Desarmar ‘quimeras’, o desafio para brasileiros

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Publicada em 3 de junho de 2004
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
PORTO PRÍNCIPE – O raciocínio de alguns jovens haitianos é simples. Se a
Força de Paz liderada pelo Brasil pretende desarmar a população, os soldados
devem trazer comida e empregos para todos. Caso contrário, as armas vão ser
usadas para obter o alimento que precisam. A ameaça parte do mesmo grupo que
meses atrás promoveu uma onda de assaltos, seqüestros e terror à população
do Haiti. Eles são os quimeras, os milicianos do Partido Família Lavalas,
armados pelo próprio governo de Jean-Bertrand Aristide para sua defesa e
agora cada vez mais próximos do banditismo.
Uma dica para os soldados brasileiros e de outros países da Força de Paz da
Organização das Nações Unidas que terão a difícil missão de desarmar a
população do Haiti: visitem a favela Citè Soleil. Lá fica um reduto dessa
nova face dos quimeras. Sem ter como defender sua causa principal – o
retorno do ex-presidente Aristide ao poder –, eles se tornaram delinqüentes
juvenis dentro da frágil estrutura social do país.
Praticar crimes virou, para muitos, o modo de sobrevivência.
“Se vamos procurar empregos, dizem que somos quimeras, do Lavalas, e não
conseguimos nada. Sem trabalho, o que podemos fazer?”, indaga Gabriel
Pierre, de 23 anos. Em entrevista ao Estado, ele e um grupo de outros jovens
falaram sobre as (poucas) perspectivas que têm pela frente. Apesar de não se
negarem a dar entrevistas e dizer seus nomes – porque acham que a “causa”
dos quimeras deve ser conhecida mundo afora –, eles impediram que a
reportagem registrasse imagens de seus rostos. Temem que as fotos caiam nas
mãos da polícia.
Gabriel Pierre tem cinco marcas de tiros em seu corpo. Afirma que foi
vítima, oito anos atrás, de remanescentes dos “tonton macoutes” – a temível
polícia política da ditadura da família Duvalier, Papa Doc e Baby Doc. Ele
se juntou ao grupo pró-Aristide por falta de opção.
Desempregado, viu um grande número de amigos de sua idade se integrar ao
grupo que tinha armas à vontade, exercia um poder local e cujas famílias não
passavam necessidades básicas. “Seria muito bom se deixassem Aristide
voltar.”
Jonny Kagis, de 25 anos, afirma que os quimeras são vítimas da repressão
policial, desde que as tropas da Força Multilateral Provisória, liderada
pelos americanos, assumiram em fevereiro o controle da segurança do país.
Sem emprego, sem perspectiva e acuados pela polícia, os jovens dizem ficar
mais revoltados e prontos para reagir. “Se os ricos haitianos derrubaram
Aristide, agora vamos roubá-los e matá-los, porque não temos mais nada a
perder.”
As ameaças dos quimeras soam como um discurso inconseqüente de jovens
rebeldes com poucas perspectivas. E são – apenas com a peculiaridade de
terem tido fácil acesso a armamentos cedidos clandestinamente pelo governo
do ex-presidente hoje exilado na África do Sul. Armados com
semi-automáticas, eles as usavam para intimidar e assassinar seus oponentes.
Estima-se que mais de 25 mil haitianos tenham armas em suas casas. Num país
em que oito de cada dez pessoas vivem abaixo da linha de pobreza, as outras
duas podem ser vítimas dessa armadilha do passado.
Há três semanas, um grupo de soldados americanos jogou uma partida de
futebol com jovens haitianos em Citè Soleil. Muitos eram quimeras. A idéia
era diminuir a resistência da população com os militares, já às vésperas da
saída de suas tropas. Mas o resultado prático foi pífio. O confronto
amistoso terminou empatado e o desarmamento foi irrisório.
Nos quase quatro meses em que permaneceram no Haiti, a força interina
recolheu pouco mais de 200 armas.
Mas a presença de militares estrangeiros, ao menos, afastou temporariamente
os quimeras das ruas haitianas. Os bloqueios em toda a cidade, o uso
indiscriminado de armas, os roubos e seqüestros de pessoas diminuíram
radicalmente e a população pôde voltar ao ritmo normal. Eles, agora,
aterrorizam os moradores dos bairros onde moram, como em Citè Soleil. E
restou o problema de recolher as armas distribuídas ilegalmente.
Há, claro, visões folclóricas para resolver o problema, como a do
primeiro-ministro Gerard Latortue, que numa entrevista coletiva na Cúpula de
Guadalajara, no México, afirmou que tudo se resolveria se o Brasil levasse
jogadores da seleção brasileira de futebol e trocasse os ingressos da
partida por armas.
O porta-voz do Familia Lavalas, Lesly Voltaire, afirmou que foi um erro o
partido pró-Aristide ter apoiado a formação dos quimeras, mas isso ocorreu
porque havia uma pressão da comunidade internacional que deixou o Haiti sem
recursos financeiros. “Se quiserem acabar com as armas, é preciso antes
atacar os traficantes de drogas, que estão ligados aos traficantes de
armas”, disse Voltaire, que foi ministro para os haitianos fora do país –
calcula-se que mais de 2 milhões de pessoas fugiram do Haiti e vivam hoje
nos EUA, Canadá e República Dominicana.
“Hoje, muitas pessoas podem estar armadas, mas não são quimeras”, afirmou
Ynellio Deland, de 20 anos, que garante ser apenas partidário do Lavalas.
Ele disse que é fácil comprar armas pesadas no Haiti, assim como drogas. Mas
faz questão de elogiar e pedir a volta do ex-presidente ao poder.

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