Publicada em 25 de setembro de 2000
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
O Brasil já tem um dicionário para surdos. A obra traduz em textos e imagens
o complexo sistema de comunicação por sinais que existe desde o Império, mas
só agora documentado. São 9.500 verbetes e 40 mil ilustrações em 1.450
páginas. O Dicionário Enciclopédico Ilustrado da Língua de Sinais Brasileira
vem cobrir uma lacuna que afeta a educação e o direito à comunicação plena
de 200 mil brasileiros e outras milhares de pessoas que convivem diariamente
com essa população.
A Língua de Sinais Brasileira (Libras) pode ser encarada como o idioma
natural dos surdos. O português é a sua segunda língua. Enquanto os cegos
usam o código braile mas são fluentes na língua portuguesa, os surdos
encontram dificuldades para se comunicar com outras pessoas porque adotam
outro idioma. Há um obstáculo adicional nessa comunicação: a Libras possui
inúmeras variações de local para local. Assim, é possível encontrar
diferentes sinais para representar a mesma coisa até em bairros vizinhos.
Voluntários – Fruto de um trabalho de cinco anos, o dicionário foi criado
pelo professor de psicologia da Universidade de São Paulo Fernando
Capovilla. Para chegar a um bom resultado, Capovilla e sua equipe reuniram
voluntários surdos que ficaram encarregados de selecionar os principais
sinais. Até então, os registros da Libras eram poucos e limitavam-se à
conhecida “linguagem das mãos”, que traduz o abecedário e os números.
Depois de formar o corpo do dicionário, iniciou-se o trabalho de tradução
para o português e o inglês e de revisão das palavras, contando com a
participação decisiva da Federação Nacional de Educação e Integração dos
Surdos e da Cooperativa Padre Vicente de Paulo Penido Burnier.
“A história começa com o uso do registro escrito e a partir de agora a
língua de sinais brasileira passa a ter seu próprio registro”, explica
Capovilla. A obra vai ajudar também pais e professores ouvintes de crianças
surdas a encontrarem uma fonte de consulta sempre que precisarem. “O
dicionário e o sistema multimídia com voz digitalizada nele baseado
permitirão a comunicação entre surdos e ouvintes.”
O maior obstáculo para o surdo hoje é a falta de um vocabulário de sinais
consensual para sua educação. O Ministério da Educação (MEC) estima que
existam quase 50 mil pessoas com deficiência auditiva matriculadas em
escolas. Depois dos doentes mentais, os surdos são o segundo grupo mais
numeroso que busca o aprendizado. Mas o censo do MEC mostra que eles
encontram dificuldades para avançar nos estudos: 67% dos estudantes surdos
estão matriculados no ensino fundamental e só 2% no nível médio.
Isolamento – Uma das razões para esse desnivelamento é que o Brasil não
possui uma padronização no ensino para surdos. Nem todas as escolas adotam o
bilingüismo, que ensina a Libras e o português. Muitas optam pelo oralismo,
uma forma de ensino que prepara o estudante para freqüentar salas de
ouvintes e é ele que tem de se adaptar ao esquema de aula. Alguns
especialistas defendem que o aluno se integre em salas comuns, adaptadas
para atenderem a esse público. Outros pregam a existência de classes
especiais para os ensinos infantil e fundamental. Porém, faltam educadores
preparados. “É fundamental a capacitação de professores para o uso da língua
de sinais, pois há uma tendência no País para o bilingüismo”, explica a
secretária de educação especial do MEC, Marilene Ribeiro dos Santos.
“O que mais encontramos são surdos sem o português e sem a língua de sinais,
tendo um sistema próprio de comunicação”, acrescenta Solange Rocha, diretora
do Departamento de Desenvolvimento Humano, Científico e Tecnológico do
Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), uma instituição de
referência no setor que fica no Rio. “Há 3 anos, recebemos uma mulher de 28
anos que ficava assistindo à televisão, lavando roupas e cozinhando, mas não
se comunicava.”
Edição é maior que a norte-americana
Os 9.500 verbetes e 40 mil ilustrações fazem com que o Dicionário da Língua
de Sinais Brasileira supere as 5.600 entradas de um dos melhores dicionários
do mundo, publicado pela Gallaudet, a única universidade para surdos do
mundo, com sede em Washington.
A edição brasileira é trilíngüe: português, inglês e a língua de sinais
escrita. Para cada um dos verbetes em português, segue o correspondente em
inglês, como são feitos os sinais com as mãos e a sua escrita visual, que
obedece a um padrão universal. A escrita visual, SignWriting, foi
desenvolvida por Valerie Sutton e representa em símbolos uma palavra
expressa pela língua de sinais. Com ela, é possível escrever livros,
produzir legendas e permitir a comunicação pelo computador.
É por meio do dicionário que se criou o primeiro sistema de telecomunicação
usando sinais animados. Com ele, surdos podem conversar com outras pessoas
que apresentam ou não a surdez. É um sistema inicialmente desenvolvido para
pessoas com sérios distúrbios motores e sensoriais, como a tetraplegia. Na
tela do computador, a pessoa pode “dizer” qualquer coisa selecionando
figuras correspondentes à língua de sinais. Em seguida, o computador
apresenta uma voz digitalizada com o som da palavra.
A obra criada por Fernando Capovilla traz os sinais usados no dia-a-dia
pelos surdos. Por isso, além de palavras usadas com freqüência, estão
presentes gírias e até nomes de empresas.
Regionalismos – Como a língua de sinais varia de região para região, essa
primeira edição é uma tradução mais próxima dos sinais usados pela
comunidade surda de São Paulo. Não significa que um surdo de outro Estado
não possa aproveitar a obra. Mas ele sentirá falta de termos mais próximos
do seu cotidiano, como as expressões regionais. “Estamos dando o primeiro
passo que pode inspirar outros pesquisadores a fazerem o mesmo”, explica
Capovilla.
A impressão dos primeiros 5 mil exemplares será custeada pela empresa Brasil
Telecom, que se comprometeu a patrocinar a tiragem inicial. Para o
desenvolvimento de pesquisa, o professor Capovilla contou com os
financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) e da Fundação Vitae.