Publicada em 21 de outubro de 2001
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
A doutora Rosa Maria Portolese Baruki, de 47 anos, tem uma definição muito
particular sobre sua profissão: “Eu acredito no que faço. Um médico tem de
ser idealista, senão fica difícil suportar a pressão. Tenho colegas que
dizem para eu despachar os pacientes, ‘derrubar a fila’ rápido. Me chamam de
tonta, mas é assim que eu atendo. Conversando, acabo cativando meus
pacientes. É a chance que tenho para descobrir uma hipertensão, uma diabete
ou um câncer de mama.”
Só assim faz sentido ver mais de 15 pessoas esperando numa fila sem que
ninguém reclame. Isso ocorre todos os dias num posto de saúde municipal, em
Ermelino Matarazzo, periferia de São Paulo. “Às vezes, cada um demora mais
de meia hora. A gente tem paciência porque sabe que na nossa vez vai ser
igual. Ela examina e pergunta. Ela gosta muito de perguntar”, conta a
aposentada Maria Alves, de 71 anos. “Eu vejo médicos que estudam muito, mas
têm muita ignorância com os pacientes. Ela é diferente”, acrescenta João
Romão de Souza, marido de Maria. Eles conheceram a médica em outro posto da
região há cinco anos. Depois que ela foi transferida, João e Maria não
tiveram dúvidas. Também mudaram de posto.
Histórias como essas estão deixando de ser comuns. Um médico já não goza do
mesmo prestígio do passado. Perde-se no tempo e na lembrança a figura do
profissional amigo em que todos confiavam. Nas últimas décadas, essa imagem
vem se despedaçando. Há médicos e pacientes que parecem inimigos. Nem sempre
conversam um com o outro. A frieza desse relacionamento pode ser vista em
hospitais, postos de saúde, consultórios e laboratórios. De gente rica e
gente pobre. Crescem ainda as ações contra os profissionais nos conselhos
regionais de medicina e na Justiça. Culpa de quem?
“Hoje, uma consulta pode durar 5 minutos. Se demorar mais, a fila fica muito
grande. Mas só com esse tempo perde-se aquela relação mais próxima com o
paciente”, explica José Erivalder Guimarães de Oliveira, presidente do
Sindicato dos Médicos de São Paulo. Uma consulta deve durar pelo menos 15
minutos, segundo a Organização Mundial de Saúde. Num período de 4 horas,
seriam 16 consultas. Na prática, há profissionais que atendem de 30 a 35
pessoas.
Do convênio – Essa rapidez no atendimento ocorre não só nos hospitais, mas
também nos consultórios particulares. Nesse caso, os planos de saúde são
apontados como os vilões. Ao assinar a ficha do convênio no consultório, o
paciente praticamente preenche um cheque que varia de R$ 8 a R$ 25. É o que
as operadoras repassam aos profissionais. Assim, só com mais atendimentos se
pode obter algum lucro.
“Os convênios deveriam pagar mais e permitir a livre escolha. Isso dá
liberdade ao paciente e valoriza o trabalho do médico”, afirma o
dermatologista Paulo Celso Budri Freire, de 48 anos. Hoje, uma pessoa não
diz “vou ao meu médico”. Prefere “vou ao médico do convênio”.
Ironicamente, o maior acesso à informação é outro fator que tem posto mais
lenha na fogueira da relação médico-paciente. No Brasil, as pessoas estão
reclamando mais seus direitos. Quem paga um plano de saúde, por exemplo,
cobra resultados. “Você paga, paga e quando vai fazer certos exames tem de
pagar mais. Para piorar, os médicos do convênio só olham na sua cara e dão
logo um remédio”, desabafa o comerciante Gilvano Amaro dos Santos, de 32
anos, que já teve anemia, não conseguiu sucesso nos tratamentos quando tinha
um plano e hoje freqüenta a rede pública.
Nos prontos-socorros, as reclamações também são barulhentas. “O médico virou
um balconista de informações. Os pacientes não têm mais respeito e já vêm
com certa desconfiança”, afirma o pediatra Marcos Bussas, de 46 anos. Em 20
anos de atividade, já não se lembra de quantos insultos recebeu. Mas ainda
dói na sua cabeça, e no coração, o carrinho de feira que foi atirado por uma
mãe num dia de plantão.
A violência é outro subproduto desse distanciamento entre médicos e
pacientes. É um problema mundial que atinge até países desenvolvidos como a
Inglaterra e os Estados Unidos. Bussas credita ao sucateamento dos serviços
de saúde, público e privado, a ruptura na relação médico-paciente. Esse é um
dos motivos que o faz ter uma semana com jornada de quase 18 horas por dia.
Com os baixos salários, precisa ter quatro empregos para sustentar a mulher
e três filhas.
Até hoje as crianças brincam de médico usando um estetoscópio de brinquedo e
uma maleta. Essa imagem, contudo, tem pouco a ver com a prática. Por trás do
profissional, existe uma quantidade inimaginável de sofisticados aparelhos
que realizam vários exames. O problema é ter cada vez mais profissionais se
apoiando apenas nessa medicina moderna. “O médico não ouve mais os
pacientes. A relação é fria, mecanizada e mercantilizada”, critica Antonieta
Kulaif, presidente da Associação das Vítimas dos Erros Médicos.
O médico Alex Botsaris viveu o drama que muitos pacientes já sofreram. Ele
perdeu o seu filho recém-nascido numa UTI de um hospital carioca. Em vez de
abrir processos contra os colegas, preferiu investigar a prática da medicina
nos dias de hoje. Publicou o livro Sem Anestesia (Editora Objetiva), em que
relata, do ponto de vista de um médico, como a medicina mudou drasticamente,
tornando-se distante e cruel, nas últimas décadas.
Má formação – Mas de onde surgem médicos que lêem com precisão exames e
esquecem de, simplesmente, conversar com os pacientes? A resposta é unânime:
as faculdades de medicina. “É preciso mudar as escolas, o que se ensina
nelas e as suas avaliações”, afirma Regina Ribeiro Parizi Carvalho,
presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo.
À frente do órgão responsável pela conduta dos profissionais, que na semana
passada lançou um guia sobre o assunto, Regina está engajada em melhorar a
formação dos novos médicos que chegam ao mercado. A relação médico-paciente,
diz ela, deve ser preocupação não de uma disciplina, mas das várias
atividades dos alunos ao longo do curso.
As faculdades de medicina vêm ampliando a formação dos seus estudantes ao
mesmo tempo em que tiram deles o idealismo da profissão. “No início, temos
todo aquele romantismo de tratar bem o paciente. No internato, descobrimos
que são muitos pacientes, mistura o cansaço e o romantismo é deixado de
lado”, confessa o futuro médico Ademar Lucas Júnior, universitário de 22
anos.
“A tendência é piorar. Estão abrindo um grande número de faculdades e isso
está acabando com a reputação médica”, completa o estudante do 3.º ano da
Faculdade de Ciências Médicas Santa Casa, única escola privada com conceito
A no Provão. Das particulares, 93% obtiveram notas medíocres. No geral,
apenas um terço das escolas avaliadas, 27, esteve acima da média.
O desprestígio da profissão tornou-se contagiante. A doutora Rosa chorou
quando seus dois filhos decidiram não seguir a carreira dos pais. Para o
ortopedista Reginaldo Baruki, marido de Rosa e maior colaborador do
orçamento familiar, foi melhor assim. Se hoje a relação médico-paciente já
está difícil para a geração deles, imagine no futuro quando tudo ameaça
virar só um negócio.
Em busca do médico da família
No final das tardes das quartas-feiras, no Instituto Santa Teresinha, zona
sul de São Paulo, algumas salas servem de laboratório para uma experiência
auspiciosa. Lá, ensina-se medicina. A boa e velha medicina. É uma iniciativa
fora do currículo de escolas e faculdades da área. Tocado pela Sociedade
Brasileira de Medicina de Família (Sobramfa), o projeto pretende cativar
futuros profissionais a humanizarem o atendimento, como os antigos médicos
de família: aqueles que visitavam as casas dos pacientes, dedicavam um tempo
ao atendimento, curavam doenças e faziam a prevenção delas.
Desde 1998, o projeto acadêmico já reuniu mais de 50 estudantes de escolas
de medicina de São Paulo. Públicas e privadas. A proposta é fazer com que
alunos a partir do 2.º ano de faculdade passem a exercer a profissão na
prática, mas com uma filosofia um pouco esquecida nos bancos escolares. Nas
salas-consultórios, eles conversam o tempo necessário com os pacientes que
chegam ao projeto no esquema boca-a-boca. É uma consulta de verdade.
Numa reunião com todos os estudantes, os casos são discutidos. “Acho que ela
veio para conversar de novo. Criou-se um vínculo. Ela está se sentindo
cuidada”, afirma a estudante Camélia Garcia Golfan, de 21 anos, da
Universidade Santo Amaro (Unisa). No caso, “ela” é uma mulher de 52 anos
cuja história inclui pressão alta, traição do marido, brigas constantes e o
medo de ter esclerose.
Os outros alunos participam da discussão. “Ela já passou por quatro unidades
de saúde pública e mesmo assim voltou ao nosso serviço”, acrescenta Marcelo
Levites, de 24 anos, que ajudou Camélia a atender a mulher. O médico Pablo
González Blasco, diretor da Sobramfa, coordena a reunião e ajuda os
universitários no diagnóstico dos pacientes.
“Se um médico se chateia porque acha que um colega está invadindo o seu
campo é porque ele não está pensando primeiro no paciente”, comenta Blasco
aos estudantes. Ao pôr em prática o conhecimento da sala de aula, esbarram
numa dificuldade adicional: eles têm de aprender a ouvir o que o paciente
tem a dizer. E descobrem que isso faz uma grande diferença.
“Eu senti que minha paciente veio aqui mais para conversar. Ela queria se
abrir”, diz Ana Paula Panigassi, de 20 anos, terceiro anista da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), sobre uma mulher que julgava ter mau hálito
e se sentia mal por isso. Na discussão com os outros alunos e Blasco
chegou-se à conclusão de que o namorado dessa mulher causava-lhe as más
impressões. Foram receitadas algumas vitaminas, já que a paciente continuava
abaixo do peso ideal.
Conversa – “Você acha estranho a Ana Paula perguntar sobre a vida dela”,
pergunta Blasco à estudante Andressa Guimarães do Prado, de 20 anos, no 2.º
ano da Santa Casa. Hesitante, ela responde que “não é comum”. Mas concorda
que ao conversar um pouco com a paciente teve uma visão melhor do seu quadro.
“O que a gente vê na faculdade é que não dá para acompanhar um paciente.
Aprendemos a tocar o serviço: atender o mais rápido possível e esvaziar a
fila”, completa Adriana Roncoletta, de 24 anos, 6.º ano da Unisa. Ainda são
poucos alunos no projeto e não se sabe quantos desses vão se tornar médicos
de família. Mas é certo que a lição de casa está sendo feita por eles.