Programa de biodiesel ignora uso do babaçu

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Publicada em 2 de setembro de 2007
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
LIMA CAMPOS (MA)
O babaçu tem usos tão variados, como já escreviam os livros de geografia, que foram inventar dois novos só para acabar com o sono das quebradeiras do coco. Um deles ainda é um projeto, o biodiesel, cujo programa optou por outras matérias-primas nessa primeira fase. O outro é a queima do produto para virar carvão vegetal, aquele que arde nos gigantes fornos das usinas siderúrgicas da Amazônia Oriental para transformar minério em ferro-gusa. Ambos com potencial para tirar o ganha-pão de mais de 300 mil mulheres que vivem de uma atividade que parou no tempo.
As mulheres extrativistas são a favor do biodiesel. Passaram a acreditar nele quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva virou um de seus defensores em discursos no Brasil e mundo afora. Até o tradutor oficial da República já se viu em apuros para explicar aos estrangeiros o que são “quebradeiras de coco babaçu”. Ficaram frustradas quando mamona, dendê e soja foram as escolhas iniciais. Querem saber se a amêndoa que tanto se esforçam para separar, na base da cunha e do machete, será aproveitada também. Segundo a Embrapa Agroenergia, vai. Mas só daqui a 5 ou 10 anos.
“As palmáceas vão ajudar a consolidar o programa biodiesel, mas antes precisam sair da fase do extrativismo para a de sistemas produtivos sustentáveis”, explica Frederico Durães, chefe da Embrapa Agronergia, um dos órgãos responsáveis pelas pesquisas sobre o futuro do combustível alternativo. O babaçu enquadra-se hoje na categoria de cultura potencial, pois sabe-se que de suas amêndoas sai um óleo de grande valor energético. O problema é que sua extração mantém-se artesanal.
De outubro a março, mulheres do Maranhão, Piauí, de Tocantins e Goiás saem à cata do fruto. Percorrem quilômetros. Agora, na entressafra, são mais quilômetros. Longe de serem bem-vindas, entram em fazendas particulares para coletar e extrair as amêndoas. Quebram o coco ali mesmo, na sombra das palmeiras. As menos experientes extraem cinco quilos, menos da metade do que quem leva mais jeito para o trabalho.
ALTOS FORNOS
Nos últimos tempos, as mulheres passaram a ter companhia masculina. Mas, para elas, são predadores. Mesmo que alguns sejam vizinhos, amigos, maridos. Eles recolhem sacas do coco e não quebram nada. Só vendem o produto para pequenos comércios da comunidade, que revendem a mercadoria para atravessadores e destes para as carvoarias.
O babaçu (Orbignya phalerata) tem 64 usos catalogados. Uma dezena deles poderia ser economicamente viável, mas não é. Faltam escala e estrutura produtiva. De um coquinho, retiram-se quatro pequenas amêndoas, 7% da massa. Podem se transformar em óleos, sabão, glicerina, torta e farelo. Do mesocarpo, outros 23%, dá para fabricar amido, fibras, fertilizante e etanol. Dos 11% do epicarpo se faz carvão ativado. E é nos 59% restantes, o endocarpo que recobre as amêndoas, que reside a ameaça às quebradeiras: o uso como carvão.
Não faltam defensores do potencial do coque do babaçu. Seu carvão vegetal apresenta 80% de carbono. O eucalipto carbonizado tem 70%. Uma floresta nativa, 64%. Transportar madeira sem autorização hoje é ilegal; o babaçu, não. “O coco babaçu virou ouro”, adverte Cynthia Carvalho Martins, da Universidade Estadual do Maranhão.
Há menos de um mês, a antropóloga retornou de uma incursão ao Bico do Papagaio, visitando carvoarias do Maranhão e do Pará. Descobriu fornos móveis que produzem carvão com o fruto inteiro, com amêndoas e tudo. “O carvão é mais predatório. A quantidade de minério de ferro em Carajás, dizem, dá para 350 anos. Não há coque suficiente para tudo isso.” O Instituto Cidadão Carvão não quis se pronunciar sobre essa ação. Criado para moralizar as carvoarias, envolvidas com trabalho escravo e desmatamento, a organização tenta convencer as guseiras a só comprar o carvão vegetal de origem legal.
Uma luta do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu é evitar que babaçuais sejam derrubados, como alerta a coordenadora-geral Maria Adelina de Souza Chagas. “Toda vez que vem os grandes projetos com nome de desenvolvimento sustentável só se fala em reflorestar, sempre com o plantio do eucalipto. Nunca em preservar”, afirma, preocupada com a futura criação do Distrito Florestal de Carajás.
Estimativas do movimento avaliam que 2,4 milhões de hectares de babaçuais já foram devastados. No Brasil, a palmeira já ocupou 18 milhões de hectares.

Movimento quer lei federal para catar coco
Na época da colheita, a tripla jornada de uma quebradeira de coco babaçu começa de madrugada. Não dá para sair e deixar o marido e os filhos sem comida. Lá pelas 7 horas, casa arrumada, elas saem em bando para catar o fruto. Levam o pacará nas costas certas de que o cesto vai voltar cheio de amêndoas já separadas, coisa de 10 a 15 quilos em dia bom. É trabalho que exige força, mas homem não tem as mãos hábeis de uma mulher. Eles ficam no roçado. Quando retornam, fim de tarde, já encontram o lar limpo, as crianças de banho tomado e um punhado de amêndoas separadas que vão complementar a renda da família.
Francisca das Chagas Cardoso Ribeiro, de 21 anos, é quebradeira como a mãe, Maria Cardoso, de 61, e duas irmãs. Gostaria de estudar, já que quebrar dez quilos de coco e receber no fim do dia R$ 8 não dá futuro. Mas o estudo é sonho, a realidade é ganhar dinheiro para cuidar do filho Flavio Ribeiro da Silva, de 10 meses. “Só com o coco não está dando. O pai dele não tem serviço.” Dona Maria emenda: “Quebração de coco adoece demais, é uma acabação da mulher. A gente só quebra porque tem precisão.”
No município de Lima Campos, no Maranhão, existe uma comunidade que vive só do babaçu. É São José dos Mouras, onde moram Francisca, a mãe, as irmãs e dezenas de outras quebradeiras. Na região do Médio Mearim, populações dependem do babaçu para sobreviver. A pecuária rende dinheiro, mas não emprega muita gente. O gado precisa de pastos largos tanto quanto do capim. Ambos requerem a destruição das palmeiras, de preferência quando novas, as pindovas. Por isso, as mulheres lutam tanto para garantir acesso ao produto.
Há dez anos, a prefeitura de Lago do Junco (MA) sancionou a primeira lei de acesso livre aos babaçuais. Quase uma revolução no conceito de propriedade privada. Fazendeiros continuam donos da terra, mas ficaram proibidos de impedir as quebradeiras de entrar para coletar o coco. Quatorze outros municípios seguiram a toada, pressionados pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu. Só que elas querem mais. Defendem uma lei federal, que garanta o extrativismo.
“A lei é só um passo; sem ela vira uma barbárie”, afirma o deputado federal Domingos Dutra (PT), autor do projeto pró-quebradeiras em tramitação no Congresso. “Se o babaçu for aproveitado pelo agronegócio, aí é que a violência contra as mulheres vai aumentar. Elas vão ser impedidas de ter acesso às palmeiras.” O parlamentar é filho de uma quebradeira, Raimunda Rosa, de Saco das Almas, município de Buriti de Inácio Vaz (MA). Não ignora a dificuldade em aprovar uma lei federal do gênero. Muitos parlamentares têm outros interesses. Mas lembra que, há alguns anos, elas viviam “na carreira”, como as quebradeiras chamam quando têm de correr fugindo dos peões das fazendas.
“Tivemos de travar lutas internas, conscientizar a comunidade, e só assim garantir a nossa sobrevivência”, diz Aline Raquel Chagas, de 27 anos. A quebradeira, também professora em São José dos Mouras, lembra da briga que tiveram para expulsar atravessadores que queriam recolher o coco para vender para as carvoarias.
Uma quebradeira ganha, em média, meio salário mínimo por mês. Com renda baixa, economizam o quanto podem. Gás é luxo, cozinham mesmo é com o carvão do babaçu. Casa nova tem teto forrado com folhas da palmeira. E o fruto é a base do cardápio das famílias. Fritura e tempero de salada é com o azeite produzido em muitas comunidades.
Em Lago do Junco, a cidade pioneira nas leis municipais do babaçu livre, existe uma cooperativa com mais de 160 associados. Antes, as mulheres da comunidade precisavam quebrar dez quilos de coco para comprar um quilo de arroz. Hoje, com o beneficiamento, a proporção é de um para um. É o salto que fez o babaçu ser exportado para fabricantes de cosméticos da Europa e dos Estados Unidos, como Body Shop e Aveda. Mulheres do mundo todo embelezadas graças às quebradeiras brasileiras.

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