Publicada em 2 de junho de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Um estudo inédito mostra que a região que deu origem ao presidente Luiz
Inácio Lula da Silva é a que melhor paga aos metalúrgicos no País. Realizada
em 17 municípios brasileiros que possuem indústrias automobilísticas, a
pesquisa Do Holerite às Compras compara a renda do trabalhador com seu poder
de consumo. No ABC paulista, essa diferença é de 7%, o que significa, em
tese, que o assalariado pode até pensar numa poupança. Em Taubaté, o
superávit salarial é de 5%. Nas demais cidades, que inclui pólos industriais
como os de Betim, Curitiba e Camaçari (BA), o contracheque não é suficiente
para pagar todas as contas.
A maior diferença entre salário e poder de compra ocorre em Sete Lagoas
(MG). Lá, o trabalhador gasta 252% a mais para comprar a cesta básica de
produtos e serviços (alimentação, habitação, transportes, saúde e educação)
se comparado com um operário de São Bernardo do Campo. “Com exceção do ABC e
de Taubaté, no restante dos municípios as empresas devem salário ao
trabalhador”, diz o vice-presidente do Sindicato de Metalúrgicos do ABC,
José Lopes Feijóo, que encomendou a pesquisa ao Departamento Intersindical
de Estudos Sócio-Econômicos. O estudo derruba a tese de que os salários em
outros municípios podem ser mais baixos porque o custo de vida é menor. E
confirma que a região berço da vida política de Lula tem a mais valorizada
mão-de-obra nacional.
Para Feijóo, os bons salários dos metalúrgicos do ABC devem ser creditados à
presença de um sindicato forte. Ele rebate as críticas de que o custo de um
trabalhador na região é mais inflacionado e, por isso, o “custo ABC” teria
afugentado muitas indústrias. “Essa é uma grande inverdade. Os empregos do
passado se foram porque houve reestruturações e a adoção de novas
tecnologias que não incorporaram mão-de-obra. Ao mesmo tempo, não ocorreu a
expansão da economia. É uma combinação explosiva.”
Transformações – São Bernardo do Campo é um dos melhores exemplos das
transformações que atingiram as cidades industriais. Em 1981, possuía 824
indústrias. No fim dos anos 80, esse número passou de 1.500, em 2000, chegou
a 1.932 fábricas, e no ano passado, caiu para 1.672. E como em quase todo o
País, os setores de comércio e de serviços compensaram essa queda. Hoje
esses dois ramos da atividade econômica contratam mais do que as indústrias.
No início dos anos 90, a indústria era a que mais empregava.
O ABC chegou a ter, nos anos 80, cerca de 200 mil metalúrgicos. Com a
robotização, melhores processos produtivos e o corte de custos, esse número
caiu para 100 mil. A Volkswagen, que tinha mais de 40 mil empregados, hoje
tem só 15 mil. Nem sindicato nem empresários têm ilusão de voltar aos
melhores momentos do ABC, quando as empresas caçavam mão-de-obra na
rodoviária. Só que nessa conta ficou para trás uma massa de trabalhadores
desempregados que exige cada vez mais atendimento social. (Ler abaixo)
Num quadro onde de cada dez trabalhadores dois estão desempregados, é
difícil imaginar uma mobilização como a dos anos 80, quando era possível
lotar um campo de futebol na Vila Euclides para convocar greves. Hoje, o
Estádio 1.º de Maio é o símbolo da mudança nas mobilizações trabalhistas.
Vive vazio, mesmo quando o Palestra de São Bernardo, um time da quarta
divisão, joga aos domingos. Até na última vez em que Lula pisou no gramado,
em julho de 2002, foi um fiasco de público.
Revolução – Na semana passada, o presidente Lula sentenciou que o
sindicalismo voltado apenas para reivindicações salariais está sepultado.
“Num mundo globalizado, os sindicatos não podem mais agir como minha turma
agiu na década de 80. Houve uma revolução comportamental de trabalhadores,
patrões e do governo. Os sindicatos têm de exercer um papel mais voltado
para o cidadão”, discursou no Rio.
O presidente da Scania Latin America, Hans-Christer Holgersson, concorda com
a tese de Lula, citando um exemplo. Há dois meses, sentou na mesa de
negociação com o sindicato para encontrar meios de aumentar a produtividade
dos trabalhadores. “Quinze, vinte anos atrás, isso teria sido motivo para
uma briga. Dessa vez, os trabalhadores receberam as nossas propostas de
forma positiva.” Para Holgersson, patrões e empregados descobriram que
brigar por interesses isolados pode até ser benéfico num primeiro momento,
mas é bastante prejudicial no longo prazo. “O Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC está em sintonia com a situação internacional e se comporta com uma
visão global.”
Elogios de patrão a empregados ainda são raros no Brasil. Em São Bernardo,
são normais. Com 2.050 funcionários, a Scania prepara-se para dentro de três
anos exportar mais do que vender para o mercado interno. Só que para atingir
a meta, uma massa de trabalhadores preparados para produzir caminhões e
ônibus competitivos é fundamental. Um caminhão brasileiro da Scania custa
até US$ 15 mil menos que seu equivalente europeu. E ambos têm a mesma
qualidade. Parte dessa política de boa vizinhança entre capital e trabalho
está sendo posta em prática em outras indústrias do ABC.
Elogiada pelo governador Geraldo Alckmin, que a considera como “a melhor
esquina do Brasil”, São Bernardo está despertando a atenção de outros
setores. O presidente da Ryder Logística, Antonio Wrobleski, não poupa
elogios. O primeiro é sua localização estratégica: “Está do lado do maior
mercado consumidor (SP) e perto do maior porto (de Santos) e do maior
aeroporto do País (Cumbica).” E mais: “Aqui, o trabalhador custa R$ 600 por
mês. Em Goiás, custa R$ 500. Só que a produtividade do funcionário de São
Bernardo compensa a diferença.”
A prefeitura facilita a entrada de novos negócios na cidade oferecendo uma
rápida tramitação do processo para a abertura da empresa, segurança e uma
estrutura bem-dotada de indicação de terrenos e galpões para comprar ou
alugar a preços competitivos. A Ryder alugou um terreno de 70 mil metros
quadrados e instalou um armazém de 12 mil metros quadrados. Nesse
entreposto, trabalha para a montadora GM e a fábrica da Xerox, distribuindo
a carga para Grande SP, RJ e Argentina.
O operador de empilhadeira Daniel Terra da Silva, de 31 anos, é um dos 45
funcionários da Ryder. Para se adaptar à nova máquina, não levou mais do que
oito horas de treinamento – em outros locais, a empresa precisou de 22 horas
para ensinar como operar o “tratorzinho” de câmbio automático. Ele já
conhecia a função no seu antigo trabalho, uma empresa de autopeças do ABC
paulista. “Aqui não falta profissional habilitado.”
Bons tempos – A família de Doralice Gomes dos Santos, todos eleitores de
Lula, torce para que os bons tempos de São Bernardo voltem com o novo
presidente. Dos seus 11 filhos, apenas dois têm carteira assinada. Um deles,
Edmilson, trabalha na Volkswagen há mais de 20 anos. Foi ele que convenceu a
mãe e o resto da família que viviam na Paraíba a ganharem a vida em São
Paulo. Três irmãos trabalharam na empresa, inclusive José que optou por sair
do emprego e se arrepende até hoje. “Antes, a gente saía da Volks e ia para
a Scania, depois Ford, Mercedes. Acabou o tempo bom do ABC. A culpa é da
nação que se desenvolveu demais. Foi isso que matou a cidade.” Ao menos, a
família segue unida. Todos moram na Favela Biquinha, onde ao fundo se vê a
Volkswagen, o sonho de trabalho para muitos do local.
Prefeito não crê em solução para desemprego
O cardiologista William Dib (PSB) está convicto de que não poderá realizar o
milagre da multiplicação de empregos em São Bernardo do Campo. Ele assumiu a
prefeitura da cidade em março, após a renúncia do seu antecessor, Maurício
Soares (PSDB), por motivos de saúde. Como prefeito, admite fazer obras,
mutirões e “algumas coisinhas”, longe de atender a demanda. “Quem sou eu?
Sou zero vírgula zero, zero, zero. Quem tem de criar política de empregos é
o governo federal.”
Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva favorecerá seu berço político, Dib
tem dúvidas: “Ele tem que pensar, mas não vai. Os problemas do Brasil são
muito graves e a percepção que temos é de que essa região vai ser esquecida.
Comparado com o resto do País, não temos esperança de virarmos prioridade.”
Contribuindo para os mais de 230 mil desempregados na região do ABC, São
Bernardo tem aumentado os gastos com políticas de assistência social. Mais
de 37 mil pessoas participaram de cursos profissionalizantes nos últimos
quatro anos. O programa de renda mínima, que repassa R$ 70 por pessoa, já
atendeu 650 famílias, mas a demanda supera 5 mil pessoas. Nos anos 80 e 90,
não havia hospitais públicos, porque os trabalhadores contavam com bons
planos de saúde. Hoje, são cinco prontos-socorros e um hospital municipal
universitário. Em três anos, o Banco do Povo financiou R$ 1,9 milhão em 680
créditos a empreendedores.
Como 70% de seu território está em área de manancial, a outra parte está
praticamente ocupada. Restam terrenos e galpões de empresas que abandonaram
a região nos últimos anos. “O custo para manter uma cidade como essa é muito
elevado e não é possível entrar na guerra fiscal com outros Estados”, disse
Dib.
A prefeitura considera a incubadora de empresas um projeto promissor na
criação de empregos. Mas longe de gerar milhares de novas vagas. Em 2002, as
16 empresas incubadas faturaram R$ 1,2 milhão, acima do resultado de R$ 220
mil apresentado no ano anterior. No total, foram 100 novos empregos.
A Jireh Automação é um dos exemplos. Há pouco mais de três anos, a empresa
estava inoperante e só duas pessoas trabalhavam nela, o casal Alberto e
Tânia Nakamura. Com a consultoria do Sebrae, o empresário conseguiu retomar
a atividade e fechou contratos como a construção de uma estação de montagem
automatizada para a Scania. Hoje, a empresa gera 20 empregos na cidade.