Publicada em 8 de maio de 2005
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Enviado especial
CURITIBA
No dia 8 de maio de 1945, Wilhelm Brodhage só pensava em cumprir mais uma
missão. A ordem era levar uma dezena de soldados para uma prisão na
Checoslováquia. No meio da viagem, o trem parou e gritos ecoaram de vagão em
vagão: “Acabou a guerra, acabou a guerra.” A felicidade estampada no rosto
dos jovens e inexperientes militares checos que adentraram na composição
representou um duro golpe na vida de Brodhage. “Entregamos nossas armas e
nos levaram como prisioneiros para um estádio de futebol.” Ele pertencia ao
lado perdedor. Era um sargento da Força Aérea alemã.
A ironia dessa história é que Brodhage não era alemão, mas brasileiro.
Carioca, nascido em 1924 no então Distrito Federal do Brasil. Filho de
alemães que migraram para o Rio depois da 1.ª Guerra Mundial. Apesar de já
estar bem estabelecido no País, o pai, Heinrich, teve de voltar à Alemanha
para ajudar a cuidar dos negócios do avô. Brodhage tinha pouco mais de dois
anos. Em Hamein, cidade próxima de Hannover, cresceu e viveu os anos entre
guerras. Foi testemunha da ascensão do ditador alemão.
“A Alemanha, de um país onde tudo era ruim, em 2 ou 3 anos mudou
completamente. Em 1933, era uma coisa nova no mundo. Antes de Hitler,
tínhamos 6 milhões sem trabalho. Em pouco tempo, já não havia quase
desempregados”, lembra Brodhage. Na juventude, aprendeu o sentido de
palavras como “patriotismo”, “supremacia” e “nação”, participando de
atividades como construir estradas por todo o território alemão. Fazia parte
da lógica do Movimento Nacional-Socialista atrair os jovens para a causa
nazista.
“Naqueles anos, só havia um único partido. Na escola nos diziam que na
guerra de 14 a 18 muitos dos nossos morreram. A Alemanha estava errada em
ter feito outra guerra?”, indaga Brodhage. “Na época, não entendíamos. Até
hoje não entendo. Acho que alguém achou que devia fazer e fez.” Em 1939, o
brasileiro cada vez mais alemão ingressou num curso de mecânica de avião na
fábrica da BMW. Era um negócio próspero, muito mais do que o ramo de
laticínios da família. A 2.ª Guerra já havia sido iniciada, mas ele só
queria aprender uma profissão.
Em janeiro de 1942, ao completar 18 anos, alistou-se no Exército alemão. Sua
única liberdade foi decidir em que área queria ingressar. “Queria ser
piloto, todos queriam, mas para não entrar na infantaria fiquei naquele
troço de motor de avião.” O que o poupou de participar imediatamente dos
combates. No começo, ouvia a guerra, pelo rádio, mas não a via. Estava longe
do front. Pouco depois, quando as tropas alemãs foram invadindo outros
territórios, começou a trabalhar em países como a Polônia e a Rússia. E ele
se viu obrigado a pegar em armas, mais para se proteger dos bombardeios dos
Aliados.
Quase no fim do conflito, ainda acreditando que estava do lado certo,
Brodhagen foi atingido pelos russos num combate que, hoje, ele custa a
lembrar. Atirou na direção do inimigo, mas nunca soube se acertou alguém.
Prefere não saber. Só que para seu azar uma bala perfurou sua perna direita,
na altura do joelho. Com o ferimento, passou a participar de operações mais
leves. Como a de levar prisioneiros ingleses já no último dia da guerra.
Ao ser preso pelos checos, sofreu por ser alemão, um derrotado. “Não
comíamos, fazíamos buracos à mão para dormir, defecar.” Como não podia andar
muito, por causa do ferimento, Brodhage foi enviado após 15 dias para
Auschwitz, o campo de concentração na Polônia, onde permaneceu por algumas
semanas. “Era como uma caserna. Os judeus já haviam ido embora. Perto de
Auschwitz, havia uma fábrica de armamentos onde tínhamos de ir trabalhar.”
Depois de 40 dias, foram interrogados e os sadios, transferidos para uma
mina de carvão na Rússia.
NOVOS SOFRIMENTOS
Brodhage e cerca de mil alemães prisioneiros de guerra tinham de cavar poços
para pegar água. Luz só a de pequenos postes instalados nas muralhas de
segurança. “Era uma revanche dos russos, mas também porque eles precisavam
de trabalhadores, pois muitos dos deles haviam morrido na guerra.” O
brasileiro só conseguiu mandar uma carta cinco meses depois, avisando que
estava vivo. O pai fora preso pelos ingleses. A mãe havia se mudado com os
três irmãos para outra cidade. Os imóveis da família estavam, no fim da
guerra, nas mãos de americanos. Sua correspondência nunca foi entregue.
Dois anos depois, classificado como “inapto”, pôde ser solto. Primeiro teve
de passar pela então Alemanha Oriental, controlada pelos russos. Foi
interrogado. Deu o nome dos pais, o endereço e conseguiu o salvo-conduto.
Foram 20 dias de espera. Ao chegar de trem à Alemanha Ocidental, uma cena
que jamais se esquecerá: “Do lado onde já não tinha mais nada a ver com os
russos, vi não sei quantas mulheres com cartazes esperando notícias de seus
maridos, filhos e parentes. Puta que pariu.”
Reencontrou a mãe e os irmãos. O pai, só meses depois. Ao chegar a Hannover,
a Alemanha próspera dera lugar a um país onde mulheres faziam fila para
comprar pão com tíquetes fornecidos pelo governo. Passou meses sem conseguir
trabalhar, traumatizado pelos tempos de batalha. Acordava sobressaltado
diversas noites. Foi ao médico. Mas ao menos era bem tratado nas ruas.
Ex-militares não precisavam pagar quase nada.
RUMO AOS TRÓPICOS
Brodhage arrumou um emprego numa fábrica de caminhões, controlada por
ingleses. Foi quando ouviu de um colega que uma fábrica de Berlim estava
recrutando pessoas com interesse em trabalhar no Brasil. “Eu era brasileiro.
Fiz uma carta em alemão, não sabia nada de português, mas eles me
responderam. Queriam que eu provasse que era brasileiro.” Em 1947, a bordo
do navio Santarém, tomado dos alemães e dado ao governo brasileiro depois da
1.ª Guerra, embarcou rumo ao Rio de Janeiro. Deixava um país em reconstrução
e destroçado pela guerra, por outro, de 42 milhões de habitantes e cuja
maioria ainda vivia no campo.
No mesmo dia da chegada, foi para São Paulo, onde reencontrou primos que
também lutaram na guerra. Em lados opostos. Gerd Emil Brunckhorst combateu
pela Força Expedicionária Brasileira. Seu irmão Paul Heinrich havia sido
enviado pequeno para a Alemanha, onde acreditavam que podia ser curado do
nanismo. Este nunca mais voltou. No Brasil, Brodhage casou-se com Charlotte,
que conhecera na Alemanha e pedira em casamento por uma carta. Têm três
filhos.
Brodhage não sente vergonha por ter lutado do lado perdedor. Tampouco sente
orgulho das atrocidades do nazismo. “Tudo aquilo que fiz na guerra não tem a
ver com o bem ou o mal. Fiz apenas uma coisa que mandaram nos fazer”, diz.
“Na guerra temos de matar. E, se vamos matar, podemos estar assassinando
alguém que é muito bom.”
Hoje, 60 anos depois, prefere ficar distante das comemorações e discussões
sobre o fim do conflito. Evita conversar, por e-mail, com os amigos alemães.
Lá, só ficam revolvendo o passado, diz. “Todo mundo estava junto, a
juventude não tinha escolha. Fazíamos inconsciente o ‘Heil, Hitler’, no
front. Era só uma continência”, afirma esse hoje pacato brasileiro que
prefere ser esquecido e esquecer o que passou.
Célula no Brasil era a maior fora da Alemanha
Em 1939, quando começava a 2.ª Guerra, a polícia política de Getúlio Vargas
saiu à caça de nazistas no Brasil. Num certo dia daquele ano, Friedrich Karl
Gustav Schulze não pensou duas vezes. Pegou seu carro e levou o cadastro de
filiados do Partido Nazista para o porão do consulado alemão, na Avenida São
Luis, no centro de São Paulo. Seu nome estava no cadastro, embora nunca
tenha sido, de fato, um partidário de Adolf Hitler. Mas ele temia ser visto
como um simpatizante.
Gustav Schulze constava da lista porque pertencia à parte social do partido.
Como outros jovens, era assediado pela arbeitsfront, as frentes de trabalho
onde os nazistas tentavam atrair os relutantes em aderir ao movimento –
mesma tática adotada na Alemanha. Ele era convidado a participar das
reuniões políticas. Detestava. Recebia ofertas para ocupar um cargo no
partido. Desprezava. “Não havia líderes. Só uns palhaços que levantavam a
mão (faz o sinal de ‘Heil, Hitler’).”
Mas do lado de cá do Atlântico a sedução do discurso da Alemanha próspera
feito por Hitler e Joseph Goebbels, o propagandista do nazismo, arregimentou
uma legião de alemães. Entre 1928 e 1938, o partido atuou com liberdade no
Brasil. Reuniões públicas em clubes e salões eram anunciadas por jornais do
movimento nacional-socialista, como o Deutscher Morgen (“Aurora Alemã”),
escolas enalteciam o nazismo e no 1.º de Maio fábricas alemãs hasteavam
bandeiras suásticas.
Eficientes, os nazistas no Brasil reuniram quase 3 mil membros para o
partido. “Era um perigo em potencial”, afirma a historiadora Ana Maria
Dietrich, do Núcleo de Estudo de História Oral da Universidade de São Paulo.
“O alemão que não se professasse pelo nazismo era considerado um traidor da
pátria.”
Há dez anos, a pesquisadora se dedica ao tema. Primeiro vasculhou o arquivo
do Departamento Especializado de Ordem Política e Social, a polícia política
de Getúlio Vargas. Nos documentos, descobriu como a célula brasileira se
desenvolveu e se tornou a maior fora da Alemanha. O nazismo esteve presente
em 83 países com 30 mil integrantes. Há dois anos, ela pesquisou nos Arquivo
Federal, Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e Instituto de
Relações Exteriores de Stuttgart.
Com um livro no prelo, Caça às Suásticas, e concluindo o doutorado, Ana
Maria defende a seguinte tese: o nazismo tropicalizou-se no Brasil. O que
não foi bem visto pelo 3.º Reich. As duas hipóteses: a miscigenação dos
alemães – muitos chegaram a pedir ao governo alemão autorização para se
casar com brasileiros –, e a influência e penetração do integralismo entre
os nazistas.
Na Alemanha, Ana Maria descobriu documentos valiosos como o de uma carta de
novembro de 1937 em que Getúlio Vargas se dirige a Hitler como “grande e bom
amigo” e reforça seu desejo de “estreitar, cada vez mais, as relações de boa
amizade, felizmente existente entre os dois países”. Em março de 1938, antes
da proibição do Partido Nazista e de outras agremiações políticas
estrangeiras, Getúlio se reuniu com o embaixador alemão Karl Ritter e
ofereceu como um agrado pelo veto sacas de café. Segundo a historiadora, ali
surgiu um ruído nas relações diplomáticas.
De 1938 até o fim da guerra, o partido nazista atuou clandestinamente no
Brasil. Alguns de seus membros foram perseguidos e presos. Mas outros tantos
caíram nas garras da polícia getulista por motivos tolos como falar alemão
em público. Com a derrota da Alemanha, o partido no Brasil é dissolvido. “O
nazismo nunca teria dado certo, porque os alemães que vivem aqui mais de 5
anos já são muito abrasileirados para se acostumar com o regime de lá.
Estamos num País tropical”, resume Gustav Schulze. E.N.