Haiti, onde só sobrou o que há de ruim

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Publicada em 6 de junho de 2004
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
PORTO PRÍNCIPE – Se o Haiti é parte da globalização da economia mundial, a
primeira impressão é a de que só lhe restou o lado ruim desse processo. Como
um país devastado por uma guerra, a população tenta sobreviver em ruas
esburacadas, casas precárias, rincões de miséria, colapso dos serviços
públicos e no meio de uma grave crise de emprego. A informalidade é
generalizada. E há até o jeitinho haitiano: por US$ 5 mil, é possível fugir
para os Estados Unidos.
O dado mais divulgado sobre o Haiti é o de que 80% da população vive abaixo
da linha de pobreza.
Parece mais. Há pouquíssimos ricos e eles moram isolados em luxuosas casas
no alto das montanhas.
Abaixo de Petionville, o mais conhecido bairro nobre de Porto Príncipe,
reina a pobreza coletiva. São favelas e mais favelas. Nelas, não se come
todos os dias.
A dona de casa Luicia Louis, de 45 anos, faz questão de mostrar o fogão
desativado – uma espécie de bacia redonda de latão onde os haitianos
cozinham. Não há carvão e muitos menos alimento para preparar. Ela estende a
mão espalmada, cena comum no país. Depois, recolhe-a na direção do corpo e
em movimentos circulares massageia sobre o estômago. “Há dois dias que não
como. Não tenho o que cozinhar para minha família.” Mãe de cinco filhos, ela
vive numa habitação de um quarto e uma cozinha.
Não há banheiros. Nem energia elétrica, nem água potável. O calendário da
parede é de janeiro de 2000.
De lá para cá, nunca mais conseguiu um atualizado. “Não tenho vida, não
tenho emprego, ninguém me ajuda.” A única cama de casal serve para não
deixar as três crianças menores dormirem no chão, como fazem os demais.
Como outros pobres no Haiti, Luicia não recebe nenhum tipo de ajuda do
governo. Apenas de outras famílias tão pobres quanto a dela, que ajudam quem
está passando mais necessidades. Vivem em Citè Soleil, uma favela de mais de
3 mil pessoas e reféns de rebeldes pró-Aristide. É também onde muitos morrem
sem que tenham tempo ou dinheiro para chegar a um hospital.
Alguns haitianos resolvem seus problemas de saúde com remédios naturais. Há
os koktè fey (especialistas, em creole), que são comuns nos bairros pobres e
nas áreas rurais. Mas outros que receitam esse tipo de tratamento são os
especialistas em vudu, que se tornou religião oficial no ano passado. Os
haitianos freqüentam essas entidades para pedir emprego, saúde e até que um
comerciante concorrente perca tudo.
O vudu coexiste com o catolicismo. As pessoas vão às missas e também aos
terrenos onde são praticadas sessões repletas de música, dança e rituais de
invocação de espíritos – com o perdão dos vuduístas, mas é nessa religião
que se espetam bonecos de pano com alfinetes. Entender por que metade da
população pratica o vudu é necessário. Tanto que o coronel Antonio Carlos
Faillace está lendo um livro sobre o assunto e dividindo seus conhecimentos
com a tropa brasileira no Haiti.
Mas há muito mais coisas que os brasileiros e soldados de outros países
terão de se acostumar nos próximos meses. Algumas curiosas, outras que
merecem cautela redobrada. O tráfico de drogas é uma das maiores
preocupações das autoridades haitianas. Num país pobre e fragilizado,
cartéis colombianos estão usando o território como rota para os Estados
Unidos. Internamente, já se consome maconha, cocaína e crack, sobretudo
entre os jovens – que constituem a maioria da população, num país em que
quase não se vê idosos.
Por outro lado, não se vê uma violência banalizada nas ruas centrais.
Ela está concentrada nas favelas e bairros pobres. Não é improvável
presenciar agressões entre haitianos, mas assaltos e furtos são raros de se
ver. E pode-se andar com segurança à luz do dia. Difícil é não ter de
desviar a caminhada por causa das milhares de barracas de ambulantes.
Oferecem até serviços, como o conserto de colchões, alfaiataria e o conserto
de automóvel no meio da rua.
Só que os haitianos não veneram o carro como em outras partes do mundo. Eles
dirigem perigosamente e batem com freqüência. As leis de trânsito, se
existem, não são respeitadas. Mesmo em grandes cruzamentos não há semáforos.
Vale a lei de quem buzina mais ou não tem nada a perder com o carro.
Um motorista explica que a regra numa situação de batida é simples: se quem
foi culpado admitir o erro e quiser pagar, o veículo será reparado. Não é à
toa que circulam tantos automóveis muito amassados. Os seguros, em geral, só
cobrem roubo.
O máximo de choque de capitalismo que as ruas haitianas recebem são veículos
das marcas Mitsubishi, Toyota, Honda, Volkswagen, Hyundai, Daihatsu, entre
outras. O asfalto por onde circulam são precários, quando existem. Há
crateras por toda a parte, o que torna o trânsito ruim em várias horas do
dia. Quem depende desse serviço público sofre mais. São ônibus e táxis
públicos, que como o resto da frota haitiana é velha e sucateada.
Os mais utilizados são os “tap-tap”, caminhonetes com som no último volume e
cuja carroceria coberta com lonas de pinturas coloridas possuem bancos para
carregar de 10 a 15 passageiros. É uma lotação trio-elétrico com preço
variável, a partir de 5 gourdes (45 centavos de real). Um motorista ganha
cerca de 500 gourdes por dia. Mas muitos, como Noelle Michell, de 33 anos,
têm de pagar uma taxa ao proprietário do veículo – em geral, um quinto desse
valor. “O haitiano é muito mal transportado”, admite ele.
Prevalece no Haiti uma confusão iniciada na era do ditadura de François
Duvalier, o Papa Doc. Em seu governo, ele criou o dólar haitiano, que tinha
o mesmo valor de face de um dólar americano. Hoje, a moeda americana vale
cerca de 7,40 dólares haitianos. Mas com um detalhe: ela só existe na
ficção, pois a moeda oficial é o gourde. Com isso, a população tem de fazer
contas o tempo todo. Supermercados e restaurantes costumam cobrar em dólares
haitianos. Na hora da conta, o cliente opta por pagar em gourde ou dólar
americano.
No Haiti, há três vezes mais celulares do que telefones fixos. Mas só uma
minoria, cerca de 200 mil pessoas, têm um aparelho móvel. E são todos
pré-pagos. O sistema de energia elétrica é vulnerável a apagões.
Ocorrem com freqüência durante o dia. À noite, são raros, assim como são
pouquíssimas as ruas iluminadas. Só no mês passado o domínio da internet
“ht” do país foi oficialmente lançado. Para conseguir um provedor de acesso
legalmente, é preciso esperar alguns dias.
Num estudo sobre água do Banco Mundial feito com 147 países, o Haiti ocupou
a última posição. Esse é um sofrimento coletivo para os mais pobres. Em toda
a cidade, moradores carregam baldes na cabeça para levar para suas casas.
Quem pode compra água mineral, mas mesmo essa a procedência pode ser
clandestina.
Com tantas adversidades, o haitiano sobrevive bem, mas deixa o estrangeiro
perplexo. A sensação que passa é de não haver regras, um estado de direito.
Tudo é feito conforme se acha que deve ser feito.
Muitos preços e serviços são combinados verbalmente e, às vezes, é
recomendável não discutir por dinheiro. Não haveria a quem recorrer. E isso
vale também para os ricos haitianos.
Como uma pirâmide social, os poucos haitianos que têm dinheiro vivem nas
montanhas, enquanto os pobres moram de Petionville para baixo. Os ricos
construíram fortalezas cercadas e eletrificadas em condomínios fechados,
como o Vivy Mitchell, com suas 140 casas luxuosas. Eles se sentem, nos
últimos tempos, reféns da situação social.
“Para se sentir seguro no Haiti, você tem de fazer uma casa confortável
porque não há restaurantes e lugares onde possamos ir”, afirma Anite Figaro,
uma próspera comerciante de 56 anos.
Anite e seu marido, o advogado e contador Jean Hevert Figaro, de 55 anos,
têm o privilégio de morar num sobrado que fica num terreno de 12.500 metros
quadrados. Tem piscina, cinco suítes, salas amplas, escritório, amplo jardim
com gazebo e garagem para os três carros da família. Para construi-la,
tomaram um empréstimo bancário pago nos últimos oito anos. “Não era assim há
20 anos. Hoje, muitos profissionais conseguem comprar suas casas e não são
ricos”, despita Anite, mãe de três filhos, todos morando e estudando nos
Estados Unidos.
A história de desigualdades remonta ao passado. Uma revolta armada de
escravos trouxe a independência do Haiti em 1804. Na época, era uma nação
rica, responsável por três quartos da produção mundial de açúcar.
Só que a liberdade não trouxe uma melhoria de vida para todos. Nos séculos
19 e 20, o país se afundou em regimes autoritários e ditatoriais, além de
seguidas intervenções de outras nações. Golpes internos provocaram o
massacre de haitianos, como em 1991. E nunca mais se pôde viver em
tranqüilidade.
Talvez seja por essa razão que mais de 2 milhões de haitianos vivam fora do
país e outros tantos continuem querendo sair – na semana passada, 150 foram
deportados dos Estados Unidos. A embaixada americana cobra US$ 50 para
emitir um visto legal, desde que o interessado apresente um saldo no banco
de US$ 15 mil e um endereço fixo longe das favelas. Mas há mercadores do
sonho alheio: por US$ 5 mil, que pode ser pago em parcelas, eles oferecem um
meio ilegal de entrar nos Estados Unidos. E, com isso, deixar o Haiti para
trás.

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