O País de violência e injustiça que Asma conheceu

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Publicada em 5 de outubro de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Em 23 dias de inspeção, a relatora da Organização das Nações Unidas (ONU)
Asma Jahangir terá constatado que as violações aos direitos humanos dos
brasileiros são mais comuns do que se imagina. Há exemplos como o de um
policial acusado de matar várias pessoas assassinado antes que pudesse ser
investigado. Ou de um sobrevivente de um atentado que presta testemunho e é
morto dias depois. Ou ainda do preso que leva seis tiros dentro de um
hospital vigiado por dois policiais militares e um agente penitenciário. A
paquistanesa veio para ouvir relatos de violações passadas. Mas a surpresa é
que os casos acima ocorreram justamente enquanto ela está no País.
As vítimas desses tipos de violações são pessoas pobres, que vivem nas
periferias ou em pequenas cidades brasileiras. Os principais acusados,
policiais civis ou militares e agentes penitenciários que praticam quase
impunemente execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias. Sumárias
porque a maioria dos crimes é realizada com armas de fogo, matam rapidamente
e sem direito de defesa. Extrajudiciais porque no Brasil a pena de morte não
existe oficialmente. E arbitrárias porque não há lei que prevê esse tipo de
punição.
“Onde está dentro do nosso Código Penal que mesmo a pessoa sendo criminosa
ela tem que ser sumariamente executada”, indaga Elias Isac dos Santos, pai
de Leandro, de 19 anos, morto em novembro de 2001 após ter sido preso por
PMs. Esse é um dos casos registrados no livro Execuções Sumárias no Brasil,
1997-2003, do Centro de Justiça Global e Núcleo de Estudos Negros. Nele, são
relatados 349 casos de assassinatos praticados direta ou indiretamente por
agentes do Estado.
Na maioria dos crimes, a violência atinge o lado de baixo da pirâmide
social, criando uma nova modalidade criminal, os “pobricídios” (ou, talvez,
“paupericídios”). E como são pessoas de baixa renda viram só estatísticas de
mortos ou homicídios sem solução nos inquéritos. “A vida dos pobres no
Brasil está sendo considerada sem valor”, disse Asma Jahangir, quando esteve
em Itambé (PE).
Sem proteção – Flávio Manoel da Silva, de 24 anos, era um trabalhador rural
de Pedras de Fogo (PB), cidade próxima a Itambé. No seu último depoimento em
maio, quando pedia proteção, relatou: “Procurei várias vezes a delegacia,
mas o delegado Marcelo Jorge dizia que era amigo e compadre do cabo Cesar.
Depois me encontrei nessa delegacia com o Renan Virgulino e disse que ele e
o cabo Cesar tinham me baleado covardemente. Mesmo assim não registraram a
denúncia.” No dia 23, ele prestou igual testemunho para a relatora da ONU.
Temia pela vida. Quatro dias depois, foi morto com dois tiros perto de sua
casa por dois homens encapuzados.
O vereador Manoel Mattos lembra que Flávio Manoel da Silva, o Chupeta,
sofrera um atentado em 1999, levando cinco tiros. Tudo porque sabia que o
cabo Cesar e Renan Virgulino pertenciam ao grupo de extermínio Anjos da
Guarda, acusados de matar mais de 200 pessoas em cinco anos. Por ser viciado
em maconha, Chupeta era considerado uma “alma sebosa” a ser eliminada.
“Com essa morte, eles querem fazer imperar a lei do silêncio. Estou com
muito medo. Minha mulher e minha filha também”, admitiu o vereador Mattos.
Segundo ele, os Anjos da Guarda atuam agora em Goiana (PB), onde 11 pessoas
foram assassinadas nas duas últimas semanas. A promotora Rosemary Souto
Maior de Almeida, que denuncia a “notória participação de policiais civis e
militares” nas quadrilhas armadas da região, é outra ameaçada. “Como vamos
atuar se há grupos de extermínio nos rondando? Minha vida pessoal não vale
muita coisa aqui.”
Os grupos de extermínio não são uma novidade no País. Existem porque o
sistema legal de proteção à população é inoperante. As vítimas na sua
maioria são homens e jovens, muitos adolescentes. E não é difícil entender o
motivo. Eles tiveram passagens pela polícia ou instituição de menores
infratores, cometeram delitos, viviam em áreas dominadas pelo tráfico ou
eram inocentes que estavam na hora e no local errados. Observadores
identificam pequenos comerciantes e moradores como os mandantes dos crimes
que, sem contar com segurança, contratam os grupos para fazerem a “limpeza
social”.
Na mesma noite em que a relatora da ONU pisava em solo baiano, no dia 17, o
soldado da PM Júlio de Jesus Santos foi morto com seis tiros. As
investigações indicam que ele pode ter sido vítima de uma disputa com
policiais civis pela proteção a traficantes de Amaralina. Com a morte, nunca
se saberá se o soldado pertencia a um grupo de extermínio. Na Corregedoria,
há várias denúncias do tipo contra o militar.
Dezenas de sobreviventes, testemunhas e parentes de vítimas têm relembrado
suas histórias de dor e sofrimento. Acreditam que ao contar seus casos à
relatora da ONU terão uma chance a mais de conseguir justiça. Em Salvador,
L. denunciou a morte do irmão Carlos Silva Porto dentro da delegacia de
Paratinga (BA). “Ele foi preso em 7 de julho por um roubo de computadores na
escola em que trabalhava. Na cadeia, ficou incomunicável. Dois dias depois,
tentei visitá-lo. Não me deixaram vê-lo. Quando voltava para casa, moradores
vieram me dizer que ele já tinha morrido. Já tinham feito o pior. Os
policiais falaram que ele se enforcou, mas vimos o corpo com vários
hematomas e o pescoço quebrado.”
Custódia – A morte de presos em delegacias ou presídios deverá constar do
relatório de Asma Jahangir. Uma vez detidas, elas deveriam ser protegidas
pelo Estado. Não foi o que aconteceu com Alessandro Francisco Alves, de 21
anos, traficante preso sem drogas. Um ano atrás, já na Penitenciária Mario
de Moura Albuquerque, em Franco da Rocha, agentes penitenciários rotularam
Alves e outros dois presos como membros do Primeiro Comando da Capital, a
facção criminosa PCC.
Todas as vezes que tentou ver o filho, os agentes diziam à mãe, Rosana, que
Alves estava de castigo. Até que surgiu uma nova versão: ele havia morrido
numa briga de presos. No atestado de óbito, teria morrido de pneumonia. A
Pastoral Carcerária e a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura
denunciaram o agente Marcos Tozato e outros dois guardas por espancamento. A
mãe confirma: “Ele estava todo machucado. Depois que ele já tinha sido
enterrado, recebemos uma carta dele dizendo que seria morto.” Uma
sindicância apura o crime.
Em 18 de outubro, Guarulhos foi palco da “55.ª chacina” de 2002 na Grande
São Paulo. No noticiário do dia seguinte, mais um crime de autoria
desconhecida. Para S.G., de 15 anos, a história envolve um policial, Araújo,
que fazia a segurança particular de um mercado. Um outro garoto, parecido
com S., teria se desentendido com o policial. À noite, quando ele e mais
quatro jovens estavam na frente de suas casas, três homens armados se
aproximaram e mandaram os jovens se deitarem no asfalto.
“Ninguém tava armado. Aí pensei: ‘Vai soltar a gente agora, né.’ Deu uns
cinco segundos de silêncio. Aí, ouvi o primeiro tiro, eu comecei só ouvindo
os tiros assim. Olhei para o meu lado esquerdo, tava o meu vizinho, né. Ouvi
mais um tiro. Falei: ‘Vou morrer agora.’ Aí, comecei a me sentir tonto. Só
acordei no hospital, e já tinha sido operado”, testemunhou o jovem para o
deputado Orlando Fantazzini. Ele levou 13 tiros.
Em Ribeirão Preto, o promotor Marcelo Pedroso Goulart moveu uma ação civil
contra o Estado, a prefeitura e a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
(Febem) por causa do assassinato em série de adolescentes. De 1995 a 2002,
foram 212 homicídios – mais de duas vítimas por mês. “Muitos casos foram
arquivados, o que indica a ineficácia da polícia ou a falta de vontade de
investigar.” O promotor Luiz Henrique Pacini, que investiga os grupos de
extermínio, não tem dúvida do risco que todos correm: “Começam com essa
história de matar bandido e depois matam quem eles acham que seja bandido.”
Um dos casos investigados por Pacini é o de Sandro Lima. Traficante, ele foi
executado em março de 2002 dentro de uma sala cirúrgica, na presença de
médicos e enfermeiras. Testemunhas identificaram os três homens como sendo
policiais civis, que depois foram presos por roubo de carga. Crime muito
parecido com o ocorrido no dia 25, quando a relatora da ONU visitava o Pará.
Dois homens encapuzados invadiram o hospital municipal de Marabá e deram
seis tiros no preso Ronam Claro Rodrigues. Um agente prisional e dois PMs
que deveriam dar segurança ao detento serão interrogados.
Ameaçados – Na capital, os moradores de Sapopemba vivem assustados com a
violência policial. A mãe de D.S., de 17, é uma delas. Em 21 de julho, seu
filho levava uma garota para a casa dela, quando foram abordados por um PM
que estava de folga. Ele matou a tiros D. e estuprou a jovem. O policial já
está preso. “A mãe que tem filho vagabundo não espera outra coisa a não ser
que ele vai morrer pela polícia, pelos bandidos ou vai ser preso. Mas meu
filho queria ser artista para tirar a gente daqui.”
Em agosto, R.S., de 18 anos, e um comparsa saíram para roubar uma moto em
Sapopemba. Descobriram que a vítima era um policial. Na troca de tiros,
atingiram o PM, que vestia um colete a prova de balas. Fugiram
separadamente. O colega foi preso e levado para uma delegacia após tentar
fazer uma família de refém. R. foi levado num Santana com vidros
escurecidos. Testemunhas reconheceram quatro PMs dentro do veículo, que dava
voltas pelo bairro. “Quando largaram o meu irmão, ele ainda tentou correr,
apesar do tiro no peito”, diz G., de 24. “Adianta fazer denúncia? Não vai
ter resultado.”
A Ouvidoria das Polícias (www.ouvidoria-policia.sp.gov.br), que recebe
denúncias pelo telefone 0800-17-7070, vê com preocupação os índices de
criminalidade. Em 2002, 147 policiais foram mortos em combate. Do outro
lado, 825 pessoas morreram nesses confrontos. É o dobro de 1996, mas
inferior ao de 1992 – ano dos 111 mortos no Carandiru. “As polícias sempre
tendem a agir com violência. O Estado precisa pisar no freio dela. Mas
quando um policial é acusado de matar sem necessidade e o Estado defende
isso, ele está pisando no acelerador”, diz o sociólogo Guaracy Mingardi.
O ex-ouvidor Fermino Fecchio fez um estudo monstrando que os policiais
alegam com freqüência que mataram em casos de “resistência seguida de
morte”. Antes do estudo, a ação policial sequer era julgada. Hoje, é
encaminhada, mas os julgamentos raramente resultam em condenação nos casos
de abuso de autoridade. “A versão é deles, contra mais ninguém”, diz o
promotor Carlos Cardoso. “Dizem que foram atender a uma ocorrência, o
bandido reagiu e tiveram de matá-lo.”
Demissões – A Secretaria de Segurança Pública afirma que apura todos casos
de “suposta existência de grupos de extermínio”. Nos de Ribeirão Preto, as
denúncias estariam baseadas em “depoimentos de pessoas muito próximas às
vítimas” e não há provas da participação de policiais civis. Em Guarulhos,
quatro PMs estão presos e seis foram afastados. O órgão diz ainda que já
foram demitidos 690 policiais só neste ano. São eles que maculam a imagem de
uma corporação, com seus mais de 90 mil homens.
O ouvidor Itajiba Cravo, ex-promotor da Justiça Militar, acredita que a
morte de pessoas pobres envolvidas em delitos é tolerada por parte da
população. No seu último júri de um policial acusado de matar um jovem,
ouviu do advogado de defesa: “Se não era bandido, ia ser.” O rapaz foi morto
com cinco tiros e seu único crime era ter uma tatuagem na perna e um cigarro
de maconha.

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