Publicada em 29 de abril de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
ILHÉUS
Um trecho de A Carta, de Pero Vaz Caminha, deveria ser reescrito assim:
“Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender
olhos, não podíamos ver senão pastos, plantações de eucalipto e viveiros de
camarão – terra que nos parecia muito explorada…”
Eis a mata atlântica do século 21, a terra “graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo”, como previu o português. Nos últimos cinco
séculos, a floresta tropical se tornou uma das mais ameaçadas. Os grandes
arvoredos sobre a terra ainda existem, porém estão em planícies esparsas.
Está em curso uma derradeira e talvez a mais realista tentativa de conter a
exploração predatória. É o projeto Corredor Central da Mata Atlântica.
Abrange terras de 12,3 milhões de hectares, incluindo a vista privilegiada
que Pero Vaz Caminha teve. Estende-se por mais de 1.200 quilômetros no sul
da Bahia e todo o Espírito Santo. Já consumiu dez anos desde o lançamento e
começa neste ano a segunda fase, mas o que se viu até agora é que a
destruição das matas não parou.
Dados preliminares de um estudo da Associação Flora Brasil indicou que só no
extremo sul da Bahia, numa área de 3 milhões de hectares, a perda de mata
atlântica foi de quase 100 mil hectares entre 1996 e 2004. Exatamente o
mesmo crescimento do plantio de eucalipto.
O desmatamento de um campo de futebol a cada 40 minutos pressionou uma mata
atlântica já raleada, porém de alta diversidade. Dois estudos citados por
ambientalistas exemplificam a tese. Em duas áreas, Uruçuca (BA) e Santa
Lúcia (ES), um único hectare concentra mais de 440 espécies de árvores
diferentes. Tal ambiente serve como berçário natural para diversos animais e
vegetais.
O que sobrou da mata atlântica está espalhado em diversos fragmentos, tais
como ilhas oceânicas. O oceano seriam todas as outras atividades econômicas,
como os campos abertos para o gado, as plantações de eucalipto e coco, os
tanques de cultivo de camarão, os resorts e hotéis na faixa de areia, as
estradas que cortam a mata e atraem novas pessoas à região. O projeto quer
unir o maior número possível de fragmentos por meio de corredores
ecológicos. Como um jogo de liga-pontos.
Ligar pontos, as ilhas de mata atlântica que restaram, é importante por um
motivo: sem isso, animais e vegetais tendem a desaparecer. Veja o exemplo do
macaco-prego-do-peito-amarelo (Cebus xanthosternos), espécie exclusiva da
mata atlântica. Com o desmatamento ocorrido desde os anos 1970 pela abertura
da BR-101, sua morada diminuiu no sul da Bahia. Ficou vulnerável. Pior:
criticamente ameaçado de extinção. Os animais adultos alcançam, em média,
três quilos, peso suficiente para valer sua caça.
A flora isolada até sobrevive, mas fica sem o viço. Já os animais perdem o
vigor genético, os cruzamentos passam a ser interfamiliares, a espécie
enfraquece. Daí a ameaça de extinção. Antes comuns na região, o muriqui, a
anta, o barbado, o tamanduá-bandeira, o tatu-canastra não são mais vistos.
FLORESTAS REPLANTADAS
Uma floresta de eucalipto (Eucalipto sp) está entre as ameaças, mas não
precisaria ser assim. Se ao lado da área plantada, uniforme e extensa,
existisse um corredor ligando uma mata nativa a outra, as espécies estariam
salvas. O corredor poderia ser desde uma reserva legal, uma área de
preservação permanente ou uma área de replantio de espécies de mata
atlântica. Na prática, as ilhas verdes continuam ilhas, isoladas.
Em 2005, a área plantada com reforma e expansão florestal de eucalipto
superou os 100 mil hectares na Bahia e no Espírito Santo. Para ampliar quase
o mesmo tanto de áreas destinadas à preservação, os governos levaram dez
anos. No período, foram criadas 42 unidades de conservação na mata atlântica
num total de 92.157 hectares protegidos. Menos de 2% do corredor são áreas
preservadas.
Naquele mesmo ano, as empresas que plantam eucalipto, representadas pela
Associação Brasileira de Florestas Plantadas (Abraflor), preservaram ou
mantiveram intactos 904.027 hectares do corredor. “Em hipótese alguma
derrubamos mata nativa. Se houve crescimento, foi em regiões degradadas,
pastos abandonados”, diz Cesar Augusto dos Reis, diretor.
A bem da verdade, as empresas de eucalipto só mudaram de mentalidade em anos
bem recentes. “Nossos avós não foram santos, e alguns dos nossos pais também
não”, reconhece Reis.
A eucaliptocultura percebeu que manter a mata nativa ajuda a controlar
pragas e o clima da região permanece mais estável. Os rios ficam mais
fartos. A vegetação retém a água da chuva, que depois vai parar no solo.
Além disso, o setor cria programas sociais para agraciar a população local,
como escolas, creches e pavimentação de ruas. Por isso mantém o mínimo
exigido para preservação.
No Brasil, as propriedades têm de manter 20% do terreno intacto. É a reserva
legal. Se os donos de terra ligassem uma área dessa a outra de seus
vizinhos, os corredores estariam prontos. Mas essa é uma visão moderna e,
por falta de costume e cobrança, poucos cumprem a lei. O Instituto de
Estudos Socioambientais do Sul da Bahia descobriu que, nos municípios de
Una, Arataca e Ilhéus, 93% das propriedades não têm áreas averbadas. E a
fiscalização ou é frágil ou não existe.
O empresário e ex-professor universitário Anderson Morais aprecia da varanda
de sua confortável casa um bonito bosque. Seria um privilégio ter num
quintal arbustos e arvoretas com bromélias e orquídeas não fosse um detalhe.
Morais é um carcinicultor e só mantém 20% desse pedaço de restinga no
terreno porque a lei manda. Todo o resto da propriedade de 91 hectares é
tomado por viveiros de camarão de até 3 hectares.
POLÍTICA PÚBLICA
Anderson Morais é de Santa Catarina e mora hoje em Canavieiras, sul baiano,
porque o governo do Estado convidou. Pela Bahia Pesca, descobriu que havia
naquela cidade 5 mil hectares da melhor terra para o cultivodo crustáceo, o
Litopenaeus vannamei. À exceção de dois fazendeiros baianos que trocaram o
pasto pelo camarão, todos os outros migraram nos últimos cinco anos da
Região Sul. Ocupam 400 hectares e têm outros 2 mil já comprados sobre áreas
de restinga e mangue.
O carcinicultor Morais, presidente da associação de produtores, tem um
terreno vizinho repleto de viveiros. Em cada extremo, estão as reservas
legais, uma de 13 e outra de 18 hectares. Estão separadas por várias lâminas
d’água dos tanques. Um mico-leão-da-cara-dourada teria de andar muito para
atravessar de uma ponta a outra. “Não sou ambientalista para saber se nessa
área cabem uma, duas ou dez famílias de mico, mas o que a lei mandou fiz.”
Em Caravelas, há um projeto de carcinicultura de 1.500 hectares, hoje em
litígio. Num único dia consumiria 880 milhões de litros de água. Pegaria
água limpa do mangue, e a devolveria com restos de produtos químicos. Isso
pode ser fatal para robalos, meros, vermelhos e ciobas (os preferidos pelos
pescadores), camarões sete-barbas e rosa, ostras, sururus e lambretas. Parte
ou toda a vida deles depende do mangue. E os recifes de Abrolhos dependem
deles para manter o equilíbrio.
“O (camarão) Vanammei já foi encontrado fora dos tanques, competindo com
espécies nativas”, alerta o biólogo Guilherme Dutra, da Conservação
Internacional. Por isso o projeto do corredor inclui 8 milhões de hectares
na faixa oceânica.
“Não se pode mais incentivar políticas públicas de forma simplificada. O
cuidado deve ser redobrado ao trazer uma atividade de alto risco num
ambiente sensível”, diz o secretário ambiental da Bahia, Juliano Matos. O
recado é claro: os carcinicultores vão ter de se readequar à nova realidade.
Declínio do cacau aumentou desmatamento
ILHÉUS
O declínio do cacau (Theobroma cacao) nos anos 1990 desnorteou a todos no
sul da Bahia e a maior prejudicada foi a mata atlântica. Fazendeiros
dependiam da floresta em pé para o plantio da fruta. Era o sistema da
cabruca, o cacaueiro crescendo à sombra das árvores nativas. Exemplo raro de
conservação produtiva, veio abaixo com a introdução da praga da
vassoura-de-bruxa e o declínio do preço do produto.
Assim o cacau foi perdendo espaço para a pecuária, o café, a seringueira, a
pupunha, a cana-de-açúcar, o coco, o camarão, o eucalipto. Atividades vitais
para gerar empregos, ainda que poucos, e consumidoras de largas faixas de
terra desmatada. Uma solitária vaca precisa de 2 hectares para ruminar.
O cacau, bem ou mal, cumpria o papel de minicorredor. A pesquisadora Deborah
Faria, da Universidade Estadual de Santa Cruz, coordenou estudos sobre o
plantio de cacau próximo a unidades de conservação e em outras áreas mais
distantes. A biodiversidade era melhor mantida no primeiro caso.
Um casal de onça-pintada (Panthera onca), o último felino a entrar nas
Américas, precisa de 40 mil hectares contínuos de mata para viver bem,
lembra André Guimarães, do Instituto Bioatlântica. Isso não existe mais no
trecho do corredor. Empresas de eucalipto assessoradas por Guimarães
acreditam que só daqui a 20 anos criarão minicorredores de Porto Seguro até
Linhares, na Reserva Biológica de Sooretama, Espírito Santo. Formaria assim
um tipo de “passeio da onça-pintada”.
“Infelizmente, não existe forma para deter o desmatamento. A ordem econômica
traz um impacto muito grande no ambiente”, diz Marcelo Araújo, do Instituto
de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia. “Queremos nos contrapor, mas
negociando alternativas.”
A primeira fase do projeto serviu para planejar a implementação, ampliar
sistemas de fiscalização e estruturar unidades de conservação. As ações
concretas começam agora. “Não nos interessa expulsar ninguém”, adianta o
coordenador do projeto, Militão Ricardo, do Ministério do Meio Ambiente. Uma
proposta: financiar o reflorestamento de mata nativa, segundo a filosofia
dos corredores. Há planos para criar ou expandir 22 unidades de conservação
nos dois Estados, ampliando a área sob proteção em 500 mil hectares.
Pensando alto, ou utopicamente, a meta do governo é fazer com que a área
protegida fique em 6,5%. E.N.
A triste luta para salvar espécies
Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
UNA (BA)
Pesquisadores da Reserva Biológica de Una trabalham para que o
mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas) entre na lista de
animais criticamente em perigo. Com a perda de hábitat, está cada vez mais
difícil encontrá-los soltos.
Triste essa profissão de lutar para constatar o pior. Mas pode ser a única
forma de salvar uma espécie. Natural do Corredor Central da Mata Atlântica,
o mico-leão-da-cara-dourada começa a abundar em cativeiros para rarear nas
florestas do sul da Bahia. Territorialistas, vivem em grupos e disputam
árvores com bandos da mesma espécie. Aceitam o convívio com o mico-estrela
(Callithrix Kuhli), mas em parte do dia. E são “chatos”: só dormem em ocos,
comem poucos tipos de frutos e pequenos insetos, bebem água límpida de
bromélias.
O jovem biólogo Carlos Eduardo Guidorizzi, de 27 anos, compara micos que
vivem na reserva e em uma mata semidecidual, com seca mais severa e
definida, na cidade de Itororó. A primeira está preservada. Na segunda,
qualquer área de 500 hectares já é chamada de mata.
Leonardo Neves, de 30 anos, analisa a distribuição geográfica do animal para
descobrir locais prioritários de conservação. Para ambos e Nayara Cardoso,
de 25, outra bióloga que trabalha na reserva de Una, uma certeza: o primata
só consegue sobreviver bem em áreas preservadas.
Sorte deles contar com Bila, ou Jiomário dos Santos Souza, um ex-trabalhador
de serraria. Hoje se redime como assistente de campo dos pesquisadores. É
ele quem localiza na mata os animais que têm colares de identificação.
Trabalhar na Rebio de Una, na BA-001, no trecho Una-Ilhéus, é um privilégio.
Apenas pesquisadores têm acesso aos seus 11 mil hectares. É como o éden da
fauna e flora da mata atlântica.
Muito diferente do trabalho desenvolvido pela bióloga Vera Lúcia de Oliveira
com a preguiça-de-coleira (Bradypus torquatus). Ela recebe os animais que
perderam a morada. Sempre frágeis, estressados, feridos, com chances
diminuídas. Devolve os que sobrevivem no quintal onde trabalha, uma área de
43 hectares da Reserva Zoobotânica da Ceplac, em Itabuna. “Tem muitos
ganhando milhões em cima do animal enquanto o bicho está morrendo. Só vêm
fazer pesquisa para se autopromover, publicar um trabalho”, diz.
Ela fala com raiva também da destruição da mata atlântica, que só tem feito
aumentar seu trabalho, e do eucalipto, um dos maiores vilões. Não acredita
quando lê colegas dizendo que o bicho sobrevive em cafezais ou plantações de
eucalipto. “Onde é que há corredor ecológico?”
A preguiça-de-coleira vive pendurada em árvores nativas. Passa dias sem
descer delas. Come só folhas novas de espécies como gameleiras e ficos.
Desde 1993, o centro de recuperação já recebeu 235 preguiças-de-coleira e
libertou 83, o mesmo número das que não resistiram. “Infelizmente só estou
retardando a extinção da espécie”, reconhece Vera, lágrimas nos olhos.
Espírito Santo e Bahia terão US$ 14 milhões em recursos
ITAPEBI (BA)
Só em 2003 é que se reduziram os desmatamentos no sul baiano. Fruto de uma
ação judicial da Rede de ONGs da Mata Atlântica e do Grupo Ambientalista da
Bahia (Gambá), que proibiu caminhões circulando com madeira cortada.
“Enquanto discutíamos e pensávamos no projeto, a mata atlântica estava indo
embora”, reconhece Renato Cunha, coordenador do Gambá. Um ciclo conhecido:
retirada de madeiras nobres, queimadas ilegais e carvoarias. No Parque
Estadual do Conduru, o corte ilegal continua até hoje. Falta fiscalização.
Desde 2002, quando o projeto passou a contar com recursos da Comunidade
Européia, do governo alemão e uma contrapartida da União, a Bahia não recebe
recursos. O governo ignorava o projeto.
Na primeira fase, foram US$ 5 milhões. Nesta segunda, serão US$ 28 milhões
para a mata atlântica e a Amazônia, onde também há um projeto de corredor.
Na Amazônia, a idéia é conservar o que se tem: áreas contínuas de até 300
mil hectares. No corredor litorâneo, a média é de 10 mil hectares.
Daí a necessidade do diálogo. “Vimos que estávamos há anos batendo nas
empresas e nada saía de positivo”, diz Luiz Paulo Pinto, diretor da
Conservação Internacional. Iniciativa privada, ONGs e governo hoje sentam-se
para discutir o que fazer. Uma das discussões é como gastar os quase US$ 14
milhões destinados exclusivamente para a mata atlântica. Só para este ano já
foram assinados US$ 4 milhões em convênios.
Na Bahia, o Ministério Público hoje pune quem desmata. Antes, madeireiros ou
proprietários rurais derrubavam 10 hectares de mata nativa e, se flagrados,
pagavam uma cesta básica. No Espírito Santo, equipes têm à disposição
helicóptero e aparelhos de GPS. Lá do alto vêem quem está fazendo queimadas,
retirando madeira ilegalmente, e marcam as coordenadas no aparelho.
Imediatamente ligam para a polícia, que anota o ponto e vai direto fazer a
autuação do crime. E.N.
Corte de madeiras persiste com o ‘industrianato’
O corte de madeiras nobres da mata atlântica persiste numa atividade muito
peculiar, o “industrianato”. Apesar de proibida, a retirada seletiva de
jacarandá, pau-brasil, arruda, paraju e arapati é feita para produzir
gamelas, tigelas, pratos e outros utensílios. Anualmente, 30 mil metros
cúbicos. “Não é artesanato, é industrianato”, denuncia Oscar Artaza, da
Associação Flora Brasil.
Em geral, as peças são vendidas barato por índios pataxós na beira da
estrada, perto de Porto Seguro, Prado e Monte Pascoal, mas foram fabricadas
em fundos de quintal. Centenas de pessoas vivem disso, porque há milhares de
consumidores dispostos a comprar as peças. E.N.