Entre o véu e as grades

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Publicada em 17 de maio de 2000
Veja

Eduardo Nunomura
Falta menos de um mês para Sueli Messes da Silva realizar um sonho antigo. Em 14 de junho, uma quarta-feira, trocará alianças com Romualdo Barbosa da Silva, um namorado de adolescência. Ambos têm 28 anos e vão casar de papel passado, apesar de Romualdo, condenado por assalto, ainda ter cinco anos de pena por cumprir. Sueli, que há duas semanas comprou seu vestido com véu e grinalda de segunda mão por 200 reais, em três vezes, é uma das 150 noivas do megacasamento marcado para realizar-se no salão nobre do Pavilhão 6 no famigerado complexo do Carandiru, o maior presídio da América Latina. Depois da festa, prevista para durar cinco horas, as noivas voltarão para casa e os noivos para a cela. A noite de núpcias só ocorrerá no final da semana – e com tempo marcado. Dependendo do número de presos com direito a visita íntima em cada xadrez, pode variar de apenas quarenta minutos a sete horas. Para muitas dessas noivas, vida de casada de verdade só daqui a cinco, dez, quinze anos.
Ronny e Glauce, com o filho Luan: os dois se conheceram nas visitas dela a um irmão
O mundo por trás dos muros do Carandiru é daqueles que a maioria das pessoas só ouve falar quando há rebeliões ou fugas. No mais famoso motim, em outubro de 1992, a Polícia Militar massacrou 111 detentos no Pavilhão 9. É um lugar de horrores. A capacidade é para 3.500 presos, mas vivem amontoados 7.500. Oito em dez detentos estão contaminados pelo bacilo da tuberculose. Um em cada seis é portador do vírus da Aids. O tráfico de drogas corre solto, quadrilhas disputam o controle dos corredores e presos ameaçados de morte vivem isolados em celas insalubres. O que faz com que uma mulher decida atrelar formalmente seu futuro ao de um condenado? Os noivos não somente são pessoas de comprovados maus antecedentes como raros dispõem de qualquer fonte de renda. A maioria das noivas conheceu o futuro marido fora da cadeia e muitas estão apenas aproveitando a oportunidade para oficializar uma relação de longa data. “Quando tomei oito tiros e fui preso pela segunda vez, pedi para ela me abandonar”, conta Romualdo. Sueli manteve-se firme e fiel. “Jamais o largaria”, declara a noiva. “Ele é o homem da minha vida.”
Aos 24 anos, Claudinéia Silva Zoranti de Souza está grávida de seis meses. O pai é Devair Felipe dos Santos, 34 anos, o “Careca” do Pavilhão 8, e a concepção ocorreu durante uma visita íntima. O nome do futuro rebento já foi escolhido: dependendo do sexo, será Victor ou Vitória. Claudinéia e Devair estão juntos há oito anos. Só se separaram um ano atrás, quando ele foi preso por assalto a mão armada. Com experiência anterior como escriturário, ele se encarrega de orientar os colegas sobre a papelada necessária para o casório. “Apesar de nossos erros, o casamento é uma forma de mostrar que podemos amar como todos os outros”, filosofa o noivo. A liberdade só virá dentro de dois anos. O casamento coletivo é uma iniciativa da missionária Antonina Di Croce Andriotto, da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo, que há catorze anos visita diariamente a Casa de Detenção. Amiga de noivos e noivas, ela será a madrinha no civil de todos eles. A adesão em massa ao casamento reflete o intenso trabalho das igrejas evangélicas dentro das cadeias. Na maioria, os presos no Carandiru são católicos, mas os evangélicos conquistam almas em ritmo acelerado. Por trás dos imensos portões de ferro, circulam todos os dias cerca de 200 voluntários de dezenove credos.
A conversão deixa o fiel numa saia-justa, pois os evangélicos são severos quanto ao sexo fora do casamento. O tapeceiro Silas de Oliveira, 38 anos, condenado a setenta anos por estelionato e há cinco no Carandiru, converteu-se à Igreja Universal do Reino de Deus em 1997. Um ano mais tarde se tornou o pastor Silas e agora se prepara para casar com uma mulher que conheceu por um anúncio de uma revista encartada num jornal. O texto dizia: “Nelita, de 37 anos, gostaria de se corresponder com homens de mais de 30 anos, solteiros, viúvos ou divorciados, com filhos ou sem. É capricorniana”. O que chamou a atenção foi o endereço, “Cartas para a Rua Coração de Maçã”, na periferia de São Paulo. Ele escreveu e duas cartas mais tarde a empregada doméstica mineira Nelita de Caldas Leite apareceu para uma visita. Ela declara-se apaixonadíssima e até alimenta bons sentimentos em relação ao soturno complexo penitenciário. “A sinceridade do Silas não se encontra em homem nenhum aqui fora”, emociona-se. “O Carandiru me traz uma coisa especial. Foi lá que conheci o homem da minha vida e é lá que, nos fins de semana, sou a mulher mais feliz do mundo.” Como já cumpriu parte da pena e conseguiu a redução de outro tanto com recursos à Justiça, o pastor espera ganhar o direito de passar o dia fora da cadeia ainda neste ano e, enfim, viver uma vida de marido e mulher com Nelita. “Ela é tudo para mim”, derrete-se. “Só penso em ficar em prisão perpétua nos braços dela.”
“Coisa maravilhosa” – Glauce Rosália Veloso só encontrou “o verdadeiro amor”, como diz, atrás das grades. Em 1997, ela tinha apenas 17 anos quando conheceu Ronny Clay Chaves, na época com 21. “Vinha visitar meu irmão e da primeira vez que vi Ronny foi como um encanto”, conta. Fiel à ética da cadeia, antes de iniciar o namoro Ronny pediu permissão ao irmão dela. A família torceu o nariz ao relacionamento com o presidiário, mas logo se viu que o caso era sério. O futuro do casal é incerto, pois o marido só cumpriu cinco dos 22 anos de uma pena por cumplicidade num latrocínio. O compromisso entre os dois, contudo, foi selado com o nascimento de um filho, Luan, hoje com 1 ano e 7 meses. “Desde o início do namoro, o Ronny queria casar, mas eu achava cedo”, diz Glauce. “Então ele me pediu um filho. Foi uma coisa maravilhosa.”
Com exceção das noivas, de alguns padrinhos e madrinhas, da missionária Antonina e do pastor Charles Ribeiro de Moraes, o religioso do Carandiru que vai celebrar a cerimônia, todos os envolvidos nos preparativos do casamento são detentos. O bolo para os 1.500 convidados foi encomendado a Rubens Lima da Silva, 44 anos e há dez na cadeia por assalto. Silva é também um dos noivos. Os 6.000 salgadinhos e 2.500 sanduíches, acompanhados de refrigerantes, serão servidos por quinze presos, vestidos de garçom. Falta ainda encontrar quem doe ou empreste os blazers azul-marinho dos noivos. A calça será bege, a cor do uniforme dos detentos. Diferentemente do que em geral ocorre num casamento, serão as noivas a esperar por eles no altar. Os noivos entrarão todos juntos no salão, ao som da música Meu Presente. Composta por Elienai Messias, da banda gospel Sal da Terra, tem um refrão que diz: “O amor nunca se acabará na vida de quem sabe amar”.

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