Publicada em 9 de fevereiro de 2000
Veja
Eduardo Nunomura
Ele tinha apenas 2 meses quando chegou ao Hospital Emílio Ribas, na capital paulista. Foi levado por um senhor que nem parente era, mas deu-lhe o nome de Adilson. Estava muito fraco. Sofria de desnutrição e desidratação. Hoje, aos 3 anos, Adilson é um garoto alegre e carinhoso. Nos últimos dias, anda impossível. Ninguém segura a euforia do menino em ir pela primeira vez à escola. A vivacidade de Adilson encobre uma história triste. Da mãe dele não se tem notícia. Nunca se teve, mas ela se faz presente. Ainda no útero materno, ele foi contaminado pelo vírus HIV. Sem família, mora em um abrigo para crianças abandonadas, a Tenda de Cristo, na Grande São Paulo. Adilson é um dos órfãos da Aids. Passadas quase duas décadas de doença, o Brasil enfim conta seus pequenos desamparados. Entre 1987 e 1999, 30.000 crianças de até 15 anos perderam a mãe para a síndrome, mostra um estudo do Ministério da Saúde. O cenário é ainda mais sombrio que o desvendado pelas estatísticas oficiais. O levantamento baseou-se nos registros de óbito por Aids das mulheres que tinham filhos. Ficaram de fora as crianças obrigadas a viver longe da família porque a mãe ou ambos os pais, doentes, não têm como cuidar delas.
Esse é um dos lados mais cruéis da mudança de perfil da síndrome. No início da epidemia, a doença estava restrita a homossexuais e usuários de drogas injetáveis que compartilhavam seringas infectadas. No Brasil, em 1988, quase metade dos portadores de Aids eram gays e um em cinco era usuário de drogas. Nos últimos cinco anos, as relações heterossexuais passaram a ser a principal forma de transmissão da doença. O resultado é que aumentou dramaticamente o número de mulheres atingidas. Na década de 80, havia uma mulher contaminada para cada dezessete homens na mesma situação. Agora, a proporção é de uma para dois. É nesse contexto que as crianças se transformam em vítimas potenciais da Aids. Algumas correm o risco da contaminação ainda no útero materno e todas vivem sob a ameaça de morte da mãe. Há no país cerca de 200.000 filhos de mulheres portadoras do HIV. Três em cada dez são crianças cujas mães já desenvolveram a doença. Os exemplos mais dramáticos são como os do pequeno Adilson. Não bastasse o abandono, o menino tem de conviver com o estigma de carregar o vírus. “As chances de uma criança soropositiva ser adotada são muito pequenas”, diz Giuseppe Venegoni, coordenador do abrigo onde mora Adilson. Há três semanas, o Centro de Convivência Infantil Filhos de Oxum, em São Paulo, recebeu um menino de 4 anos. Depois da morte da mãe e do pai, o garotinho foi morar com o avô paterno. Sua segunda mulher, no entanto, não admitia que as filhas, meninas saudáveis, convivessem com o neto do companheiro.
“O nosso chão” – Há também crianças que não perderam a mãe ou o pai mas são consideradas órfãs da Aids. Como, atualmente, a doença se alastra sobretudo entre os mais pobres, quando um dos pais ou ambos adoecem esses meninos e meninas não têm muitas alternativas senão viver longe da família. Sem recursos, os adultos não dão conta de zelar pela própria saúde, que dirá a de seus filhos. Há seis meses, o motorista alagoano Ederaldo Fernandes de Almeida, 43 anos, e a metalúrgica paulista Luciana Aparecida Tavares, 29, entregaram Fábio Augusto, 2 anos, e Juliana, 8 meses. Ex-usuária de drogas injetáveis, a mãe descobriu que estava contaminada no momento do parto do primogênito. Dois meses depois, Almeida soube que também era portador do HIV. Desempregados e vivendo em um cortiço de São Paulo, não têm dinheiro para cuidar dos filhos. “Quando deixamos as crianças no abrigo, foi como se tivessem tirado o nosso chão”, chora Luciana. Uma vez por semana o casal visita os filhos. No momento da despedida, Fábio Augusto se desespera. Aos prantos, pede para ficar com a mãe e o pai.
A grande luta de quem trabalha com os órfãos da Aids é mantê-los junto da família. “Se os pais não têm condições de ficar com os filhos, fazemos o máximo para manter as crianças com parentes”, diz Nanci Alonso, presidente do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids, o Gapa, da Baixada Santista, no litoral paulista. Há histórias de sucesso. No Recife, a instituição Viva Rachid dá assistência a 100 crianças e adolescentes de até 17 anos. Todos vivem com algum parente. Por parente entenda-se, na maioria dos casos, avós – mulheres mais velhas que, de uma hora para outra, se vêem às voltas com os netos pequenos, alguns vítimas do mesmo mal que lhes tirou os filhos. Não fosse a ajuda da equipe do Viva Rachid, com materiais de higiene e limpeza, cestas básicas e assistência psicológica, a aposentada Antônia Francisca da Silva, de 74 anos, não teria conseguido. “Depois que minha filha morreu, o vazio era tão grande que quase me deixei entregar”, conta. “Mas o que seria dos meus netos?” A mais velha tem 12 anos. O do meio, 10. E o caçula, 7. Só a primogênita não está infectada. Eles perderam a mãe, Jacilene, professora primária, em dezembro de 1996. Ela tinha 30 anos e fora contaminada pelo marido. O pai visita as crianças todas as semanas. Mas é a avó quem cuida de verdade dos três. Regula a hora do banho, fiscaliza a alimentação, leva para passear. Nos estudos, o cuidado é redobrado. Pela manhã, todos vão à escola e à tarde freqüentam aulas de reforço. É Antônia quem tenta aplacar o peso do preconceito. Certa vez, um dos meninos chegou em casa chorando. A vizinha proibira o filho de brincar com o garoto porque ele tem “a doença”. “Tentei consolar meu neto. Por mais que eu explicasse, ele não entendia e ainda chorou muito”, lembra. “Querem assustar minhas
Infância menos sofrida – Se a situação é dramática no Brasil, na África ganhou proporções de horror. Desde o início da epidemia, nos anos 80, a Aids já fez 10,4 milhões de órfãos no continente africano. Uganda registra o índice mais alto do mundo: 1,1 milhão de crianças com menos de 15 anos. Na cidade de Masaka, 110 000 dos 342 000 meninos e meninas perderam um dos pais ou os dois para a doença. Em Lusaka, capital da Zâmbia, por causa do abandono imposto pela epidemia, o número de crianças de rua saltou de 35.000 para 90.000 em oito anos. Lá, 75% das famílias cuidam de pelo menos um órfão. As terapias mais modernas de controle da síndrome são inacessíveis para grande parte dessas populações. No Brasil, a realidade é um pouco melhor. O coquetel de remédios anti-Aids é distribuído gratuitamente. Em cinco anos, graças à eficácia das drogas, o número de óbitos foi reduzido à metade. Os doentes não apenas vivem mais. Tomados os devidos cuidados, vivem bem. “Com isso, o número de órfãos tende a cair”, afirma Pedro Chequer, coordenador do programa de Aids do Ministério da Saúde. Até lá, tem-se um longo caminho pela frente. Apesar de todos os avanços na terapia contra a Aids, apenas 40% das grávidas portadoras do HIV recebem tratamento no Brasil. As restantes só se descobrem contaminadas quando chegam ao hospital para dar à luz. O desespero com a notícia é tão grande que algumas abandonam os filhos na maternidade.
Foi o que aconteceu com Bruno, três anos atrás. Por mais de um ano ele ficou internado no hospital onde nasceu, em Porto Alegre. Transferido para a Febem, aquele menino de aparência frágil, arredio a qualquer contato, conquistou a funcionária Maria Luiza Montenegro, 29 anos. Ela levou Bruno para passar um dia em companhia de sua família. Depois outro e mais outro. Quando viram estavam todos apegados ao garoto. Em dezembro, Sônia, de 52 anos, mãe de Maria Luiza, decidiu adotar Bruno. A juíza responsável pelo processo, conta Sônia, quis saber por que ela pretendia ter como filho um menino negro, velho (3 anos são considerados idade avançada para adoção) e, além de tudo, soropositivo. “Pelas alegrias que ele nos traz”, respondeu. Segundo Sônia, a juíza parece não ter entendido do que ela estava falando. “Não podemos fazer nenhum plano para Bruno a longo prazo”, diz a mãe adotiva. “Mas ele sabe que poderá contar com a nossa ajuda sempre que precisar.” São pessoas como Sônia que proporcionam aos órfãos da Aids uma infância menos sofrida.
Com reportagem de Angélica Tasso, do Recife, e Rodrigo Vieira da Cunha, de Porto Alegre