RETRATOS DO BRASIL Conserta-se coração

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Publicada em 1 de maio de 2006
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
Era para ser um hospital, mas virou uma fábrica. Como tantas outras, nasceu
das mãos de um empreendedor solitário, um descendente de italianos. Domingo
Braile é médico como o pai, que viu na América do Sul a chance de exercer a
medicina dos seus sonhos. Herdou dele o idealismo e o senso de oportunidade.
Cirurgião cardíaco, daqueles que abrem tórax e vêem o coração pulsando
frágil, sempre com otimismo inabalável, Braile montou um centro de
referência de tecnologia médica no interior paulista digno de citações em
publicações nacionais e estrangeiras. Nessa empresa, fabricam-se produtos
que salvam vidas em salas cirúrgicas de quase 200 hospitais e clínicas em
todos Estados e em mais de 30 países.
Numa área de 8 mil metros quadrados, 400 operários trabalham com a
consciência de que ali não é possível errar. Todos sabem disso, desde o
homem que faz o despacho dos produtos até o pesquisador que desenvolve novos
materiais. A empresa é um exemplo raro em termos de quadros, onde 185
freqüentaram uma faculdade. O tempo médio de estudo é de 12,5 anos, acima
dos americanos e quase três vezes mais que o do brasileiro. A diferença,
contudo, se desfaz no dia-a-dia. Todos se conhecem pelo nome. Fazem isso com
naturalidade. E é por essa razão que todos sofrem juntos quando um de seus
colegas passa por um problema familiar. Foi o que ocorreu com Dante,
Patrícia e Mariza.
É como se fosse um filme que não sai da memória da dona de casa Olga
Tomiatti Miatelli. Era um sábado, véspera do Dia dos Pais. Ela estava numa
loja de roupas, escolhendo o presente do marido, Moacir. Uma camisa e um
sapato. De repente o dia escureceu e uma forte dor no peito a obrigou a se
sentar. Recobrou o fôlego, mas não o susto. Teimosa, pegou as compras,
embarcou no ônibus ainda com o coração debilitado e voltou para casa a tempo
de preparar o almoço da família. Fingiu estar tudo bem. Só quando chegou da
rua o filho caçula, Dante, Olga sucumbiu. O enfarte veio impiedoso. No
hospital, foi direto para a UTI. O diagnóstico era o que ela mais temia:
duas pontes de safena.
Havia dois anos, Olga passara a entender como poucos o que significava esse
diagnóstico. Seria operada, seu coração pararia de funcionar, uma bomba a
manteria viva artificialmente. Cinco ou seis horas em que dependeria de uma
máquina. Uma máquina construída pelo filho Dante. Lembrou de quando ia levar
sucos, cafés e bolachas enquanto ele trabalhava na sua oficina e ainda de
ter-lhe dito: “Olha lá, faz direito essa coisa, porque se eu precisar tem de
estar tudo certinho.” Era agosto de 1997 e o caçula de dona Olga prosperava
com o negócio próprio de fabricar equipamentos para a Braile Biomédica, a
empresa do doutor Domingo Braile, já na época um reputado cirurgião cardíaco
discípulo de Euryclides de Jesus Zerbini, o primeiro a realizar um
transplante de coração no Brasil.
Dante ficou transtornado. Já tinha visto diversas operações cardíacas. Sabia
da responsabilidade de fabricar as máquinas de circulação extracorpórea. Só
não imaginava, até então, que sua mãe dependeria de uma. Achou uma ironia
muito grande e injusta. A operação seria no Hospital Beneficência Portuguesa
e estaria a cargo do doutor Braile. Foi com seu ex-patrão que aprendeu a
montar a bomba. Para reparar um coração, este tem de parar de bater por
algumas horas. Em seguida, pulmão e rins cessam a atividade. Aí entra o
equipamento, recebendo o sangue, filtrando-o, oxigenando-o e devolvendo-o
aquecido ao corpo humano. O cérebro não pára.
“Deus sabia que eu iria precisar desse meu filho”, orgulha-se Olga, hoje com
71 anos e saúde de “menina de 18”, como revelam os resultados do último
check-up. Dante nasceu quando ela já fizera 35 anos e não imaginava ficar
grávida de novo. O caçula, ela não esconde, é a sua jóia rara. Fica ainda
mais feliz de saber que o filho voltou a trabalhar com o doutor Braile desde
o ano passado. A empresa verticalizou seu processo produtivo, voltando a
fabricar as máquinas substitutas temporárias do coração. Todo mês, cinco
delas são feitas por 51 colaboradores na Braile Biomédica, sob a supervisão
de Dante. Um aparelho que custa cerca de US$ 30 mil, enquanto no exterior
não sai por menos de US$ 100 mil.
O PARADIGMA DA VIDA
Tamanha diferença de preço entre o produto nacional e o importado não é por
acaso. É questão de honra para o doutor Braile, que montou a fábrica em São
José do Rio Preto. Muitos brasileiros morrem por falta de acesso a uma
medicina pela qual não podem pagar. Da máquina de circulação extracorpórea a
válvulas cardíacas, os custos são estratosféricos quando se fala em
consertar o coração. No Brasil de hoje, são feitas perto de 40 mil cirurgias
cardíacas anuais ante as 550 mil nos Estados Unidos. Formado em medicina
pela Universidade de São Paulo, Domingo Braile poderia ter seguido carreira
na capital. Faria parte da equipe do doutor Zerbini, que implorou por isso,
mas rendeu-se diante de um argumento básico: o assistente dos sonhos queria
ser (e foi) o primeiro cirurgião cardíaco fora do eixo Rio-São Paulo.
No fim dos anos 60, Braile e sua mulher, a educadora Maria Cecília Braga,
moravam num modesto sobrado da Rua Voluntários de São Paulo. Passavam as
noites aprendendo a fazer válvulas do coração. Suas filhas Patrícia e
Valéria não se esquecem. Elas espiavam do alto da escada. Na época, o médico
e sua mulher ficavam costurando pedaços de dura-máter (a membrana que
reveste o cérebro), trazidos do hospital. Com agulha e linha cirúrgicas, ele
montava válvulas em muito semelhantes às humanas. Ao mesmo tempo, sabia que
para operar um doente teria de ter mais equipamentos, como a máquina de
circulação extracorpórea ou o oxigenador de sangue. E foi o que fez nos anos
seguintes. Em 1977, fundou a empresa fabricante de produtos cardíacos, que
fez São José do Rio Preto virar em pouco tempo a Cleveland brasileira – a
cidade americana reconhecida pela concentração de clínicas voltadas para o
coração.
Braile tornou-se precursor das válvulas cardíacas biológicas de pericárdio
bovino. Essas peças fazem com que o coração receba e bombeie o sangue pelo
corpo. Quando a natural dá sinais de falha, é preciso trocar. Daí a
importância de usar substitutas adequadas. A ciência descobriu que daria
para produzir uma boa válvula com a membrana que reveste o coração dos bois
e vacas. Hoje, usa-se também a válvula de porcos. É um processo artesanal,
tão detalhista que a fábrica do doutor Braile só trabalha com mulheres. São
mais habilidosas. A obstinação do cirurgião deu certo. Uma válvula fabricada
por sua empresa sai a R$ 963, que o SUS paga e implanta nos cardíacos Brasil
afora. Uma equivalente importada custa até US$ 5 mil.
“Nosso paradigma é a vida”, diz Patrícia, uma ex-advogada que foi intimada
pelo pai a ajudar a tocar a empresa. Assim como sua irmã, ex-cardiologista
do Instituto do Coração. A reunião da família em torno da Braile Biomédica
fez com que um negócio quase falimentar no início dos anos 90 voltasse a
alimentar sonhos. Em 2000, a empresa deixou de lado os faturamentos
negativos. E foi naquele ano, ironicamente, que Maria Cecília sentiu uma dor
violenta no peito. Nesse dia, o doutor Braile estava num congresso, longe de
casa. As filhas acompanharam as primeiras horas de sofrimento. Era uma
angina que exigia uma cirurgia. A operação ocorreu em novembro no centro
cirúrgico do Hospital do Coração, em São Paulo. Lá, quase tudo era equipado
com produtos da fábrica. Dias depois, para acabar com o zunzum dos
funcionários, Patrícia convocou todos no pátio para dizer que graças a eles
a mãe dela tinha sido salva. Choradeira coletiva. “Não importa em quem vai
ser usado, cada um tem de trabalhar como se fosse para seu pai, seu filho,
um parente, um amigo”, transmitiu.
TRABALHO MANUAL
De segunda a sexta-feira, como faz há 21 anos, a técnica de laboratório
Mariza Augusta Rodrigues passa as horas do trabalho costurando válvulas
cardíacas. Fica num ambiente estéril, uma sala limpa classe 7 (mais
asséptica que um centro cirúrgico de um hospital), onde é até proibido
conversar muito. Nada de falar das novelas, da dupla jornada no trabalho e
na casa ou nos problemas do dia-a-dia. Para entrar lá, só passando por uma
paramentação cuidadosa. Para não enlouquecer, Mariza reza. “É um serviço
delicado, tem de ter muita atenção. Não há hipótese de deixar passar um
ponto errado.” Quando não reza, fica imaginando quem vai usar aquele produto.

A Braile produz 800 válvulas cardíacas por mês. No departamento biológico,
os funcionários esterilizam as membranas animais, dissecam, selecionam,
descartam 90% do material e costuram das 7 até as 17 horas. É um trabalho
feito com paciência de Jó. Cada técnica dá mais de uma centena de pontos
cirúrgicos por válvula, que não passa de 3,5 centímetros de diâmetro. Tudo
como faziam o doutor Braile e sua mulher Maria Cecília quase 40 anos atrás.
Em 2004, Mariza soube que sua tia, a dona de casa Dalci Pereira Penhalvez,
de Mirassol, iria precisar de uma válvula. Recebeu solidariedade das 19
colegas. Do doutor Braile, ouviu que ainda bem, era só uma válvula, dava
para trocar. Até que a tia decidisse pela operação, o que só ocorreu seis
meses depois, a técnica rezava e pedia a Deus que abençoasse cada um
daqueles produtos feitos por elas. No início do ano passado, Dalci foi
internada e operada com urgência. No dia da operação, apreensão geral. “Era
minha tia, mas era como se fosse a tia de todas elas.” Uma corrente de
informação foi formada. Nos intervalos de três em três horas, Mariza
procurava saber o que tinha se passado. Só acalmou quando soube que tudo
estava bem. Mais uma vida tão próxima aos funcionários da Braile havia sido
salva.

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