Haiti pára para ver Lula, Ronaldo e companhia

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Publicada em 19 de agosto de 2004
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
PORTO PRÍNCIPE – O futebol costumava ser conhecido como o esporte de uma
bola e 22 homens correndo atrás dela. Ontem, a seleção brasileira
acrescentou um novo significado a ele. Provou que ações simples como um jogo
podem fazer o que quase nenhum governante fez até agora pelo miserável
Haiti: devolveu a alegria ao povo haitiano. E fez isso antes mesmo do início
do jogo contra a seleção local. A partida, amistosa, foi pedida à seleção
pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dentro do esforço que o governo
tem feito para a manutenção da paz na região.
Eram 12h quando o avião com a seleção brasileira se aproximou da pista do
Aeroporto Toussaint Louverture. Da janela, os de jogadores viram um grande
bolsão de miséria e os militares na pista. Da hora em que os brasileiros
saíram do avião, um emocionante caos se instalou em Porto Príncipe.
As autoridades do país, sempre formais, não resistiram e tiraram fotos com
os jogadores. Os funcionários do aeroporto tentavam tocar a careca do
atacante Ronaldo. Os soldados brasileiros que participam da Missão de
Estabilização da ONU para o Haiti (Minustah) esforçaram-se para não cair na
tietagem geral. Afinal, tinham a missão de proteger os convidados. Saíram-se
bem. Da chegada ao aeroporto ao estádio – um trajeto de 1h15 –, passando por
uma multidão estimada em 150 mil haitianos exaltados, não houve nenhum
incidente. Dentro de sete urutus – os blindados que desde junho patrulham
Porto Príncipe –, os jogadores acenaram, sorriram e ficaram emocionados com
o carinho dos torcedores. Não esperavam tanto.
Uma multidão eufórica seguia o comboio, e uma longa carreata ia atrás.
Ensandecidos, gritavam de tudo: “Ronaldo”, “Roberto Carlos”, “Brasil”,
“quero comer”, “trabalho”. Havia haitianos por toda parte: equilibrando-se
em postes, torres de energia elétrica, tratores, árvores, telhados e até em
outdoors.
Torcida imparcial – Porto Príncipe se preparou para a visita. Em junho,
quando o Brasil assumiu o comando militar da Minustah, a cidade estava mais
suja, com lixo espalhado na maioria das ruas. As bandeiras verde-amarelas
eram erguidas só quando o time brasileiro jogava. Ontem, estavam por toda
parte. O estádio passou por uma reforma que o deixou em condições de jogo, e
com um incomum gramado sintético.
Cerca de 11 mil haitianos pagaram 250 gourdes (pouco mais de R$ 20) para
comprar os ingressos do jogo – o equivalente a sete dias do salário médio de
um trabalhador. Outras 2 mil entradas foram distribuídas, a convidados,
estudantes de escolas públicas e associações.
No Haiti, muitos vivem com menos de US$ 1 por dia. Por isso, a maioria que
não estava no estádio invadiu as ruas para acompanhar o jogo nas 50
televisões de 29 polegadas instaladas em escolas, creches e orfanatos, e em
centenas espalhadas em bares e restaurantes.
No estádio, os haitianos torciam para os dois lados. Mas não deixaram de
gritar “Haiti, Haiti” sempre que seu time desarmava os brasileiros.
Reclamaram do juiz quando um jogador haitiano caiu na área brasileira,
vibraram no primeiro gol de Roger e mais ainda no de Ronaldo. “O Brasil é
minha vida. Vocês não imaginam o que é ver esses homens jogando”, disse
Leslie Brezault, 62 anos.
Não houve troca de armas por ingressos, como os militares brasileiros
aconselharam. Poderia ter sido uma das campanhas mais rápidas de
desarmamento do mundo.

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