriam paisagens como ouviriam histórias. É
impossível deixar de ouvir confidências entre passageiros que
costumeiramente não se dizem a jornalistas. É a senhora que está voltando
para casa depois de ter deixado o marido, o “falecido”, que saía com a
empregada. Ou a irmã que bate no irmão mais velho sempre que este volta de
madrugada das festas. E ainda da jovem que conta a uma amiga feita no trem
que vai tentar a vida até como garota de programa na capital capixaba e, se
não der, parte de lá para qualquer outro lugar do País.
Mas há também quem não fale nada e só contemple o horizonte. Alguns ficam
calados, outros lêem, muitas amamentam seus bebês. Uma senhora dorme com a
Bíblia agarrada nas mãos, enquanto um passageiro joga um barulhento gameboy.
Quem viaja o trajeto inteiro observa muita coisa: as favelas e a periferia
de Belo Horizonte, as montanhas da Serra do Espinhaço e da Mantiqueira,
várias plantações, as minas de hematita de Gongo Soco – uma enorme cratera
que já foi uma montanha –, o Rio Doce que a partir de Governador Valadares é
presença constante na paisagem, as paradas onde sobem poucos passageiros,
vilas com casas de sapé, cidades de asfalto e ruas arborizadas – como em
Intendente Câmara, onde fica a Usiminas –, e a triste Itueta, que dentro em
breve vai dar lugar a um lago de uma hidrelétrica.
De Belo Horizonte a Vitória, o trem é conduzido por duas equipes. A primeira
desce em Governador Valadares e a outra vai dessa cidade até a estação
capixaba de Pedro Nolasco – homenagem a um dos grandes ferroviários do
Brasil, o engenheiro que idealizou, construiu e inaugurou, em 1904, os
primeiros 33 quilômetros dessa ferrovia. Só o maquinista e o chefe do trem
são funcionários da CVRD. O restante faz parte de empresas terceirizadas – a
Delta, que cuida da limpeza e conferência de bilhetes; a GVMinas, que emite
as passagens dentro dos trens; e a Prato Fino, que cuida do carro-lanchonete.
A cozinheira Joana Maria de Souza, de 43 anos, trabalha no carro-lanchonete
há 6. Se dependesse de seus dois filhos, hoje imigrantes legais nos Estados
Unidos, ela deveria se aposentar e cuidar da casa em Governador Valadares.
Mas ela prefere estar naquele aperto, equilibrando-se para preparar toda a
comida que será servida em marmitex a R$ 5. Num dia movimentado, serve até
400 refeições. Ela começa às 6h30 e já às 9h20 o almoço está pronto. Como o
trem chacoalha demais, seus braços estão marcados pelo óleo da fritura das
coxinhas.
“Gosto de estar aqui, não é a cozinha ideal, mas é onde trabalho com amor.”
Por volta das 13h10, a composição sofre nova parada e o chefe do trem
informa que se trata de uma “ocupação desconhecida”. O sistema, por algum
motivo, detectou que havia um objeto mais à frente nos trilhos. Podia ser um
galho, a chuva que fecha a corrente elétrica ou outro trem vindo no sentido
contrário. “Opa, é o Bin Laden”, diz uma mulher ao ouvir a mensagem. Mais um
atraso.
Gravação – A comunicação com os passageiros é parte vital dentro de um trem.
No mínimo, ajuda a despertar quem precisa desembarcar na próxima estação.
Antes, cada chefe do trem tinha de apelar para a improvisação, se quisesse
agradar aos clientes. A companhia decidiu, mais recentemente, padronizar a
informação. Um CD gravado indica as paradas, os pontos turísticos que podem
ser apreciados, fala da história da região, dá informações operacionais e
faz propaganda da empresa.
Na outra linha, São Luís-Carajás, há o Trem do Conhecimento – em cada carro,
aparelhos de televisão sintonizados no Canal Futura ajudam a passar o tempo
informando. É ainda um projeto para o Vitória a Minas. Por enquanto, a CVRD
oferece nessa linha o Educação nos Trilhos, que são salas de aulas montadas
nas estações de Belo Horizonte, Governador Valadares, Aimorés, Baixo Guandu
e Pedro Nolasco. “Um povo mais educado é mais fácil de lidar”, adianta o
segundo chefe do trem, Augusto Cesar Siqueira Passos, de 53 anos e 10 no
serviço de passageiros.
Para Ivaldete da Conceição, de 51 anos, mais que educado, o povo precisa ser
evangelizado. No carro P6, a fiel da Igreja Pentecostal de Deus anotava num
guardanapo o nome de quatro meninos de rua. Prometia orar por Edson, Fabio,
Henrique e Evaldo, todos na faixa dos 15 anos. Quatro dias antes, eles
saíram de Vitória, embarcaram clandestinamente num vagão de carga vazio e
foram parar em Coronel Feliciano, já em Minas. Foram detidos e levados ao
Conselho Curador da cidade. Receberam passe livre para voltar de trem. “Acho
que só pedindo a Jesus para que esses meninos melhorem de vida, senão mais
tarde…”, interrompe para depois confidenciar baixinho que teme que virem
ladrões.
Outro que ganhou passe livre foi o pedreiro Placidino Cordiais de Oliveira
Filho, de 30 anos. Ele juntou R$ 200, pegou suas ferramentas e partiu para
Governador Valadares. Hospedou-se num hotel e foi tentar a sorte, já que
diziam que lá arrumaria emprego. Não conseguiu. Quando o dinheiro acabou e o
hotel iria despejá-lo, foi aconselhado a procurar a secretaria de
assistência social. Deram-lhe um bilhete de trem, só que incompleto, pois o
destino final seria Colatina.
O pedreiro teve então de pedir, por caridade, que o chefe do trem Passos o
deixasse prosseguir até a capital capixaba. Era a sua primeira viagem sobre
os trilhos. “A gente sente o preconceito, porque eu só queria trabalhar e
não ganhar uma passagem de volta.”
Investimento errado – Já no início da noite, o advogado criminalista Luiz
Carlos Batista, de 47 anos, começa a procurar notícias de um caso em que
está trabalhando. Trata-se de um crime passional envolvendo a filha de um
conselheiro do Tribunal de Contas do Espírito Santo, acusada de matar o
marido. Na executiva do trem, tem tempo para ler os jornais depois de uma
audiência em Governador Valadares. À pergunta sobre se não seria melhor
viajar de avião ou carro, ele logo responde com uma crítica à política
nacional de transportes: “É um erro de governo e dos empresários falarem em
bilhões e bilhões de reais para melhorar a malha rodoviária. Por que não
pensam nas ferrovias?”
O soldado da Polícia Militar mineira Cleber Ramos, de 27 anos, poderia
acrescentar um outro ponto a essa discussão, mas ele seguia com a mulher
Andrea e as gêmeas Hadassa e Raquel na classe econômica.
“O trem é a realidade do Brasil. Se houvesse mais ferrovias, o brasileiro
economizaria mais e não teria de pagar transporte caro.” Ele tem razão. Além
de transportar muito mais pessoas – um trem equivale a 40 ônibus –, as
tarifas das duas linhas do trem de passageiros do País são mais baratas que
as do ônibus.
Depois de 4 mil litros de diesel consumidos, o trem chega ao seu destino
final, a Estação Pedro Nolasco, na Grande Vitória. São 20h47. Como o Brasil,
chegou atrasado – 37 minutos nesse dia.