Publicada em 2 de março de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
José Maria da Conceição, de 67 anos, tem medo de perder o trabalho, um ponto
de camelô na Rua 25 de Março, centro da capital paulista. Portador de
osteomielite desde criança, a cada dia sente os ossos encolherem dentro do
corpo e uma gangrena avançar na perna esquerda. Há dúvidas médicas se terá
de amputar o membro ou poderá receber um enxerto e ter a infecção debelada
com antibióticos. Sua preocupação, contudo, é de outra dimensão. Se
Conceição se submeter à cirurgia, corre risco de ter a licença de ambulante
cassada. Já aconteceu o mesmo com colegas dele.
Até agora, 146 de 900 ambulantes deficientes ou sexagenários perderam o
direito de trabalhar desde que uma portaria da Subprefeitura da Sé entrou em
vigor em 3 de maio de 2006. Ela regulamenta a Lei 11.039, de 1991, que
define o trabalho de ambulantes. Portadores de deficiência e sexagenários
têm prioridade para trabalhar e podem ter auxiliares. Quem não enxerga, por
exemplo, teria direito a dois funcionários.
“Permissionários deficientes de natureza grave deverão permanecer nas
bancas, obrigatoriamente, diariamente, das 9h30 às 13h30.” Esse é o texto
das portarias 58 e 139, assinadas pelo subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo.
Levada ao pé da letra por fiscais da subprefeitura, significa que, se
portadores de necessidades especiais chegarem atrasados ou se ausentarem até
para ir ao banheiro, a barraca será fechada e o Termo de Permissão de Uso
(TPU), cassado. Uma barraca de qualquer ambulante deve abrir das 8h30 às
18h30. Mais de 350 ambulantes fisicamente capazes perderam seus pontos.
Os deficientes só podem ter oito dias de licença por ano. Nem um dia a mais
nem direito a férias. José Maria da Conceição perguntou ao médico e
descobriu que, se tiver a perna amputada, não voltará à banca da 25 de Março
em prazo tão curto. “Se eu operar e perder o trabalho, como vou arrumar
dinheiro para me sustentar?”
Zilda Aparecida de Souza, de 54 anos, responde: sua banca funciona só depois
das 13h30. A lei impede que ela fique aberta sem a sua presença, mas nada
diz sobre a tarde. É assim que os deficientes têm-se virado, na base do
jeitinho. A ambulante teve câncer. Foi operada há quatro meses e, desde
então, se submete a sessões de quimioterapia. Com o intestino menor desde a
cirurgia, tem freqüentes diarréias. Precisa comer menos e num intervalo de
não mais que duas horas.
Se estivesse na barraca de roupas e miudezas na Ladeira General Carneiro,
Zilda não teria como abandonar o posto de trabalho. A portaria impede.
“Concordo que tem de disciplinar, há pessoas que não obedecem. Mas o pessoal
da Prefeitura também tem capacidade para ver o que é certo.”
Rosângela Aparecida Correa Malvão é cadeirante. Muitos cadeirantes recorrem
a fraldas. É incômodo, mas funciona melhor do que ter de procurar banheiros
adaptados. Na Rua 25 de Março, não há banheiros adaptados. O Metrô São Bento
é inacessível para quem usa cadeiras de rodas. Há algum tempo, Rosângela
passou a ter de massagear a bexiga para urinar. A posição recomendada pelos
médicos é a deitada. Ciente das dificuldades, deixou de ir trabalhar.
A luta dos deficientes e sexagenários foi abraçada pela Sociedade do
Deficiente Visual, Físico e Amigos do Brasil e especialmente pela presidente
Josefa Viana. Ela não tem deficiência, a não ser a de ser teimosa. Perdeu a
conta de quantas vezes foi à Câmara Municipal pedir que alguém elabore um
parecer sobre a portaria (Ver ao lado).
“Esse método de retirar ambulantes deficientes das ruas vai matando eles aos
pouquinhos”, critica Josefa. Camelô, ela sabe que há aqueles que sublocam a
barraca, cedendo o TPU, fazem parceria com fabricantes de fundo de quintal
ou os que só querem ficar em casa. “Mas é minoria. Por que a Prefeitura fica
difamando todos eles e não dizem logo que não querem mais o trabalho de
camelôs no centro”, indaga.