Publicada em 23 de maio de 2004
O Estado de S. Paulo
A vida traçou dois destinos para Luís Pereira do Nascimento. O primeiro era
viver um conto de fadas: da infância pobre que o levaria para o mundo da
criminalidade e o sistema corroído da Febem até o arrependimento e a
recuperação conquistados por meio de um livro que escreveria. A segunda
opção era a crônica da exclusão social: morrer vítima da violência que
sempre o perseguiu. Aos 18 anos, Luís vivenciou as duas coisas.
Menino arredio, Luís deu trabalho desde criança. Era autoritário e vivia
brigando com os colegas. Na adolescência, era “terrível”, como lembra a mãe,
Maria José da Silva, de 39 anos. Nunca foi bom aluno e largou algumas vezes
os estudos porque não conseguia conciliar com seu emprego num lava-rápido.
Chegou a trabalhar como ajudante-geral do jornal Diário Popular.
Aos 16, cometeu o primeiro de seus erros: matou uma garota de 17 anos
chamada Patrícia. Disparou dois tiros de um revólver calibre 38 e numeração
raspada no rosto e no pescoço dela, num campinho em Carapicuíba. Tudo porque
desconfiava que ela o teria ameaçado e dois rapazes iriam bater nele e nos
seus irmãos menores. Até o fim, Luís negou o crime, como lembra e acredita
sua mãe.
Ele entrou no dia 26 de novembro de 2001 na problemática UAI do Brás e
passou por outras duas unidades antes de ingressar na Unidade de Internação
de Pirituba. Viu rebeliões, participou de algumas delas, assim como de
incontáveis “galinhagens” – agressões a outros internos. Tinha dificuldade
de seguir ordens e em Pirituba, unidade considerada modelo, causou alguns
tumultos.
Mas valeram os esforços de sua mãe, que raras vezes deixou de visitá-lo, e
do diretor da unidade, Caio Rubens de Mello Castro, que cobrava dos
infratores a participação nas atividades. Luís uniu-se a Rogério Gimenes de
Pontes, Darci Vitorino da Cruz, Valdir e Fábio Reis para criarem a Jupe
(Jovens Unidos Pela Esperança).
Os três primeiros tiveram a idéia de dar palestras a estudantes contando as
suas experiências pessoais e escrever um livro. Nele relataram, por meio de
um personagem fictício, os sofrimentos que eles e outros internos passaram
em unidades da Febem (Veja trechos abaixo). Descreveram torturas, violências
e o sistema errático da instituição.
Foi a grande mudança na vida deles. A direção da Febem não só autorizou como
deu publicidade à iniciativa. Sandra Regina Félix, da Noovha Editora, e João
Eduardo Oliveira, da Labortexto Editorial, toparam o desafio e produziram
uma edição para um público jovem com vários cortes na obra – com o
compromisso de publicarem um segundo livro na íntegra, sem omitir as
atrocidades que vivenciaram.
Orador – Para a versão light, o secretário de Educação Gabriel Chalita
escreveu o prefácio. O primeiro lançamento foi na Bienal do Livro, quando
Luís usou de toda sua lábia para vender dezenas de exemplares de Ingresso
para a Febem – obra que sua mãe, analfabeta, não pode ler. Essa
característica o fazia o orador oficial do trio, tanto nas palestras como no
lançamento oficial, no Sesc Pompéia, dia 11.
Luís estava feliz. Via no livro e na escrita a possibilidade de ascender na
vida. No passado sonhava em ser escritor ou médico. Como Rogério, que o
considerava um irmão, conseguiu um estágio em uma diretoria de ensino.
Quando recebia o salário, ajudava sua mãe e a mãe de santo Maria Célia
Guerra dos Santos, com quem conviveu mais nos últimos meses e de quem
recebia bênçãos duas vezes por dia.
Na madrugada do dia 16, levou para casa a namorada, outra Patrícia. Os dois
haviam reatado o namoro naquele dia. Em seguida, passou num “som de rua”, no
Jardim Ângela, e daí a sua história virou um mistério. Seu corpo foi
encontrado com três tiros e sinais de tortura perto de sua casa.
O pouco do salário que lhe restou no último mês serviu para comprar uma
calça, uma camisa, um cinto e uma gravata. Com as vestes pôde ficar bonito
duas vezes: uma no lançamento do livro e outra quando foi enterrado, no
cemitério Recanto do Silêncio, em Itapecerica da Serra. (Eduardo Nunomura e
Luciana Garbin)