Sem escola, sem mães. Só a tranca da Febem

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Publicada em 22 de maio de 2005
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
Nem a mais pessimista das mentes poderia imaginar o que Ligia Regina Souza
Ramos veria ao entrar no Complexo do Tatuapé. Ela viu um infrator com o olho
esquerdo estourado. Um ferimento que durante cinco dias ficou sem receber
socorro. E hoje, três meses depois, Ligia pensa no jovem, cego do olho, e
acredita que poderia ter sido diferente. Para a voluntária, a ajuda deveria
ter chegado antes.
“Me senti inútil, porque só queria ter tido a chance de puxar ele pela mão e
dizer ‘vem comigo, vamos tratar’. Quem estava lá não fez nada”, desabafa
Ligia. O jovem perdeu a vista esquerda, diz ela, por causa de uma bala de
borracha atirada por um policial da Tropa de Choque. Estava numa rebelião na
unidade 4, com cerca de 80 infratores.
O complexo da zona leste detém a marca de 15 dos 28 motins da Febem só neste
ano, que conta também mais de mil fugitivos em 35 fugas – metade
recapturada. O número global de rebeliões nesses cinco meses já é igual ao
de 2004. A última no Tatuapé ocorreu há duas semanas. Por decisão da direção
da unidade, os rebelados devem ser punidos. Desta vez, ficarão até 30 dias
nos seus quartos. Sem atividades, sem escola, sem televisão, sem muito o que
fazer. E sem a possibilidade de verem as voluntárias do programa Mães na
Febem.
Desde então, o programa está paralisado no Tatuapé, embora a Assessoria de
Imprensa da fundação negue isso. Elas só não estão tendo contato com os
adolescentes, alega o órgão. Instituído em todas as unidades no fim de
fevereiro, o projeto era uma das apostas do ex-secretário Alexandre de
Moraes para humanizar a Febem. As últimas rebeliões e fugas e até o estupro
de funcionárias cometido por infratores reforçaram ainda mais a imagem
negativa da fundação.
Nesses três meses, as voluntárias lutaram para mudar essa visão. Mas, a
partir dos relatos dos internos, constataram que antes teriam de combater
irregularidades que continuavam ocorrendo nas unidades. Conflitos e
provocações entre o setor de segurança, o chamado Choquinho, e os infratores
eram um dos principais motivos para o início das rebeliões. Adolescentes com
problemas de saúde ficavam dias sem tratamento.
“Nem um analgésico eles davam”, diz Ginaine Pastega. “Vi menino no chão por
falta de remédio.” Esse infrator, lembra a voluntária, gemia com dores no
estômago havia dias. Fora baleado numa outra unidade e transferido para o
Tatuapé. “De repente, fez xixi nas calças. Ele não conseguia mais se
controlar. Voltei para casa arrasada.” Ginaine se lembrou do filho, que na
época estava internado por ter dado carona de moto a um amigo, flagrado num
roubo à mão armada.
Ao entrarem nas unidades, as voluntárias descobriram que a realidade de
segunda a sexta-feira, quando não há visitas, era bem diferente da do fim de
semana. “Nossa função era convencê-los a conversar. E eles delatavam as
violências que sofriam”, afirma o eletricista Vicente Torquato dos Reis, o
único homem no grupo Mães na Febem. Seu filho, de 18 anos, foi internado por
participar de um roubo de cargas em novembro.
‘DEITA, VAGABUNDO’
Ginaine e Reis estavam na escola num dos motins. Viram quando a Tropa de
Choque entrou no pátio e acuou os infratores. Reis aconselhou um deles a não
correr. Pode ter sido um erro. Um policial mandou-o deitar e deu um tiro de
borracha na perna. “Ele só falou: ‘Deita, vagabundo. Deita, vagabundo.’ E
disparou.” O único sentimento dos voluntários durante o tumulto: impotência.
A presença das voluntárias tem, de certa forma, acalmado a fúria e a revolta
dos infratores – que vão de ladrões de carteiras a estupradores ou
homicidas. Quem reconhece são os próprios educadores, seguranças do
Choquinho e funcionários. Muitos pediram que o programa Mães na Febem se
estendesse além do período das 10 às 17 horas, de segunda a sexta-feira.
Fora desse horário, dizem elas, é que ocorriam as irregularidades.
“Há um ‘terceiro escalão’ que não deixa as coisas mudarem, seja qual for o
presidente, o programa implementado”, diz a presidente da ONG Amar,
Conceição Paganele. Segundo ela, são funcionários antigos – alguns
recontratados para atuar na contenção – que boicotam qualquer ação para
corrigir os erros da Febem.
A Assessoria de Imprensa já chegou a afirmar que rebeliões ocorreram porque
notícias que causavam intranqüilidade eram espalhadas entre os infratores.
“Quando íamos embora, alguns agentes ficavam falando: ‘Ó, o doutor Alexandre
caiu, o pegador (funcionário violento) vai voltar’. Era provocação o tempo
todo”, diz Reis. O ex-secretário foi aplaudido por ter tido a coragem de
abrir de forma inédita as portas da instituição a representantes da
sociedade civil.
Desde a interrupção do programa no Tatuapé, as voluntárias têm ouvido
relatos de que a tranca, punição de até 30 dias sem atividades, está sendo
muito severa. Esperam que quando voltem a entrar no complexo possam atuar
como vinham fazendo antes. Ao contrário de muitos educadores
recém-contratados que já estão pedindo demissão da Febem por causa da
pressão, as mães garantem que não desistirão nunca.

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