Publicada em 14 de setembro de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
RIO – É comum num processo de licitação de obras públicas empresas se
digladiarem. Quanto mais concorrentes conseguem derrubar antes da abertura
dos envelopes, maiores as chances de vencer o processo. Para tanto, apontam
falhas nas propostas adversárias, investigam documentos alheios e apelam
para os recursos. No Rio, as disputas vêm ultrapassando esses limites e as
brigas estão indo parar na Justiça. Todos estão de olho nas milionárias
obras da prefeitura. Sobram acusações entre perdedores e vencedores.
Fala-se, nos bastidores, em favorecimento, concorrências dirigidas e até no
uso de documentos forjados.
O Estádio Olímpico do Rio, no bairro de Engenho de Dentro, é o principal
pomo de discórdia. Terá uma área total de 250 mil metros quadrados e
capacidade para 45 mil pessoas. Em 2007, abrigará os Jogos Pan-Americanos e
é um dos maiores trunfos da cidade para concorrer às Olimpíadas de 2012. A
licitação foi vencida pelo consórcio Racional/Delta/Recoma, mas ações
judiciais de grupos derrotados contestam a concorrência. A Riourbe, empresa
da Secretaria Municipal de Obras e responsável pelos projetos de
urbanização, já assinou o contrato de R$ 87,4 milhões (deságio de 10%) e
critica a insistência das outras consorciadas em não aceitarem o resultado.
É em São Paulo, mais exatamente no Teatro Abril, da Avenida Brigadeiro Luís
Antônio, que está o centro das discussões. O edital de licitação do Estádio
Olímpico do Rio exigia a comprovação de uma obra de “desmontagem
não-destrutiva de estrutura metálica em edificação tombada”. Na área do
Engenho de Dentro, há um museu ferroviário tombado. A Racional, que venceu a
concorrência, afirmou que fez tal obra de restauro no Teatro Abril, em 2000.
No local, funcionou o Paramount, que abrigava salas de cinema. Como se
tratava de imóvel em processo de tombamento desde 1990, a construtora teve
de pedir autorização aos departamentos de preservação patrimonial do Estado,
o Condephaat, e da Prefeitura, o Conpresp.
Aí entram os outros consórcios. Primeiro contestaram que o antigo Paramount
não era um prédio tombado. De fato, o teatro só foi oficialmente tombado em
2002 pela Prefeitura paulistana. Mas por estar em processo de tombamento
qualquer alteração só seria possível com o consentimento do Condephaat ou
Conpresp. O consórcio vencedor, Racional/Delta/Recoma, apresentou dois
documentos durante a fase de licitação em que os termos de atestados
técnicos do Conselho Regional Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Crea) de
São Paulo eram diferentes. O primeiro falava em tombamento pelos dois
órgãos; o último só do municipal.
A Riourbe, na fase administrativa, aceitou os argumentos da
Racional/Delta/Recoma sobre esse item e indeferiu todos os recursos dos
demais consórcios. O caso foi parar na Justiça. Dois consórcios, o das
empresas Camargo Corrêa/Concrejato/Lisonda e o das
Squadro/Comagi/Piacentini/Celi/Principal, lutam agora para provar que nunca
foi feita tal obra de restauro no antigo Paramount. Obtiveram liminares, mas
a Riourbe derrubou todas na Justiça.
“Quem está recorrendo está chovendo no molhado. A estrutura metálica já até
enferrujou”, ironizou Jorge Judas Manubens, vice-presidente da Racional. Ele
garante que a construção do Teatro Abril teve todas as autorizações dos
órgãos de preservação. “O Conpresp não entra no mérito de como fazer, mas o
que deve ser preservado.” A parte restaurada é o foyer, conjunto composto do
salão de entrada, saguão, escadarias e mezaninos. A estrutura metálica seria
a cobertura desse foyer.
Mas os demais consórcios obtiveram do Conpresp um novo documento indicando
que o órgão desconhece a “desmontagem não destrutiva de estrutura metálica
tombada”. José Geraldo Simões Junior, diretor do Departamento de Patrimônio
Histórico (DPH), a quem o Conpresp está subordinado, confirmou ao Estado a
emissão do ofício. Afirmou ainda que o DPH não tem conhecimento de uma
solicitação específica para tal obra de engenharia. A Riourbe alegou, no
processo judicial, que o consórcio liderado pela Camargo Corrêa usa de
“afirmação falsa, delirante de realidade, o que se comprova com o manuseio
da documentação” e caberia ao Crea-SP a função de investigar e esclarecer o
caso.
Decisão – O Crea-SP informou na sexta-feira que a Câmara Especializada de
Engenharia Civil analisará nesta semana os atestados técnicos da Racional
para a construção do Teatro Abril. São 66 conselheiros, entre engenheiros,
técnicos e tecnólogos, que decidirão se a líder do consórcio vencedor
apresentou documentos fiéis aos fatos.
O presidente da Riourbe, Jorge Fortes, afirmou que mesmo se ficar comprovado
que a Racional não fez a obra de restauro exigida no edital o caso teria de
ser analisado pelos corpos jurídico e técnico do órgão. Mas sinalizou que,
se os atestados estiverem corretos, poderá tornar as empresas do consórcio
Camargo Corrêa inidôneas – o que as impediria de participar de outras
concorrências.
É mais uma reviravolta no caso, o feitiço se voltando contra o feiticeiro.
Amanhã, os advogados do consórcio da Racional entram com uma defesa prévia
na Riourbe afirmando que o consórcio da Camargo Corrêa cometeu crime de
perturbação da licitação. Se vencer essa outra disputa, a pena prevista é de
6 meses a 2 anos de detenção e multa. Manubens, da Racional, fala até em
ação de danos morais.
Por que empreiteiras de grande porte chegaram a esse ponto ainda é um
mistério. Para Fortes, da Riourbe, toda essa briga é um sinal da
transparência das licitações e que o processo está sendo vantajoso para a
prefeitura carioca. Desde 2001, o órgão é responsável por 1.265 intervenções
urbanas – 190 em andamento. Os contratos superam R$ 750 milhões. Em 2003, a
previsão é de investimentos de cerca de R$ 600 milhões. “É normal que as
empresas queiram se comer, é saudável e só qualifica nosso processo.”
Manubens afirma que a entrada da Racional no ramo de obras públicas, e
vencendo concorrência milionária, pode estar incomodando outras empresas
“acostumadas a trabalhar nesse setor”. Empreiteiros que ficaram de fora da
concorrência, entre empresas habilitadas ou não nesse e em outros processos
da Riourbe, sugerem, sem apresentar provas, que o órgão municipal estaria
favorecendo a carioca Delta Construções e a paulista Recoma. Fortes nega
categoricamente. Tanto a Camargo Corrêa quanto a Delta, que detém mais de R$
200 milhões em contratos com a Riourbe (Ver textos abaixo), foram procuradas
pela reportagem mas não quiseram dar entrevista.
Pista – O empresário Sergio Schildt, da Recoma, afirma que os derrotados da
licitação estão tentando tumultuar. “O que está havendo são empresários que
não se conformam em perder. É uma tática quase suicida”, critica. A Recoma é
uma empresa especializada em pisos de madeira e esportivos que entrou no
consórcio vencedor para construir a pista de atletismo e o gramado do
estádio olímpico. Foi alvo também das reclamações adversárias.
Isso porque no início da concorrência um item estabelecia como padrão uma
pista de manta Regupol, produto da Recoma, ou similar. Motivo suficiente
para os rivais afirmarem que havia direcionamento. A Riourbe negou
favorecimento e habilitou empresas fornecedoras de pistas aprovadas pela
Associação Internacional de Federações de Atletismo. Outra crítica foi a de
que Recoma só tinha experiência com grama sintética. Schildt afirma que já
instalou grama natural, mas o grau de complexidade da montagem do produto
artificial é muito maior. A empresa venceu em dezembro uma outra licitação,
o da Vila Olímpica do Caju.
Cabe agora à Justiça a decisão final sobre uma das maiores disputas já
ocorridas por uma concorrência de obra pública no País. No total, 45
empresas divididas em 15 consórcios entraram no jogo, 5 foram habilitados e
só 1 levou.
Licenciamento emperra Cidade das Crianças
A Delta Construções é responsável por outras duas obras de peso da
Riourbe, o órgão de urbanização da cidade carioca. Uma delas, a Cidade das
Crianças, foi embargada por problemas ambientais pela Fundação Estadual de
Engenharia e Meio Ambiente (Feema). A empresa venceu a licitação com uma
proposta de R$ 23,4 milhões, um desconto de 25%. A questão gira em torno da
obrigatoriedade do licenciamento total ou parcial do empreendimento, que
contará com áreas de lazer, lagos artificiais e estação de tratamento de
esgoto (ETE).
Para tocar a obra, a vencedora da licitação conseguiu uma liminar na
Justiça. A Feema entrou com um agravo de instrumento, ainda sendo julgado.
Para o procurador de Justiça Israel Stoliar, há o risco de que a Delta com a
liminar determine por conta própria as partes da obra e quando for decidida
a sentença fatos de difícil reparação terão sido consumados.
“Ali funcionava uma fábrica de pré-moldados. A regularização da obra já foi
pedida para a Feema, mas a Serla, que cuida dos rios, sentou em cima do
processo. Aí é uma questão absolutamente política”, diz o presidente da
Riourbe, Jorge Fortes. Segundo ele, haverá o plantio de 1.500 árvores e a
total recuperação ambiental da área.
A Serla, ou Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas, informa que
desde julho a Riourbe não dá explicações sobre como será construída a ETE. A
demarcação das faixas marginais já demonstrou que há problemas. Nas margens
do canal do Ita, onde deveria haver a proteção, o projeto da Delta prevê um
vestiário, uma quadra de tênis e a ETE. Do outro, às margens do Rio Guandu,
estão previstos um pórtico de entrada, uma estação de trem e metade de um
lago artificial.
Cidade do Samba, outra obra questionada
A concorrência para a Cidade do Samba, uma outra licitação vencida
pela Delta Construções, num consórcio com a Oriente Construção Civil, foi
parar na Justiça. Na fase administrativa, o consórcio percebeu que a
concorrente Estacon/FW podia ser inabilitada pelo descumprimento de um item
do edital. Entrou com um recurso aceito pela Empresa Municipal de
Urbanização Riourbe. Impedida de participar da abertura de envelopes, a
Estacon/FW entrou com um mandado de segurança, que aguarda julgamento.
A Cidade do Samba, no bairro da Gamboa, zona portuária, prevê a construção
de 14 galpões para as escolas de samba do Rio. Hoje, algumas ocupam espaço
em galpões antigos nas redondezas. Outras, nem isso. Como um dos maiores
produtos de marketing da cidade, o projeto prevê um grande espaço para que
os turistas saibam como é feito o carnaval carioca.
O grupo Delta/Oriente venceu a concorrência com uma oferta de R$ 73,6
milhões (deságio de 14%). As duas empresas são velhas conhecidas no Estado.
Na gestão de Anthony Garotinho no governo estadual, já foram campeãs das
obras do Departamento de Estradas de Rodagem. O contrato foi assinado no dia
14 de agosto, sem que a ação judicial do consórcio inabilitado fosse
julgada, e as obras já foram iniciadas. “Partindo desse pressuposto não se
faz nada e vamos ter de paralisar todas as obras porque empresas entram com
um mandado de segurança”, afirma o consultor jurídico da Riourbe, Lourenço
Cunha Lana.
“São regras que a lei estabelece. Tenho que seguir a lei”, justifica o
presidente da Riourbe, Jorge Fortes, para explicar o rigor na inabilitação
do consórcio Estacon/FW. Empresas perdedoras, contudo, fizeram contestações
à comissão de licitação da Riourbe em relação a alguns itens apresentados
pelo grupo vencedor, mas não obtiveram êxito.
Uma das exigências do edital era a comprovação de experiência na instalação
de um acumulador de veículos, um tipo de garagem eletrônica onde dois carros
podem ocupar uma mesma vaga. O consórcio Estacon/FW questionou a falta desse
tipo de atestado por parte da concorrente. Posteriormente, foi anexada uma
declaração da empresa Klaus Parking System indicando que tal equipamento foi
vendido ao grupo vencedor. O acumulador foi instalado, segundo o consórcio
Delta/Oriente, numa rodovia.