Publicada em 16 de maio de 2006
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
São Paulo, a cidade que não pode parar, parou. Trabalhadores, entre tensos e
assustados, tiveram de ir embora mais cedo para casa, ou nem saíram dela. O
comércio fechou, ônibus rarearam, quem pôde tirou o carro das garagens,
cinemas e teatros não abriram, bares e restaurantes desistiram de funcionar
à noite. E assim a segunda-feira 15 de maio de 2006 passou para a história
como o primeiro feriado do PCC, o dia em que o crime derrotou uma cidade.
“Este é nosso 11 de Setembro”, afirmou a secretária Patrícia Weishaupt
Ignez, de 20 anos.
A secretária que ontem saiu, como milhões de paulistanos, mais cedo do
trabalho não acreditava no que via nas ruas. Pessoas indo embora caladas
para casa. “É uma cidade em pânico, perplexa e para baixo, um clima muito
ruim.” O exagero da comparação – São Paulo não é alvo de terroristas – dá a
medida da impotência que tomou conta da capital. Num dia em que ela foi
dispensada duas horas antes do trabalho, que o pai não parou de ligar de
“cinco em cinco minutos” e o primo fechou o comércio por conselho de
policiais, Patrícia exibia um imenso ponto de interrogação: e amanhã? “Já
avisei que se continuar assim não venho trabalhar.”
O fechamento do comércio foi fruto de boatos que viravam a mais vívida
realidade na imaginação de comerciantes. São Paulo foi aos poucos parando,
transformando a data num feriado, mas sem a alegria de um dia de folga. “Um
fechou, todos fecharam, numa reação em cadeia”, disse Luís Fernando Martins,
dono de uma joalheira no centro. Mais exatamente na Rua Barão de
Paranapiacaba, ponto de concentração da ourivesaria da cidade. São 130
lojas, a maioria já fechada a partir das 13h30. “É um feriado negro, mas
bandido não pode mandar, temos de resistir.”
A poucos metros dali, o relojoeiro João Batista de Oliveira Andrade, de 49
anos, resolveu passar o tempo na feira de rolo que acontecia livremente na
Praça da Sé. Se há polícia, o comércio ilegal não ocorre tão às claras,
plena luz do dia. Ontem foi diferente. “Está todo mundo fazendo a festa, é o
País do Deus dará.” Relógios falsificados, roubados e originais estavam
sendo negociados a preços entre R$ 20,00 e R$ 70,00. Desde o fim de semana,
o posto da Polícia Militar na praça foi desativado. Literalmente. O trailer
foi retirado, ficou a plataforma de concreto. “A polícia está agindo errado,
porque quem tem autoridade deve mostrá-la.”
Na meca do comércio de quinquilharias, a 25 de Março, a polícia abandonou
seu posto fixo na esquina da Ladeira Porto Geral com a Rua 25 de Março. Uma
guarita de madeira, com símbolo da PM. No lugar havia um ambulante, o
“homem-cegonha” que estendeu no chão a lona com meias a R$ 1,00. “Todo mundo
está com medo, o único fiscal aqui sou eu”, gabou-se Joaquim Sebastião
Ribeiro, o Parafuso, de 60 anos, que zela pela calçada do Armarinhos
Fernandes e proíbe que ambulante monte ponto ali. “Sou mais respeitado que
polícia.”
Na única ronda a pé presenciada pelo Estado em vários pontos da capital na
tarde de ontem, os soldados Jessé, Macedo, Nunes e Marcia recebiam elogios
das pessoas. “Vocês são mesmo corajosos, hein?”, gritou um ambulante. O
comerciante Elias Ambar, diretor da União de Lojistas da 25 de Março e
Adjacências, notou, desde cedo, a ausência do posto policial fixo e a
circulação mais ostensiva de carros policiais, em geral em duplas e com
muitos policiais dentro. “Sentimos o baque, houve diminuição geral do fluxo
de clientes, as vendas despencaram”, atestou. “Boatos estão adquirindo
proporção perigosa.”
Às 13 horas, o terminal Parque Dom Pedro II foi fechado. Funcionários da
Socicam, empresa que administra o local, orientavam motoristas a desviar
para deixar os passageiros nos pontos da rua. Imediatamente eles viravam o
letreiro para “Reservado” e ninguém mais embarcava. A ordem era seguir para
as garagens. “Isso é uma baixaria, o PCC está dominando uma cidade”,
indignava-se a varredora de ruas Neide Oliveira dos Santos. Ela era uma das
passageiras que esperavam ir até Itaquera como sempre faz, num ônibus. Em
vez disso, começou a caminhar. “Uma hora chego em casa.”
Não foi o único terminal fechado. No centro, o da Praça das Bandeiras também
ficou fechado. Na zona sul, o Santo Amaro deixou milhares de paulistanos sem
transporte público e o Largo 13 de Maio, deserto logo pela manhã. Ao longo
do dia, os comércios foram fechando, o trânsito foi piorando e às 16 horas
São Paulo enfrentou um incomum horário do rush. Às 17h30, quando normalmente
a média é de 50 quilômetros de vias paradas, a cidade tinha 173. “Alguma
coisa estava errada quando de manhã o ônibus teve de dar muitas voltas”,
lembrou Patrícia Alves Pionorio, de 24 anos. Também dispensada mais cedo do
trabalho, a secretária protestava contra a situação que obrigou paulistanos
a ter esse feriado forçado. “Quando você vê agências bancárias queimadas,
eles que gastam tanto com segurança, é porque a situação está ruim mesmo.”
Patrícia reclamava também da falta de ação do governo estadual, pois,
segundo ela, “todo mundo está dizendo que o federal ofereceu apoio, mas eles
estão recusando”.
TRISTEZA
O comerciante Mario Massara e Pedro Bertosi, com pontos na Rua Augusta,
conversavam no fim da tarde sobre a situação. “Fecho o comércio, porque se
realmente for facção eles vão atacar só quem está aberto”, disse Massara. “O
problema é que o pessoal está apavorado. Sinto muita tristeza em dispensar
funcionários por esse motivo”, completou Bertosi. Sem segurança, Bertosi
ordenou às filhas que faltassem às aulas de inglês e balé.
Juscelino Ferreira Silva, gerente do cineclube Vitrine, aguardava, às 17h30,
para fechar as duas salas de cinema. Apenas as 4 primeiras das 12 sessões
previstas ocorreram. “É toque de recolher, nada de diversão.” Em outras
salas, como Espaço Unibanco, UOL e Bombril, sessões também foram canceladas.
Por falta de pessoas com vontade de se divertir, por medo de que algo de
ruim ocorresse. “Nunca tinha visto alguém entrar no cinema com medo
estampado no rosto”, disse o maranhense Ferreira Silva. Por via das dúvidas,
ele desistiu de ir para casa, na zona norte. Às 18 horas, quando São Paulo
se recolhia, o comandante da PM, coronel Elizeu Éclair Teixeira Borges, dava
entrevista coletiva e garantia: “Hoje o dia foi mais tranqüilo em termos de
ocorrências.”
Obediente, a cidade se recolheu mesmo. Às 22 horas não se via ninguém na
rua. Centro, Paulista, Rua Augusta, Vila Madalena – tudo incrivelmente
deserto. Na Avenida Sumaré, o porteiro Roberto Pinto Rocha, que fazia 32
anos ontem, apressou o passo para chegar a Pinheiros e tentar encontrar
condução para Taboão da Serra. De repente, começou a correr. Por que? “Sei
lá, é assustador ver tudo vazio assim.”
De touca, por causa do frio, o porteiro Norberto Bispo da Silva veio de
Cotia e chegou pontualmente às 23 horas para render (no melhor dos sentidos)
o colega num prédio na Rua Morais. Pegou lotação e fez parte do trajeto a
pé, sem entender o que acontecia no bairro, ruidoso mesmo às segundas-feiras.
“É absurdo a população ficar refém desse terrorismo”, disse Kléber Tadeu
Neto, sócio do bar Xequerê que saiu de lá e foi a pé para casa, duas quadras
adiante. Se não fosse o toque de recolher, o restaurante ficaria aberto até
o último freguês.
Já perto da meia-noite, os estudantes da USP André Benassi, Gabriel Martins
e Maurício Bechara desceram do apartamento na Rua Teodoro Sampaio, onde se
refugiavam, e foram tomar uma cerveja no Bar do Elvis, o único aberto nas
proximidades. “A gente olhou pela janela: estava limpeza.” COLABOROU ROSA
BASTOS