Publicada em 11 de novembro de 2004
O Estado de S. Paulo
O fenômeno já era conhecido. Às vésperas de cada verão, academias de
ginástica se apressavam em lançar exercícios para criar modismos e atrair
quem queria ficar com o corpo em forma. Isso é coisa do passado. A moda
atual, condenada, perigosa e até ilegal, é descobrir qual a novíssima
injeção para acabar com as gorduras localizadas. Em nome da beleza, um
número cada vez maior de pessoas tem se tornado cobaia para substâncias que
prometem milagres, mas cuja única certeza é a de que não há provas
científicas de sua eficácia.
Lipostabil foi a droga de verões passados. Em janeiro de 2003, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu o seu uso para fins de
beleza. A substância havia se tornado a coqueluche de consultórios médicos,
academias de ginástica, clínicas de estética e até salões de cabeleireiros.
Neste verão, se nada for feito para impedir o uso indiscriminado, será a vez
dos polifenóis de alcachofra. O produto virou motivo de reportagens
propagandistas, está espalhado em out-doors e é vendido livremente pela
internet.
Uma reportagem de setembro da revista Veja é considerada por especialistas e
sociedades médicas como a grande propulsora dos polifenóis de alcachofra. O
produto não é novo. Vem sendo testado desde os anos 70. Mas bastou a médica
Maria Amélia Bogéa aparecer no semanário dizendo que tratava de celebridades
como Juliana Paes, Angélica e Danielle Winits com injeções do produto que os
consultórios médicos foram bombardeados com pedidos do gênero: “Eu quero
isso também!” Claro, quem resiste à promessa de ter corpos perfeitos sem
precisar de dieta ou exercícios físicos?
A partir daí, a irresponsabilidade tomou conta do mercado. Nada diferente do
que se viu com o Lipostabil, anos atrás. Desta vez, contudo, a classe médica
parece estar mais atenta. “Não existe nenhuma medicação aplicada no abdômen
que forme uma barriga de tanquinho. Se alguém me trouxer uma, eu rasgo meu
diploma”, ironiza o presidente da Sociedade Médica Brasileira de
Intradermoterapia, Carlos Eduardo Nazar, formado pela Escola Paulista de
Medicina, atual Unifesp.
“Não há evidências científicas de que os polifenóis de alcachofra possam
ajudar no tratamento de gordura localizada”, sentencia a presidente da
Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, Valéria Guimarães.
Como o Lipostabil, um medicamento cardiovascular, o uso da alcachofra também
está sendo desvirtuado. Há estudos que indicam sua ação na estimulação
hepática e diurética. “A Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD)
recomenda aos seus associados que não utilizem os polifenóis de alcachofra,
nem outras drogas que não estejam aprovadas pela Anvisa ou não tenham
estudos comprovando a sua segurança”, diz a coordenadora da entidade, Dóris
Hexsel.
A rede de clínicas de estética Onodera estampou na capital de São Paulo mais
de 20 outdoors anunciando os polifenóis de alcachofra e sua linha de
produtos “fitos”. Bem mais que os poucos outdoors da regional paulista da
SBD, alertando sobre o uso indiscriminado dessas substâncias. Nos próximos
dias, a Anvisa deve proibir as propagandas dos polifenóis em todo o País. O
órgão que regulamenta o uso de medicamentos já avalia se proibirá ou não o
uso da mais nova febre do mundo da estética. E Maria Amélia Bogéa responde a
processos no Conselho Regional de Medicina do Rio.
Sinal de que as coisas estão mudando? Não. A procura pelos tratamentos à
base de ampolas milagrosas é tão grande que ninguém arrisca dizer onde isso
vai parar. Primeiro porque já há uma lista de produtos que prometem
resultados equivalentes no mercado, como procaína, xantina, aminofilina,
tiratricol e iombina, alguns utilizados na mistura injetada com a
alcachofra. O segundo motivo é que mesmo proibidos eles são facilmente
encontrados no mercado negro da internet. Compra-se, por exemplo, Lipostabil
a R$ 130 (Ver texto abaixo).
E há um terceiro motivo que merece uma reflexão mais séria por toda a
sociedade. Por que as pessoas se submetem a tratamentos que podem gerar
riscos em nome da vaidade? Corajosamente, Simone Fernandes Molico, de 33
anos, assume que por esse motivo faz aplicações de meso ou
intradermoterapia, os dois nomes para a técnica. Primeiro foram as de
Lipostabil, cerca de dez, antes da proibição. Agora são as de polifenóis de
alcachofra. Espera remover a gordura localizada na região da barriga. “Fui
mãe muito jovem e não quero ficar para trás. Hoje em dia a concorrência está
muito grande aí fora”, comenta.
POR INDICAÇÃO
Simone admite que detesta fazer exercícios, não gosta de freqüentar
academias de ginástica e tem receio de fazer uma lipoaspiração – a cirurgia
de remoção de gordura. Com o início dos vários cuidados estéticos, que
incluem ainda botox (tratamento de rugas) e peeling (esfoliação da pele),
mudou os hábitos alimentares. Aumentou o consumo de líquidos, frutas e
saladas. E reduziu os pães e as massas. Chegou a pesar 75 quilos, mas agora
tem 68 e veste calça manequim 42 – às vezes, 40. Por que confia nas
injeções? Porque confia na clínica da dermatologista Ligia Kogos. “A minha
esteticista sempre me indica as novidades.”
A médica Ligia Kogos, que atende de famosos a endinheirados paulistanos,
defende o uso das injeções para redução de gordura localizada, mas garante
aplicá-las só depois de verificar o histórico de saúde do paciente. Aos mais
gordinhos, recomenda que façam um regime antes. E aos que vêm ao seu
consultório com uma revista na mão, como foi no caso dos polifenóis de
alcachofra, trata de não prometer milagres. Para ter segurança do que vai
aplicar nos pacientes, ela afirma que testa primeiro as substâncias nas
funcionárias da clínica.
“Tem razão a Anvisa em proibir e também os médicos que usavam o Lipostabil”,
afirma Ligia. Segundo ela, “a medicina tem de ser deixada para os médicos” e
a maior prova disso seriam os inúmeros produtos que hoje são utilizados com
fins diferentes daqueles para os quais foram criados. Dois exemplos
clássicos: penicilina e botox. “Somos um País muito voltado para a beleza. A
mulher brasileira é cortejada pelos homens, o que as fazem querer ficar
ainda mais desejadas. É um ciclo vicioso”, diz. As injeções da moda só são
parte dessa lógica.
Lipostabil a R$ 130! Tudo ilegal, via internet
Observe as duas imagens ao lado. Os frascos e a embalagem do Lipostabil são
de verdade e custaram R$ 130. Foram comprados na semana passada por
intermédio de um site, exibido à direita. Ele é apenas um entre tantos
endereços da internet oferecendo esse tipo de medicamento. A venda, a
fabricação e o uso do produto, também conhecido como fosfatidilcolina ou
lecitina de soja, para fins estéticos estão proibidos. Mas comprar amostras
dessa e de outras substâncias não autorizadas ou ilegais é tão fácil quanto
adquirir dólares no mercado negro brasileiro.
Os polifenóis de alcachofra já estão sendo vendidos na internet, o que
intriga a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a
procedência desse produto. Há uma avalanche de frascos de Cynara scolymus, o
nome científico da alcachofra, no mercado. Farmácias de manipulação oferecem
parte dessa mercadoria, como faziam com o fosfatidilcolina. Pela norma, elas
só podem manipular tal substância com receita médica e se esta não for
proibida pela Anvisa.
Uma das explicações para o mercado nebuloso de injetáveis para tratar a
gordura localizada – ou criar músculos enrijecidos, como a barriga de
tanquinho – é que o universo da estética cria formas de seduzir e induzir as
pessoas a consumirem produtos sem dizer que os mesmos podem trazer riscos.
Uma delas é afirmar que se trata de produtos naturais, os fitoterápicos. A
outra é mostrar que há famosos usando e tendo resultados com eles. Daí para
a propaganda é um passo só.
“Outdoors como os dos polifenóis de alcachofra são um acinte. Chocam porque
fazem com que o medicamento que deveria ser prescrito por médicos seja
exigido pelos próprios pacientes”, diz o gerente-geral de medicamentos da
Anvisa, Dirceu Raposo de Mello. A rede de clínicas de estética Onodera, que
divulgou o produto dessa forma em São Paulo, foi procurada pela reportagem
do Estado, mas não quis se pronunciar sobre o assunto.
Para Marcelo Martins, farmacêutico-responsável da Labase, que manipula os
polifenóis de alcachofra, esse uso indiscriminado já está criando uma imagem
negativa do produto. “Quem vai pagar o pato é quem está fazendo certo”, diz.
Indagado se recomendaria a substância para tratar de gordura localizada,
Martins respondeu: “Difícil afirmar alguma coisa. Essa pergunta é capciosa.”
A dermatologista Patricia Rittes não defende o uso da alcachofra para
reduzir medidas indesejáveis, mas é fervorosa advogada do fosfatidilcolina
com esse objetivo. Uma das pioneiras no uso do Lipostabil, hoje só fabricado
pela Aventis da Itália e Alemanha – e jamais pela Aventis brasileira –, a
médica usa o produto para reduzir pequenas gorduras na região dos olhos e
nos culotes, costas e braços. “Acho bom criarem normas, porque aí só vai
usar quem aplicar a técnica correta.”
O Conselho Federal de Medicina, outra entidade preocupada com o uso de
produtos sem comprovação científica, lembra que testar medicamentos
indiscriminadamente em seres humanos fere o código de ética da profissão.
Trata-se, em linguagem clara, de má prática da medicina. E.N.
PARECER MÉDICO
SEM ESTUDOS: Para a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia,
não há indicação de que Lipostabil, polifenóis de alcachofra e outros
produtos do gênero venham a ser estudados para tratamentos de gordura
localizada. “Mas enquanto a população acreditar em produtos milagrosos, essa
febre não vai acabar nunca”, afirma a presidente da entidade, Valéria
Guimarães.
EMPIRISMO: “Não podemos ficar testando por nossa conta e risco nenhuma
droga que não seja aprovada pela Anvisa”, diz Dóris Hexsel, coordenadora do
Departamento de Cosmiatria da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
MILAGRE: “O paciente sempre quer milagres, mas eles não existem na
medicina”, afirma o presidente da Sociedade Médica Brasileira de
Intradermoterapia, Carlos Eduardo Nazar. A entidade é contra o uso do
fosfatidilcolina e realiza estudo para emitir opinião sobre os polifenóis de
alcachofra.
RISCOS: “As pessoas não identificam esses produtos como medicamentos e
acham que é tudo natural. É o que ocorre agora com os da alcachofra”, diz o
gerente-geral da Anvisa, Dirceu Raposo de Mello. “É um erro e podem estar
colocando a vida em risco.”