Em São Carlos, uma Febem do bem

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Publicada em 20 de março de 2005
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
SÃO CARLOS
Existe uma Febem do bem localizada 236 quilômetros a noroeste de São Paulo.
Ela abriga adolescentes como Cícero, um jovem de 15 anos que num único dia
cometeu quatro assaltos a mão armada. Ou seu colega de crime, Luiz, de 14
anos, que meses antes já havia sido detido por porte ilegal de arma,
comprada por R$ 50. Eles conhecem mais artigos do Código Penal do que os do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Adotam gíria de malandro, dizem
estar arrependidos, mas não rejeitam a hipótese de voltar a delinqüir. A
diferença desses infratores com tantos outros espalhados pelo Estado é que
são internos da unidade de São Carlos. Lá, eles têm verdadeira chance de
recuperação.
O pequeno laboratório de São Carlos é um caso à parte entre as 77 unidades
da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Tudo começou em 1999, quando um
padre, Agnaldo Soares Lima, e um juiz, João Baptista Galhardo Junior,
visitaram o Complexo Imigrantes num dia de rebelião. Viram o horror, com
adolescentes sendo queimados ou decapitados. Ajudaram nas negociações e
saíram do local com uma certeza: mais nenhum adolescente da cidade iria para
a capital cumprir medida de internação. Foi o primeiro município paulista a
assumir essa responsabilidade.
Ao criar uma unidade para infratores em 2001, São Carlos cumpriu o que
determina o artigo 88 do ECA. Colocou no mesmo lugar assistentes sociais,
promotores, juiz, advogados e policiais. O efeito foi imediato: os
adolescentes passaram a ser julgados com maior rapidez. “Assim ele já tem a
sensação de punição, de cobrança”, diz o padre Agnaldo. “Se demorar muito,
surge a sensação de impunidade.” Na capital e em outras cidades, um jovem
pode esperar até um ano para saber que medida terá de cumprir. Em São
Carlos, o prazo não passa de sete dias.
O Núcleo de Atendimento Integrado (NAI) inclui uma unidade de internação
provisória, onde a permanência é de, no máximo, 45 dias. Os casos mais
graves vão para a unidade de Araraquara. “Repressão não é a melhor opção,
mas reeducação”, diz o juiz Galhardo Junior. “Já julguei homicídios nos
quais a resposta do menino foi tão positiva no NAI que pude aplicar uma
medida menos severa, a da semiliberdade.”
Uma bucólica chácara de portões abertos abriga os adolescentes em
semiliberdade. Trabalham e estudam de dia e dormem na unidade à noite. Todos
devem cuidar da horta. Vizinhos e até crianças vão ao local comprar alface,
rúcula, beterraba e couve. “Fiquei com medo de ir para a Febem (de Ribeirão
Preto ou da capital)”, diz Rodrigo, de 17 anos e internado desde novembro
por assalto a mão armada. “Lá o bicho pega. Fico imaginando que os caras de
lá são obrigados a participar das rebeliões.”
Na sexta-feira, o governador Geraldo Alckmin anunciou a criação de 41
unidades menores em 9 cidades do interior e da Grande São Paulo. “É
fundamental que o exemplo de São Carlos seja expandido”, atesta Ariel de
Castro Alves, do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Mais de mil infratores passam por ano no NAI. Nos últimos 12 meses, foram 87
custódias. Desde sua criação, a Febem de São Carlos atendeu a pouco mais de
500 internos. Em 1998, eram cometidos em média 15 homicídios por
adolescentes na região. Hoje, o índice é de dois ou três casos por ano. A
reincidência de quem tem passagem pelo NAI é de 3%.
“Aqui é na igualdade e humildade”, diz o interno Luiz. “Nas outras Febens ou
você anda certo ou apanha do monitor.” Por que ele e seu colega decidiram
praticar quatro assaltos numa só noite? “A gente queria dinheiro para
zoeira, comprar roupa, tomar uns baratos, sair com as garotas”, explica, com
orgulho, Cícero.
MAL NECESSÁRIO
“Graças a Deus, como eles dizem, a casa caiu”, afirma a mãe de Cícero,
Roseli, de 38 anos. “Acredito que agora ele vai ver que as coisas não são
como pensa que devem ser.” Ela é faxineira com renda mensal de R$ 480,00. O
marido, mecânico, ganha R$ 850,00. Moram numa casa simples, mas não passam
necessidade. Ainda assim, Cícero optou pelo crime. “Ainda bem que ele foi
para o NAI. Se fosse para uma outra Febem, ele sairia de lá pior, como a
gente vê na TV.”
Os programas de semiliberdade, liberdade assistida e prestação de serviços
comunitários do NAI são tocados pela Obra Social Salesiana. A prefeitura é a
gestora. A Febem, propriamente dita, cuida da custódia dos infratores,
oferecendo funcionários, educadores e agentes de segurança. O custo por
interno é de R$ 700. No sistema estadual, estima-se que ultrapasse os R$ 2
mil.
Desde o flagrante do ato infracional até o julgamento da medida que vai
cumprir, o adolescente é acompanhado e sua família tem de comparecer ao NAI.
O envolvimento familiar é fundamental e principal dificuldade da
instituição. Em nenhum momento, ele recebe tratamento que desrespeite o ECA.
Nada de andar com olho no pé, em fila ou sofrendo ameaças de funcionários.
“Se for tratá-lo como bandido, ele vai se comportar como um. Se tratá-lo
como adolescente, será só um adolescente”, resume a diretora do NAI, Joanna
Ravenna Pinheiro.

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