Eles tiveram câncer na infância. A medicina permitiu-lhes nova vida

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Publicada em 12 de junho de 2005
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
Duas mil crianças brasileiras vão morrer de câncer neste ano. Há duas
décadas, esse número segue inalterado. A diferença é que graças aos avanços
da medicina hoje se fala de sobreviventes. Nos anos 70, o porcentual de cura
era baixíssimo para as crianças e os adolescentes. De cada dez pacientes,
oito morriam. Hoje, dois vão a óbito.
Com isso, os sobreviventes são hoje milhares. E todos com histórias para
contar, como Giovanna Maira, no segundo ano de canto lírico da Universidade
de São Paulo e vítima de retinoblastoma quando era bebê. Ou Elier Hortolan,
que superou a perda da perna esquerda amputada em 1962 por causa de um tumor
ósseo. Ou o universitário Bruno Camargo Pinheiro, que aos 6 anos teve a
medula autotransplantada, numa técnica arriscada à época, mas agora vive
feliz e cuja única preocupação é conquistar uma namorada.
O diagnóstico do câncer deixou de ser uma sentença de morte há muito tempo.
É por isso que a legião de sobreviventes não pára de crescer. Tumores antes
letais agora são curáveis e deixam seqüelas bem menores. Só que a doença não
deixou de avançar também. Novas neoplasias ainda pouco compreendidas pelos
pesquisadores mantêm elevado o número de mortes e seqüelas.
Crianças com leucemia tinham 15% de chances de sobreviver três décadas
atrás. Tratamentos como transplantes, radioterapia e quimioterapia mais
precisas e menos lesivas elevaram a porcentagem de cura para até 80%.
Mas há outros cânceres cujos tratamentos ainda são pouco eficazes. Um deles,
o glioma difuso de tronco cerebral, responde mal à radioterapia e ainda pior
à quimioterapia convencional. A maioria das vítimas morre nos 18 primeiros
meses. Os que sobrevivem carregam seqüelas, como retardo mental ou cegueira.
Um dia, os médicos apostam, pacientes com essa neoplasia resistirão por mais
tempo. E talvez não carreguem marcas dela.
“Antes, a nossa preocupação era salvar a vida a qualquer custo. Hoje
queremos curar com qualidade”, afirma Vicente Odone Filho, responsável do
Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, no Hospital das Clínicas da USP.
“Hoje, dou muito valor ao que o paciente quer fazer. Não é só a cura que
deve ser eficiente, mas também a reinserção do paciente na sociedade”,
acrescenta Antonio Sergio Petrilli, do Grupo de Apoio à Criança e ao
Adolescente com Câncer (Graac), o centro que mais atende neoplasias infantis
no Brasil.
Décadas atrás, o câncer era tratado por hematologistas, os médicos que se
preocupam com as doenças do sangue e seus órgãos produtores. Foi nos anos 70
que os pediatras entraram para valer nessa área e elevaram a preocupação
para outro nível: as crianças vão sobreviver, mas a que preço? Não existe só
uma neoplasia, mas várias delas.
Leucemias, tumores ósseos, do rim, linfomas, todos são abrigados num único
nome: câncer. Por esse motivo, a doença sempre foi cercada de um estigma
muito forte. No passado, beirava o extremo. Câncer em crianças era raríssimo
– médicos ignoravam ou não diagnosticavam a doença nelas. Quando isso
acontecia, pais desesperados simplesmente abandonavam os filhos nos
hospitais.
ESFORÇO E TALENTO
“É muito difícil ouvir de um médico que a cura de sua filha era que ficaria
cega”, recorda Valquíria Maria da Rosa Silva, mãe de Giovanna Maira. O
diagnóstico de um grave tumor nos olhos foi dado 17 anos atrás pelo médico
Luiz Fernando Lopes. Ela chegou a pensar em não deixar que a operação fosse
feita. O marido, Luiz Augusto Silva, convenceu a mulher do contrário. Foram
quatro anos de tratamento, com 21 sessões de quimioterapia. E Giovanna
sobreviveu para cantar, também graças a Lopes, do Hospital do Câncer. “Ele é
o culpado pelo que sou”, brinca a hoje universitária Giovanna.
O médico aconselhou os pais: “Dêem um teclado. A música ampliará o caminho
dela.” E como. Aos 3 anos, ela ganhou seu primeiro teclado. Aos 10, subiu ao
palco pela primeira vez, no Paço Municipal de Osasco. Na adolescência,
começou a cantar e a se apresentar, incluindo em programas de rádio e TV. Há
poucos anos, decidiu ganhar dinheiro com o seu dom. Toca e canta em eventos,
sobretudo casamentos.
Apesar do talento e esforço, Giovanna ainda tem de enfrentar muitos
obstáculos. O último vem da Universidade de São Paulo, onde ingressou em
canto lírico em 2004. A escola não tem rampa para cegos nem lhe oferece aula
de piano clássico por falta de professores. E a USP já rejeitou comprar um
programa que converte partituras em braile. Só ela utilizaria, foi a
justificativa. Cada nota musical da 9ª Sinfonia de Beethoven teve de ser
ditada por colegas para que fizesse a transcrição para a língua dos
deficientes visuais. “É uma luta constante”, desabafa. Por essa razão, ela
evita comentar que foi curada de um câncer na infância. Já basta um
preconceito.
TRAUMA
As seqüelas do câncer são físicas ou emocionais. Por ser tão desgastante a
batalha pela cura, é muito comum que os pacientes e a família passem por
momentos difíceis mesmo anos depois da alta. Uma menina com uma cicatriz que
a obriga usar maiô, por exemplo, pode ficar traumatizada pelo resto da vida.
Nada é desprezível. Bruno Camargo Pinheiro às vezes chora por não conseguir
namorar. Acha que pode ser culpa da leucemia linfóide aguda, que o deixou
com 30% menos cabelos.
“Tenho medo de chegar nas meninas, fico pensando que elas podem tirar sarro
de mim”, diz o tímido universitário de Publicidade, hoje com 19 anos, mas
aparência de um adolescente de 15. Em 1993, ele sofreu um transplante
autólogo (sua medula foi retirada para passar por um processo de purificação
e devolvida sem o câncer ao seu corpo) no instituto da USP. O drama da
recuperação foi tão grande que os pais de Bruno até hoje o protegem quanto
podem. “Não tenho como pagar o que os médicos e meus pais fizeram por mim.”
“O mais difícil depois da cura é superar a seqüela”, atesta o hoje
aposentado Elier Hortolan. Aos 58 anos, ele é o mais velho sobrevivente da
doença tratado no Hospital do Câncer. Quando tinha 14, após uma pancada numa
mesa, começou a sentir dores tão insuportáveis que em dois meses já teve sua
perna esquerda amputada. Era a única solução à época. Para superar o trauma,
lutou para conseguir um emprego em que a falta de uma perna não fizesse
diferença. Virou desenhista.
“A fase mais difícil já passei. Não há por que querer esconder o que
passou”, afirma Hortolan. “Antes não dizia que perdi a perna por um câncer.
Era uma doença tão grave que não comentava. Agora, a cura nos faz ficar para
contar história.” Que o digam a sua mulher, Rosa Helena de Oliveira, com
quem está casado há 34 anos, seus três filhos e cinco netos.

Grupos acompanham e apóiam pacientes
GEPETTO E GRAAC: O Grupo Especializado em Pediatria dos Efeitos Tardios do
Tratamento Oncológico (Gepetto) surgiu em 1999 pelas mãos do doutor Luiz
Fernando Lopes, que tinha acabado de conhecer experiência semelhante nos
EUA. A idéia era não perder de vista os pacientes do Hospital do Câncer que
há pelo menos oito anos já são considerados curados e ver como elas estão
hoje. Com reuniões nas manhãs de quinta-feira, o grupo multidisciplinar
acompanha os pacientes e descobre como reduzir os impactos físicos e
emocionais de quem teve uma neoplasia. Um banco de dados, hoje com 800
pacientes, permite que a equipe médica desenvolva novos estudos. Já gerou
duas teses acadêmicas e há cinco em andamento.
O Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente com Câncer (Graac) é uma ONG
criada em 1991. Nasceu de uma sala do 9.º andar do Hospital São Paulo, que
depois se mudou para uma casinha, que virou um prédio de 11 andares e é hoje
uma referência no combate ao câncer infantil. Com a ajuda financeira de
grandes empresas e do trabalho de voluntários, o Graac consegue se equiparar
com a medicina praticada nos maiores centros do mundo. Mas todo o esforço e
padrão de atendimento deveriam ser espalhados por todo o País, reconhece o
diretor do hospital do Graac, Antonio Sergio Petrilli. “Em torno de 40% dos
casos não estão sendo tratados ou são tratados inadequadamente. Falta
acesso. Essa é a nossa luta maior”, diz ele. E.N.

ENTENDA MELHOR
RETINOBLASTOMA – Tipo de câncer da retina. É o tumor intra-ocular mais
freqüente em crianças. O diagnóstico e o tratamento dependem do exame
ocular: exame de fundo de olho e exames de imagem (tomografia
computadorizada, ressonância magnética e ultra-sonografia).
NEOPLASIA – É crescimento celular desordenado
GLIOMA – Tipo de câncer que afeta o sistema nervoso central. O termo é
usado para o tumor em qualquer estágio de desenvolvimento
LINFOMA – Câncer do sangue do tecido linfático (sangue)
LEUCEMIA LINFÓIDE – A leucemia da criança é mais do tipo linfóide
(corresponde a 70% de incidência). Entretanto, mesmo a leucemia linfóide da
criança se comporta de forma diferente da leucemia linfóide do adulto. Na
criança, a doença é muito mais sensível à quimioterapia.
ASTROCITOMA – Tumor que afeta o sistema nervoso central
OSTEOSSARCOMA – Tipo de câncer ósseo. É visto mais comumente em crianças na
fase mais rápida de crescimento (estirão de crescimento), com pico de
incidência dos 15 aos 19 anos. As meninas tendem a desenvolver esse tumor
mais cedo do que os meninos, porque atingem a puberdade mais precocemente
que estes.

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