No Brasil, pomeranos buscam uma cultura que se perde

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Publicada em 13 de fevereiro de 2005
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
DE PANCAS, NO ESPÍRITO SANTO
Pancas é uma cidade habitada por pessoas diferentes. Em muitos sentidos. Se
dependesse da vontade delas, continuariam assim, porém esquecidas. Nas
serras do Espírito Santo, vivem quase 500 famílias de descendentes de
europeus, de um país que já não existe, a Pomerânia. Guardam no corpo e no
jeito a marca dos antepassados. Há uma maioria de loiros de pele claríssima
e olhos azuis. Tímidos, ressabiados, mas generosos aos que conquistam sua
confiança. Por décadas, eram só pequenos agricultores. A vida deles mudou há
dois anos, quando souberam que suas terras podem virar um parque nacional.
Assustados, descobriram ainda que seu maior patrimônio está ameaçado: os
pomeranos são cada vez menos pomeranos.
Diferentes dos alemães de Santa Catarina ou dos italianos da Serra Gaúcha,
os pomeranos preferiram se isolar. Até a quarta geração de descendentes,
pouco se integraram ao Brasil, preservando as tradições. Coisas simples,
como as diversas superstições, o respeito aos mais velhos, a religiosidade
luterana, o patriarcalismo e, sobretudo, a dedicação à terra. Mas a
modernidade, simbolizada pela televisão e seus ensinamentos nada pomeranos,
mudou esse universo.
Até os anos 70, o rádio nem era ligado. Servia apenas como objeto de
decoração numa casa pomerana. Só na década seguinte chegaram as primeiras
TVs. No último censo, em 2000, oito de cada dez pomeranos tinham um
aparelho. “A estrada era a televisão da gente”, lembra Astomiro Romais, o
caçula de uma família de dez filhos. Da varanda da casa, ao pé da Pedra da
Agulha, via as pessoas caminhando ou de bicicleta. De lá imaginava ou
conhecia as histórias dos poucos que chegavam de fora. Era assim a vida em
Pancas.
Por terem vivido isolados, os mais velhos apenas falavam pomerano com os
filhos dentro de casa. Tanto que até os anos 80 havia aqueles que só se
comunicavam no seu idioma. Em 1981, um juiz prendeu um casal de pomeranos
por não falarem português e confiscou o título de eleitor de outro,
alegando: “Analfabeto não vota.”
O trauma surtiu efeito. Jovens, netos e bisnetos dos primeiros imigrantes
passaram a ter vergonha de falar a língua nativa. E esse é o risco maior. “O
pomerano vai estar logo ameaçado”, explica o lingüista e antropólogo Ismael
Tressmann. “Se não incentivarem pais e escolas a voltarem a ensinar o
idioma, ele pode ser declarado extinto. O latim é um exemplo.”
O Brasil, e especificamente o Espírito Santo, guarda a maior comunidade de
falantes pomeranos do mundo. Começaram a chegar por volta de 1870, quando
Thereza Christina Maria, mulher de d. Pedro II, promoveu a vinda dos
primeiros para o País. Vinham com a promessa de viverem em produtivas e
estruturadas colônias para imigrantes europeus. Para cada colono, 25 a 30
hectares. Foram enganados. As propriedades eram poucas e pequenas, o que
logo fez muitos migrarem para outras regiões. Restaram-lhe terras nos pés
das montanhas capixabas.
AMEAÇAS
A origem dos pomeranos é marcada pela busca de espaço para sobrevivência.
Viviam em terras do sul do Mar Báltico, cobiçadas por alemães, poloneses,
dinamarqueses e suecos. No século 12, enfrentaram mais de 20 guerras. De
1128 a 1400, viraram dependentes comercial e culturalmente dos alemães –
fugindo dos temidos poloneses. Mais tarde, já no século 19, suas terras
serviram de passagem para as tropas de Napoleão. No Congresso de Viena,
surgia a Província Prussiana da Pomerânia.
Nos anos 1800 a 1900, mais de 330 mil pomeranos migraram para os Estados
Unidos, mas lá não se isolaram. Para o Brasil, vieram 30 mil, que se
mantiveram em comunidades fechadas. Fugiam de novas ameaças, como depois da
1.ª Guerra, quando os que ficaram permaneceram sob o domínio da Polônia, ou
da 2.ª Guerra, quando foram expulsos de suas terras por soviéticos e
poloneses. No final, 1,8 milhão de pomeranos orientais foram obrigados a
refugiarem-se na parte ocidental. E esta acabou nas mãos da Alemanha
comunista. A Pomerânia desaparecia do mapa.
Aos pomeranos que vieram para o Brasil, o período entre guerras foi o pior.
Em 1930, no governo Getúlio Vargas, foram proibidos de falar pomerano e eram
caçados pelos camisas-verdes. “Invadiam as casas, reviravam tudo em busca de
livros em alemão, queimavam Bíblias”, lembra Geraldino Romais, irmão de
Astomiro. As famílias, desesperadas, corriam para o mato. Pastores
luteranos, que rezavam em alemão, foram obrigados a pregar só em português.
TRADIÇÕES
Por essa história de perseguições, é que os pomeranos se enchem de orgulho
quando relembram o passado. Foi o que fizeram os Romais há duas semanas em
Pancas. Dez irmãos reuniram-se na casa que já fora dos avós, falaram
pomerano, viram vídeos e fotos, lembraram-se das superstições. “Meus pais
diziam que para aprender a nadar tinha de engolir um lambari vivo. Engoli e
quase morri afogado”, lembra Daniel, de 53 anos, hoje gerente bancário no
Rio Grande do Sul. Lindolfo, de 63 anos, recorda que toda criança selava seu
destino no primeiro aniversário ao escolher entre um pão (não faltaria
comida), uma moeda (seria rico) e a Bíblia (viraria religioso).
Como nos bons tempos da concertina, um instrumento da família do acordeão
fabricado só na Alemanha, cantaram e bailaram. Florêncio, de 72 anos, o mais
velho, era o músico. É o único da numerosa família que toca a concertina,
tradição que vem se perdendo. “Somos muitos porque de dia o pai e a mãe
viviam na cultura, e à noite na criatura.” Coube a Bertílio, o sexto filho,
ser o primeiro a estudar fora. Tinha 15 anos, quando foi para um seminário
em São Paulo. Nos anos 60, pomeranos raramente saíam de perto dos pais.
HERANÇA
Em Pancas, o isolamento fez com que muitos parentes casassem com parentes. O
mesmo ocorreu em outras cidades de influência pomerana, como Santa Maria de
Jetibá, Laranja da Terra, São Domingos e Vila Pavão. Edna Borcarte
Verfloite, de 48 anos, tem parentesco com Adriano Borchardt, de 57, apesar
da diferença de sobrenomes. Escrivães nunca fizeram questão de registrá-los
corretamente. Edna casou-se com um belga; Adriano com outra pomerana. Ambos
vêem nos filhos a dificuldade de preservar a cultura que herdaram dos pais.
“A língua quando morre, a cultura morre junto”, diz Edna, uma farmacêutica
de produtos naturais que atende a muitos da região. Com os pacientes,
percebe que muitos gostariam que as escolas voltassem a ensinar pomerano.”
Ela e suas filhas falam pouco o idioma. “Sem partilha, os filhos vão para
outras áreas”, explica Borchardt. Dono de três pedaços de terra, num total
de 33 hectares, e pai de três jovens, ele vive hoje da venda de produtos
como bolos, limão e porco na feira pomerana. Ganha pouco, o que dá poucas
perspectivas para os herdeiros. Seu filho mais jovem neste ano fará
faculdade e sairá de Pancas.
HÁBITOS NOVOS
“Hoje, se der uma concertina de presente para um rapaz, você não vai estar
dando nada para ele”, diz Fontim Klemz, de 81 anos. Ex-lavrador, mascate,
caminhoneiro e comerciante, lembra que palavra empenhada e vida comunitária
sempre foram virtudes entre os pomeranos. “Na época dos mil réis, se
emprestava dinheiro, mas não se falava em juros. O importante era a
prosperidade de todos.” Mutirões erguiam casas. Eram comuns plantio e
colheita na terra dos vizinhos em pior situação.
“Faz parte da cultura dos pomeranos ir à igreja”, diz o pastor Sidney Retz.
A diferença é que a igreja deixou de ser o principal elo entre eles. No
passado, chegavam aos cultos de 2 a 3 horas antes e levavam outro tanto
antes de voltar para casa. Hoje, chegam em cima da hora e permanecem pouco.
“O pomerano acompanha a pós-modernidade, com o núcleo familiar se
desintegrando.”
Aos 88 anos, Luiza Ohnesorge lembra com vagareza das coisas do passado. Mas
mostra convicção de que antes a vida era mais generosa. “Aprendíamos uns com
os outros. Hoje é muito mais difícil. Está tudo misturado.” E é por isso que
notícias de que um parque (veja ao lado) pode expulsá-la de sua pequena casa
a tiram do sério. “Vamos para onde? No mundo já estamos. Sair para quê?”
Para pomeranos como Luiza, a Pomerânia feliz e livre de conflitos e guerras
existiu no Brasil.
A difícil luta pela preservação da língua
DICIONÁRIO: Há estimados 120 mil pomeranos no Brasil. Em cidades de maior
concentração, como Santa Maria de Jetibá, a tradição vem sendo mantida de
pais para filhos. Mas sem o ensino do idioma, parte da cultura começa a se
perder.
O lingüista antropólogo Ismael Tressmann é um dos resistentes dessa cultura.
No segundo semestre, deve lançar o Dicionário de Pomerano, a primeira obra
do gênero. Até agora recolheu mais de 15 mil verbetes. É o primeiro passo
para se criar a gramática pomerana. A grande dificuldade é que se trata de
uma linguagem ágrafa, isto é, não tem escrita. “Ela tem verbos compostos que
são muito complexos, como nas línguas indígenas.”
Preocupado com a preservação dessa cultura, o governo do Espírito Santo e
cidades de grande concentração de descendentes terão aulas de pomerano ainda
em 2005. Ao contrário da perseguição do idioma que houve no passado.

Quando preservar a mata atlântica se tornou caro
PANCAS
Quem chega às cidades de Pancas e Águia Branca, no norte do Espírito Santo,
deve se perguntar: por que essas maravilhosas e gigantescas montanhas de
granito não fazem parte de um parque? Na verdade, elas fazem, ao menos no
papel. O Parque Nacional dos Pontões Capixabas é fruto de um decreto para
preservar a mata atlântica e as formações rochosas, mas cuja única
conseqüência até agora foi causar um grave problema social. Se já estivesse
em vigor, milhares de famílias de imigrantes teriam de sair de suas terras.
Pequenos agricultores virariam sem-terra. Indignados e sem saber o que pode
lhes acontecer, eles prometem resistir.
“Não concordamos que as famílias saíam das propriedades”, avisa Erivaldo
Bergamaschi, coordenador do Movimento de Pequenos Agricultores de Águia
Branca. Foi essa organização que, no ano passado, conseguiu interromper o
cadastro de terras e lavradores, etapa necessária para o Ministério do Meio
Ambiente decidir o futuro dessa área de proteção. “Por que o governo cria
vários parques para preservar e ao mesmo tempo financia o plantio em larga
escala de eucalipto no Estado?”
No fim do seu governo, Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto para
criar o parque de 17,4 mil hectares. A intenção inicial proposta pelo
Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica era proteger
todos os pontões rochosos (um dos maiores complexos de inselbergs do mundo),
numa área de 110 mil hectares, e o que restou da mata atlântica.
Resultado: dezenas de mineradoras continuam destruindo os pontões. Carretas
com pedras de 30 toneladas saem dali direto para o Porto de Vitória. O
granito brasileiro vai requintar casas e prédios da Itália e da China. Como
foi criado, o parque poupa os destruidores desse patrimônio. “Infelizmente,
pedras símbolos da região ficaram de fora, como os Três Pontões”, critica o
prefeito Jaílson José Quiuqui (PMDB), de Águia Branca, cujas terras comporão
30% da área do parque. Os outros 70% ficam em Pancas.
Proteger é uma necessidade num Estado que devastou o mais ameaçado bioma do
País, com suas diversas orquídeas, bromélias, meriânias e árvores frondosas
como jequitibás, perobas-rosa, ipês e jacarandás, além da variedade de
animais. O paisagista Burle Max considerou os pontões capixabas como o lugar
mais bonito do mundo, com a série de pedras de mais de 500 metros de altura
torneadas pelas matas. “Os pontões e a mata não estão sendo preservados”,
atesta Clayton Ferreira Lino, presidente do conselho.
Outra ameaça vem dos próprios lavradores, que aos poucos foram avançando
sobre a mata. Plantar em pequenas propriedades no Brasil é caro e rende
pouco. Isso, aliado à crescente divisão de terras entre as gerações que iam
surgindo, fez com que áreas de mata atlântica fossem destruídas para ceder
espaço a culturas de café, milho e subsistência e ao pasto. “Quem está
desmatando é porque não tem mais condições de subsistência própria”, diz o
prefeito de Pancas, André Cardoso (PMN).
Só que a área delimitada pelo parque nacional guarda os poucos restos de
vegetação preservados. Estima-se que até 16% do verde está intacto – menos
que os 20% exigidos por lei, porém mais que os 7% da cobertura original em
todo o País. Fora dele, a devastação foi quase total, com enormes cafezais e
pastos avançando sobre a mata e os morros. Os minifúndios da agricultura
familiar que deu certo estão sendo sacrificados pelos destruidores.
PRESERVAÇÃO
A história de Cristiano Gerhske, de 50 anos, um camponês pomerano é um
exemplo dessa contradição. Herdeiro de terras desbravadas pelo avô, recebeu
do pai um patrimônio inestimável, uma árvore peroba-rosa. “Ele dizia que se
precisasse seria um trunfo para minha vida. É um pau que tem muito valor, dá
para fazer uma casa inteira. Mas agora não vale nada.” Com o decreto do
parque, ele e todos os proprietários atingidos estão proibidos de cortar
madeira – ao contrário dos que ficaram fora dos limites.
Gerhske não foi o único que preservou a mata. Muitos outros fizeram o mesmo,
como Juliberto Stur, um pomerano de 52 anos. Ele e a mulher, Nair, levam uma
vida pacata em Pancas. No seu terreno de 28 alqueires, mais da metade é
preservado. “Gosto muito de plantar e colher, mas admiro mesmo é ver essa
floresta de pé”, diz com uma sinceridade comprovada no quintal.
Sagüis-de-cara-branca, bugios, macacos-prego, jaguatiricas, pacas e quatis
são vistos com freqüência nas terras dos Sturs. Estão ali porque há perobas,
jequitibás, sapucaias, ipês preto e amarelo, angelins e sucupiras em
abundância. Stur caminha descalço, bebe água deitado numa das rochas onde
brotam nascentes, veste roupas simples e fala com os animais e plantas.
Cuida da roça, do gado e do criatório de peixes, mas gosta mesmo é de ver
como crescem as 1.500 árvores de replantio. O decreto prefere vê-lo fora
dali.
DEMARCAÇÃO
“Quando a gente viu um helicóptero vermelho sobrevoando a região, achamos
que era o avião do Lula”, diz Stur. “Disseram que era para caçar bandidos,
mas depois soubemos que era para demarcar o parque.” O sobrevôo ocorreu em
novembro de 2002. Em Brasília, onde as coisas são decididas por meio de
despachos e circulares, passou a consulta pública para a criação do Parque
Nacional dos Pontões Capixabas.
Pessoas de todo o Brasil palpitaram. Alguns do Distrito Federal, Rio Grande
do Sul, Bahia e Paraíba. Ambientalistas defenderam a nova área de
conservação. Justificativas bizarras foram anexadas ao processo, como a que
defendia a criação do parque por ser “de extrema relevância, uma vez que
estamos no ano ‘simbólico’ das montanhas”. Só os moradores de Pancas e Águia
Branca não foram consultados. Nenhuma audiência pública foi realizada. “O
erro foi da incompetência de técnicos que não respeitaram os trabalhos de
criação do parque que estávamos fazendo”, diz Ferreira Lino.
Em fevereiro de 2003, os habitantes da região souberam que teriam de sair.
Desde então, e por pressão do deputado Fernando Gabeira (PV), que encampou
essa briga ao visitar a comunidade pomerana no Estado, o Ministério do Meio
Ambiente e Ibama tentam resolver o impasse. O levantamento fundiário e
social está sendo feito. Mas nem isso assegura a permanência dos pequenos
lavradores nas terras que foram de seus antepassados, desde que chegaram por
volta dos anos 20.
“O que fizemos foi segurar o homem no campo”, protesta Aguilar Godio, de 42
anos, filho de imigrantes italianos. Distribuindo terras entre os
descendentes, eles sustentavam famílias em pequenas propriedades. E não
faltaram dificuldades, como a falta de luz elétrica, que só chegou em 1975.
Godio não entende como agora, quando acaba de construir uma nova casa com
financiamento federal, se vê obrigado a abandonar suas terras. “As cidades
hoje estão entupidas de gente. Aqui somos produtivos.”
SAÍDA
“A nossa luta é pelo fim da desapropriação”, diz Patrícia Stur, de 26 anos,
filha de Juliberto e Nair e presidente da associação de amigos de
proprietários dos dois municípios atingidos pelo parque. “A melhor solução
seria a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) ou uma nova
delimitação em formato de mosaico.” A APA permite que particulares
permaneçam dentro delas, explorem as terras, mas preservem as matas nativas.
A delimitação em mosaico prevê um parque nos pontões e na vegetação ao seu
redor.
“O maior dano que causaram foi sentimental, pela falta de respeito ao nosso
povo”, acrescenta Patrícia. O seu empenho nessa causa é tão grande que em
abril do ano passado ela decidiu se casar no estilo pomerano. Foi uma forma
de mostrar que a cultura de seu povo deve ser respeitada. Na Pomerânia, as
mulheres usavam vestidos pretos na cerimônia como um protesto pela violação
sexual que sofriam dos senhores feudais antes do casamento.
Patrícia pesquisou em livros e museus, descobriu que a última vez que uma
outra noiva se casou de preto no Espírito Santo foi em 1920, organizou a
festa de três dias de duração, encontrou músicos para tocar a concertina,
chegou de charrete, participou do baile de quebra-louças, e viu conterrâneos
mais velhos declamarem versos em pomerano. Vestiu-se de preto, em protesto à
criação do parque. E.N.

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