Publicada em 1 de março de 2006
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
RECIFE
Pã rã rã rã rã rã rã, Pã rã rã rã rã rã rã. Os acordes de Vassourinha, o
frevo-símbolo do carnaval de Pernambuco, não são, por incrível que pareça, a
coisa mais escutada em Recife e Olinda. O tempo todo, em todos os lugares,
na boca do povo, o que mais se fala é da tal democracia. Não a praticada
pelos políticos, que também por aqui viraram motivo de chacota, mas a da
chance de se divertir com direitos iguais. Ou bem perto disso.
Democracia carnavalesca é tema caro para os pernambucanos, visse? Há alguns
anos, virou contenda. Tentaram criar a troça com cordão de isolamento. Ficou
no bloco da saudade. Importaram a axé-music para a Praia da Boa Viagem. A
prefeitura disse que não, era coisa de baianos. Daí os que gostavam desse
ritmo alugaram casarões em Olinda, botaram caixas acústicas nas janelas e
tocaram na “boquinha da garrafa”.
Ousadia maior: quiseram trazer o beijo forçado, como na folia de Salvador.
Foram rechaçados por decreto municipal. Os incomodados desistiram e se
mudaram. Neste ano, lotaram os vôos para a Bahia.
Democracia carnavalesca funciona assim: música para “quase” todos os gostos
em vários locais das duas cidades. Vai quem quer e quem quer não paga. Pegue
os folhetos da programação. Só há uma certeza. Não vai dar pra ver tudo. Mas
dá para criar roteiros interessantes (programe-se para 2007).
Um dia típico nos dois carnavais pode começar pela manhã com um encontro de
maracatus rurais de Mestre Salu. Você verá os homens de cabeleiras
gigantes, óculos escuros e tênis Conga. Eles levam nas costas de duas a seis
latas com guizos. Enquanto correm, fazem um som alucinante. Se tiver fôlego,
vá ver troças pelas ladeiras de Olinda. Passe pelo Beijódromo – cuidado, há
o hétero e o homossexual. À tarde procure blocos tradicionais como Os Ursos.
Depois vá para o Recife Antigo. Até chegar à atração, outras atrações vêm
até você. Pode ser um bloco de maracatu, caboclinho ou boi. Quando vir já
estará cantando o Pã rã rã rã rã rã rã.
Veja os frevos de bloco, os líricos. São marchinhas das antigas. À noite, se
for segunda-feira, o programa acaba com a visita ao Pátio do Terço. Há o
encontro de maracatus de baque virado. Corte com rei e rainha ao som de uma
batida bem africana. Perto da meia-noite, as luzes são desligadas e começa a
evocação de um babalorixá e o rufar dos tambores. Arrepia. Caetano Veloso
viu e amou. Ou não, em se tratando do baiano.
Democracia carnavalesca é isso, mas também uma festa que, à exceção do Galo
da Madrugada, não se diferencia pobres e ricos, negros e brancos,
brasileiros e estrangeiros. Em Recife e Olinda, impera a harmonia. A ordem é
misturar. Claro que há um preço. O suor, por exemplo. No meio de um bloco, o
contato é intenso. O problema é a mistura de perfumes Dolce Gabbana e
Rexona, ambos vencidos. Pior é agüentar o cheiro de xixi na rua. Senhores
prefeitos, democracia carnavalesca tem suas necessidades. Pã rã rã rã rã rã
rã, Pã rã rã rã rã rã rã.