As horas sombrias da favela do Jardim Elba

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Publicada em 21 de maio de 2006
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
Oito horas depois de a polícia invadir, prender, apreender drogas e
armamento, o Jardim Elba voltou à rotina. Voltou ao tráfico de drogas
dominado pelo PCC, ao vaivém de carrões de usuários nas bocas de
traficantes, ao medo e ódio coletivo da polícia, às reuniões por moradia,
aos cultos evangélicos, às conversas animadas da favela, à vida que segue
como se a operação policial da manhã não passasse de cenas do mundo cão na
TV. Numa ação espetaculosa, reproduzida à exaustão nos noticiários ao longo
da quinta-feira, 300 policiais civis entraram numa das maiores favelas
paulistanas, na zona leste. Com mandados coletivos para entrar nas casas e
nos barracos, eles prenderam três pessoas, garantiram à imprensa que elas
eram do crime organizado e foram embora.
A noite e a madrugada seguintes, testemunhadas pela reportagem do Estado,
revelam um outro Jardim Elba. Um universo de gente tão acostumada a
operações policiais quanto ao respeito às leis dos traficantes. Vive-se como
pode, no improviso, com o eterno medo de dizer o que não se deve e nunca
mais poder dizer coisa alguma. “Hoje estamos mostrando as sombras para
amanhã mostrar as luzes”, sonha o padre Paulo Henrique Lino. A seguir, as
horas sombrias do Jardim Elba:

19h
Na Comunidade São Judas Tadeu, 52 pessoas estão reunidas para organizar os
próximos passos do movimento que luta pela legalização de moradias lindeiras
ao Rio Tamanduateí. Um piscinão quase obrigou que famílias há décadas no
local fossem removidas. Mobilizados, permaneceram. Agora é o temor de que em
2012 seja construído ali um parque linear. “Só com a regularização podemos
ficar tranqüilos”, diz a dona de casa Maria da Conceição Torres de Oliveira,
de 33 anos. Nas duas horas seguintes, ninguém cita a megaoperação policial
da manhã. “Fiquei muito surpresa quando vi as imagens na TV e descobri que
era aqui.”

20h45
Nas escadarias de uma igreja, que pode ser um templo ou um bar, jovens
clamam para que nada os identifique. Querem falar. “Do PCC não tenho medo,
porque nunca fizeram medo ni nós”, resume o estudante Matias, de 17 anos.
Casado, mulher grávida de cinco meses, está revoltado. Policiais invadiram
sua casa, quebraram móveis. “Chegaram apavorando. Por mim, se pudessem (o
PCC) que matassem todos os policiais.” Seu colega Luciano, de 20 anos,
ajudante geral, acrescenta: “Todo dia é assim; os caras (polícia) perguntam
se tem antecedentes, se tem tatuagens de presídio. Aí embaçam.” Neste caso,
embaçar, verbo transitivo, significa “vai ter batida policial”.

21h25
O montador de escritórios Ricardo, de 23 anos, chega do trabalho. Derrotado.
Horas antes, voltava de carona com o patrão. Blitz na Avenida do Oratório.
Perguntaram ao patrão se estava sendo seqüestrado. “Para você ver, Ricardo,
em vez de prender ladrão, estão parando gente honesta”, ouviu de consolo.

21h40
Um Fiat Uno, faróis apagados, desce as ladeiras do Jardim Elba. “Pamonhas,
pamonhas, pamonhas quentinhas. Com leite de coco e manteiga.” Nas duas horas
seguintes, ele continuará circulando pela favela.

22h10
Xandão, Alexandre Roberto Ferreira, de 34 anos, está exultante. É tarde da
noite, mas cedo para recomeçar no seu novo velho ponto comercial. Há cinco
anos ele saiu daquela lojinha. Agora com um grupo de amigos limpam tudo,
pintam paredes, lavam vidros. Pela manhã, quando a polícia realizava a
megaoperação no Jardim Elba, ele e a colega Elaine Tavares, a Nana,
acertaram o aluguel do ponto. “Minha cabeça só estava no salão”, diz Xandão.
“Amanhã é outro dia, não vão botar pão na minha boca.” Tem razão. No dia
seguinte, a Nana Cabeleireiros e Xandão CDs vai abrir em grande estilo às 9
horas. Cabelos a R$ 5,00 e CDs, originais, de R$ 10,00 a 30,00.

22h35
O Jardim Elba tem, pelo menos, oito bocas do tráfico em plena atividade.
Algumas ficam mais escondidas em becos e vielas. Outras estão em avenidas.
Não é segredo para ninguém onde elas funcionam. Neste horário, todas com
menos clientes, algo previsível. Numa, onde a polícia passou pela manhã,
tudo segue normalmente. Ali rua vira boca, tamanho o controle dos
traficantes. No começo dela, os olheiros, jovens com motos atentos. No meio,
alguns nóias, os que consomem a droga ali mesmo e engrossam o exército de
soldados do crime. Não querem falar. “Não é o momento”, resume um. Outro do
grupo exibe a arma. Ali, quem manda, são eles.

23h
Três jovens falam sobre homens, shopping e Igreja, não necessariamente nesta
ordem. Elas acabaram de chegar do emprego, uma lanchonete, onde são
balconistas. As casas em que vivem têm poucos cômodos. Falar incomoda quem
precisa dormir. O costume, então, é conversar na calçada. O assunto polícia
vem à tona, a pedido. “Do jeito que eles (policiais) abordaram, é porque
sabiam os becos onde estavam os bandidos. Eles têm infiltrantes”, diz Erica
Torres, de 23 anos. “Acordei com o barulho do helicóptero”, adiciona Edna
Souza, de 26. “Aí vi na TV. Eles (policiais) sabem o pedacinho que presta e
o que não.”

23h40
O líder comunitário Francisco Raimundo da Silva, de 52 anos, prepara-se para
dormir. Foi um dia de reuniões. E alguma tensão sobre o que virá. “Medo de
acontecer uma tragédia, de na briga da polícia com bandidos morrer quem não
deve nada. Antes a vida era uma tranqüilidade, com gente séria indo
trabalhar, voltando para dormir.” Há 28 anos, Francisco vive no Jardim Elba.

0h15
Já são 45 minutos de espera para Ricardo Santos, de 18 anos. Ele está num
passeio do Jardim Elba, ao lado da namorada Carla Kelly e um grupo de
amigos. Joga conversa fora, mas está de olho na direção da Avenida
Sapopemba. Ele espera a mãe, a faxineira Sonia Silva Santos, de 45. “Não
confio em ninguém mais. Desde sexta-feira (dia 12), a situação ficou
difícil. Só volto para casa com ela.” A espera é surreal. Primeiro passa um
Golf vinho com insufilm e janela meio aberta. De dentro, um homem fala:
“Salve”, a saudação comum dos criminosos do PCC. É isca, explicam depois os
jovens. Se você não conhece o interlocutor, melhor ignorar. São os P2, os
policiais que rondam à paisana o bairro para descobrir quem é quem. Outros
P2 vêm disfarçados durante o dia: de mendigos, vendedores de vassoura,
dentro dos ônibus. O carro parte, depois de o motorista fotografar todos na
roda.
Um carro da Rota desce. Desacelera perto da roda dos jovens. Nova
fotografia. Desce na direção de uma boca próxima e passa batido. “Se as
paredes daquela viela falassem, já tinha um livro feito”, ironiza Leonardo,
de 16. Está certo. Menos de dois minutos depois, surge um motoqueiro. Este,
sim, pára na boca. Volta. Pergunta ao jovem que espera a mãe e aos outros do
grupo: “Aê, tão vendendo?” Ninguém responde. “Este é o problema de ficar
aqui, todo mundo acha que somos do tráfico”, diz Leonardo. “Mas temos
documentos.” Passa um Polo preto, com um casal. A loira ao volante pergunta:
“Vocês estão trabalhando hoje?” Silêncio. O carro parte. Todos riem.

0h55
Descem pela avenida mais dois carros de policiais militares. Já não há bares
abertos. Segundo moradores, a Rota passou no início da noite e determinou
que todos fechassem as portas. Ordem cumprida.

2h
O padre Paulo Henrique Lino, que acaba de voltar do interior paulista, onde
realizou missa, oferece uma refeição à reportagem. E aceita o convite para
passear pelo quase desértico Jardim Elba. “Os problemas são complexos. Onde
reina a miséria e a pobreza geral, a droga tem muita vazão.” A violência faz
diferença. Há alguns anos, outro pároco sucumbiu ao tráfico. Ele denunciou
líderes na Ouvidoria e quando voltou ao bairro, no mesmo dia, descobriu que
todos já sabiam. Assim, a saída é disputar com o tráfico as futuras
gerações. A pastoral ensina reciclagem para dez famílias, a multimistura
para salvar crianças da desnutrição, a contínua conscientização dos jovens.
“A luta é desigual.”

2h25
Uma viatura da Força Tática, da Polícia Militar, entra pela contramão,
obriga o carro da reportagem a parar. A forte luz do holofote ofusca a
todos. O carro dos policiais parte. Nenhuma palavra, dos dois lados.

2h45
Numa boca, o padre lembra que o tráfico leva vantagem com a distribuição de
cestas básicas, os churrascos, os ovos de Páscoa e os presentes de Natal.
Dívidas são quitadas. “Queira ou não é tentador ganhar R$ 50,00 por dia para
ser olheiro. Todos são vítimas.” O carro passa por mais um grupo de nóias.
Um exibe uma pistola, não quer conversa. Padre Paulo Henrique acena, o
seguro é partir. Há solução? “Há hipocrisia dos que alimentam esse ciclo de
violência”, diz ele, quando mais um carro bacana parte da boca.

3h
Ricardo Santos caminha com a namorada. Sem a mãe. O jovem diz que vai à casa
da tia, talvez Sonia esteja lá. Não está. Ele se desespera. Senta no chão da
entrada de uma viela e chora. “Sou eu, meu irmão e ela. Eu não durmo sem
ela. Sem minha mãe não vou para casa”, diz. Não quer ir à delegacia. Num dia
normal, sua mãe em poucas horas já deveria estar se preparando para ir
trabalhar, no Parque São Lucas. Ricardo cede. Vai para casa. Não tem
telefones, acha melhor a reportagem não entrar na viela. Agradece ao desejo
de “boa sorte”.

4h20
A favela começa a acordar. Os primeiros trabalhadores surgem antes que os
ônibus. Estes, como de costume, demoram a chegar. Ângela Maria Nascimento,
de 30 anos, trabalha de balconista numa padaria na Vila Prudente. “Já
deveria ter vindo o das 4 horas, o das 4h05 e o das 4h15 e nada”, diz ela.
Futura mãe solteira, grávida de 7 meses, ela não pára de sonhar com seu
primeiro filho, João Vitor. É uma trabalhadora, como a grande maioria dos 85
mil habitantes do Jardim Elba.

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