Os muitos Bernardinhos

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Publicada em 20 de julho de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Alguém já parou para contar as qualidades atribuídas ao técnico Bernardinho?
Parentes, amigos e colegas de quadra não cansam de lembrar algumas:
obstinado, obcecado, perfeccionista, exigente, estrategista, disciplinado,
perseverante, estudioso, atencioso, guerreiro, educado, comunicativo,
autodidata, sensível, humilde, companheiro, sincero, leal, esforçado,
solidário e vitorioso. E o que pensa o carioca Bernardo Rocha de Rezende, de
43 anos, 1,85 metro, ex-levantador da seleção brasileira de vôlei, pai de
dois filhos, dezenas de títulos acumulados, fama mundial e um jeitão de
incansável trabalhador? “Confesso que fico um pouco assustado. Não vejo essa
coisa de mito. Isso é absolutamente irreal!”
Na semana passada, Bernardinho não parou um só minuto. É um hábito, quase um
vício. Proferiu palestras, visitou amigos e parentes, exercitou-se e
participou de comerciais – um deles seria gravado na sexta-feira, em
Curitiba, para uma campanha de ajuda a crianças com problemas renais. Leitor
voraz de livros motivacionais ou biografias de pessoas de sucesso, o
treinador ficou assustado com o presente que ganhou de um amigo. Era o livro
O Amor é a Melhor Estratégia, de Tim Sanders, o responsável pelo núcleo de
criação do bilionário portal Yahoo!. Leu um trecho da página 67, da edição
em português: “O técnico da seleção brasileira de vôlei masculino,
Bernardinho, por exemplo, se entrega de corpo e alma ao seu trabalho (…).”
Bernardinho admite que a pressão por sucesso está criando uma tensão que ele
não sabe até quando suportará. Para o psicólogo Gilberto Gaertner, que
trabalha com ele na seleção masculina, essa cobrança serve como estimulante
para o treinador: “Parece que quanto maior o estresse, mais ele tem clareza
nos seus atos.” Quem o vê na quadra, como o oitavo jogador prestes a entrar
no jogo, percebe que está mais comedido. Grita, quase esperneia, mas também
sabe a hora exata de acalmar seus atletas. Sinal de amadurecimento. “Muitas
vezes exagerei. Sei que não posso ser só emocional e tenho de respeitar as
individualidades dos jogadores. Quero ser um projeto em evolução.”
Projetos – Há dois anos, Bernardinho vem amadurecendo o sonho de escrever um
livro para ajudar as pessoas com suas idéias. Quer pôr no papel muitos
exemplos vitoriosos que adota no vôlei. Mas sabe que precisará dar um
formato literário ao que pensa. Bom em oratória desde os tempos do colégio e
da faculdade, quando fazia a apresentação dos trabalhos, o treinador vem se
especializando em dar palestras pelo Brasil. Poderia estar rico se sua
agenda lotada não o impedisse de atender aos cerca de 30 pedidos por mês. A
R$ 15 mil cada uma, com variações conforme o tipo de exposição, o treinador
fala sobre motivação, liderança, disciplina, perseverança, trabalho em
equipe. Na empresa de marketing esportivo que o gerencia, é tão requisitado
quanto Oscar Schmidt e muito mais que Zagallo.
“As palestras aconteceram meio por acaso”, diz Bernardinho. Segundo ele, a
propaganda boca-a-boca é a chave desse sucesso extraquadra. Garante que
aprende quando fala a empresários, dirigentes e funcionários de bancos,
consultorias e indústrias. Conta “histórias e causos”, mesclando situações
do esporte com o interesse do contratante. Jamais nega autógrafos e pedidos
de fotos ao seu lado. Essa motivação leva o economista formado pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio a pensar em se matricular num curso
de pós-graduação de administração na área de gestão empresarial. O problema,
claro, é que não tem tempo. Se tivesse, usaria boa parte dele para sua ONG,
Compartilhar, voltada para crianças carentes.
A mulher, Fernanda Venturini, ex-levantadora da seleção de vôlei, gerencia a
agenda lotada. E arca com os afazeres do casal. É ela quem está cuidando de
todos os detalhes do novo apartamento. Ele não pergunta qual vai ser a cor
dos armários, do banheiro ou do piso. Mas também não reclama. No tempo
livre, costuma ficar “relaxadão”, curtindo Júlia, a filha que tiveram há
dois anos. Se o jovem Bruno, de 17 anos, seu filho com a ex-jogadora Vera
Mossa, estiver no Rio, os dois vão jogar uma partida de vôlei na praia. “Ele
sempre procurou estar presente. Em um dos meus aniversários, estava
concentrado e apareceu de surpresa para a festa. No dia seguinte, voltou
para treinar.”
Segundo filho de cinco irmãos, todos esportistas, Bernardo, como é chamado
pelos mais íntimos, sempre fez questão de estar ao lado da família. Certa
vez, ao ser dispensado dos treinos no fim de semana, apanhou um ônibus
lotado, sentou-se no chão e foi encontrar os pais e os irmãos em Caxambu
(MG). Todos ficaram surpresos. “Parece que são duas pessoas diferentes, uma
dentro da quadra e outra com a família”, diz Rodrigo, de 45 anos, o irmão
mais velho.
Herança – Por vontade do pai, o advogado tributarista e ex-professor
universitário Condorcet Rezende, todos os filhos praticaram esportes. A mãe,
Maria Ângela Rocha de Rezende, filha de José da Silva Rocha, ex-presidente
do Vasco, era determinada em torná-lo bom aluno e a fazê-lo freqüentar aulas
de natação desde os 5 anos. Bernardinho também considera uma influência em
sua formação rígida o avô, Octavio Murgel de Rezende, ex-ministro do
Superior Tribunal Militar. Até hoje, lembra da determinação férrea do avô em
lutar contra a tuberculose. “Nunca fui craque, mas em casa era o mais
determinado. Tive o exemplo dos dois.”
Aos 7 anos, Bernardinho foi vice-campeão carioca de judô. Na época, já era
obcecado pela vitória. Na semifinal do campeonato, lutava com tanta fúria
que o pai teve de chamar sua atenção: “Meu filho, o objetivo é vencer o
adversário, não matá-lo.” Nos jogos de tênis, perdeu a conta do número de
raquetes quebradas. Era um menino agitado, tinha pesadelos em que se
imaginava disputando partidas, brigando e reclamando.
Nos estudos, era perfeccionista demais. Se tirava notas abaixo de 10, se
trancava no quarto, chorava e ficava se cobrando. “Devo ser movido a
desafios.” Aos 12 anos, aluno do Colégio Andrews, já dava mostras de seu
lado disciplinado. Numa visita à Escola de Educação Física do Exército, deu
uma aula inteira aos colegas a pedido do instrutor. Na época da faculdade,
surpreendia os professores por ir bem nas provas mesmo sem freqüentar as
aulas. O pai tirava cópias dos livros para ele ler nas viagens dos torneios.
Depois de formado, estagiou por seis meses no Banco Garantia, a convite de
André Lara Rezende. Mas as quadras o atraíram mais.
Esforço – Seu mestre nas quadras foi Bené, o primeiro treinador. Foi capitão
de quase todos os times em que jogou e seu espírito de liderança contagiava.
Num torneio infanto-juvenil, ficaria fora da disputa Rio x Bahia por
contusão. Mas o técnico Bebeto de Freitas pediu-lhe que entrasse na quadra
só para animar os companheiros. Vitória dos cariocas. Aos 20 anos, pouco
antes da Olimpíada de Moscou, em 1980, Bernardinho rompeu o menisco. Com
força de vontade, passou pela cirurgia. Na tarde do mesmo dia, deitado, já
batia bola na parede. Não perdeu o condicionamento e, em 40 dias, estava
recuperado.
O ex-jogador Renan, hoje gerente de Vôlei da Unisul, lembra dos esforços que
seu “irmão” fazia nos tempos de seleção. Nos treinos, William era quase um
velocista. Bernardinho, não. Mas, para não ficar para trás, corria muito
para chegar entre os primeiros. “Pô, de onde você tira todo esse gás?”,
perguntava Renan. Reserva de William, o atual treinador da seleção sempre
admitiu a superioridade do titular e o admirava.
Depois de ter integrado o grupo que conquistou a prata olímpica em Los
Angeles, em 1984, Bernardinho decidiu se arriscar na carreira de empresário.
Não fez feio. Assumiu parte da direção do restaurante Delírio Tropical, de
saladas e sanduíches. Deu palpites e ajudou o sócio Paulo Antônio Monteiro a
expandir o empreendimento, hoje com seis lojas. “Para mim, era o máximo”,
lembra Monteiro. Só que a experiência foi de pouco mais de seis meses.
Bernardinho partiu para Itália com Vera Mossa para treinar o capenga time do
Peruggia. Salvou-o do rebaixamento, foi campeão no ano seguinte e, depois,
campeão europeu. Treinou ainda um time masculino de Modena.
No fim de 93, voltou ao Brasil para dirigir a seleção feminina. Era o início
da “era Bernardinho”, que, desde então, resultou em 14 títulos no feminino e
10 no masculino. Em 1994, ganhou o primeiro grande campeonato como técnico,
o Grand Prix da China, versão feminina da Liga Mundial. Foi nesse torneio,
decidido numa eletrizante vitória no tie-breaker diante das cubanas, que
teve início o namoro com Fernanda Venturini, a quem considera a melhor
jogadora brasileira de todos os tempos.
Tudo começou com uma troca de olhares pelo espelho da sala de musculação.
Bernardinho afirma que foi ele o paquerado. Fernanda garante que foi ela, só
que, mais incisiva, questionou o flerte. “Todas as minhas amigas dizem que
tirei a sorte grande”, diz a jogadora.
Equipe – Supersticioso, Bernardinho prefere a cor azul e gosta de usar os
mesmos tênis. Na final da Liga Mundial, no último domingo, exibia o par da
conquista do título do Mundial da Argentina, em 2002. Perde o sono diante de
uma convocação, um corte de jogadores ou a véspera de uma final. Não se
cansa de ver e rever vídeos com partidas dos adversários. É como consegue
extravasar a tensão. Metódico, lembra com detalhes de inúmeros jogos.
O técnico prefere dizer que “Bernardinho é uma equipe de pessoas”. Mais
exatamente, a comissão técnica competente, a quem delega amplos poderes.
“Existe confiança mútua e isso motiva a todos”, resume o assistente-técnico
Chico dos Santos. “Ele é o líder de todos, mas temos nossos papéis e o grupo
está acima de tudo”, completa o médico Álvaro Chamecki. Se dá bronca, faz
caretas e parece agressivo na quadra. Essa autoridade é totalmente aceita
pelos jogadores. Sua competência lhe dá créditos para ser severo e cobrar o
tempo inteiro. “Os 100% de hoje não são suficientes amanhã e não serão o
bastante para manter nossa liderança. Esse é nosso lema”, finaliza o
vencedor.

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