Publicada em 12 de maio de 2002
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
SILVEIRAS – Num dos altos da Serra da Bocaina, José Brás vigia o Paraíba do
Sul. Aos 62 anos, enxada na mão, o caseiro está sempre atento aos poucos que
chegam na Fazenda Lagoa dos Campos da Bocaina para conhecer a nascente de um
dos rios mais importantes do País. Homem sério, ele acha graça quando
informado que dali para baixo quem usar aquela água vai pagar por ela. “Aqui
não tem relógio nem tem multa, não.”
O zelo que seu José tem pela água que formará um “ribeirão lá embaixo” é uma
exceção. Por isso mesmo o Paraíba do Sul, em alguns meses, ganhará
“relógios” em toda a sua extensão. Caberá a eles marcar quanto cada
consumidor utiliza de água, desperdiça ou devolve suja. Será a primeira
cobrança federal do gênero e uma das últimas tentativas para recuperar os
estragos de décadas de destruição.
Pelo Paraíba do Sul passa a história do Brasil. Por lá iniciou-se o processo
de interiorização do País, com as bandeiras paulistas do século 17. Os
ciclos do ouro, da cana-de-açúcar e do café também atravessaram o rio, que
corta São Paulo, Rio e Minas.
No século passado, a industrialização bebeu de suas águas e fez as vilas e
cidades crescerem ao longo de suas margens. Hoje, o resultado é que se vê
municípios ricos, outros nem tanto, alguns muito pobres e um certo desprezo
pelo rio. Ele está ali, cruza a cidade, mas vive poluído. Os esgotos
doméstico e industrial são lançados no leito praticamente sem tratamento. Um
exemplo: Campos dos Goytacazes, cidade fluminense de 400 mil moradores, tem
estações elevatórias que despejam 100% dos efluentes direto no Paraíba do
Sul.
Sorte de quem vive em Santa Branca. A cidade é a última do trecho paulista
em que o Paraíba do Sul ainda é limpo. “Não dá para acreditar que ele seja
tão sujo em outras partes”, afirma o arquiteto Edson Marcos Rodrigues, de 41
anos, dono de uma pequena propriedade, onde pesca e aprecia as águas
límpidas. Nessa região, gente como o piloto Rubens Barrichello e o
ex-ministro da Justiça José Carlos Dias têm chácaras de lazer.
Não muito longe dali, a realidade é outra. Jacareí, com seus 191 mil
habitantes, só trata 2% do seu esgoto e o índice de coliformes fecais é 14
vezes maior que em Santa Branca. A Santa Casa local despeja o seu esgoto no
rio e vez por outra os moradores vêem o que não gostariam. “Tem curativo e
já vi descer até feto de aborto”, reclama Daniel Rodrigues, de 38 anos, que
consegue pescar ao lado de um cano de esgoto.
Controle artificial – Em tupi, Paraíba quer dizer mar ou rio ruim,
impraticável, imprestável. Os índios coroados, barrigudos ou puris que
habitavam as suas margens podem tê-lo batizado assim pela dificuldade de
navegação, mas o nome combina com o Paraíba do Sul dos dias de hoje. Formado
pelo encontro dos Rios Paraitinga, cuja nascente fica na cidade paulista de
Silveiras, e Paraibuna, o Paraíba do Sul é atualmente um rio de 1.150
quilômetros controlado por barragens. Não há mais cheias naturais em toda a
sua extensão. A aparência é de um rio lento, quase sem força. Para muitos, a
poluição, o assoreamento e o controle artificial têm matado muitos peixes.
A Ponte da Parahyba foi construída para suportar a vazão que chegava a 600
metros cúbicos por segundo, num período de rio livre e sem represas. Hoje, a
vazão está em 200 metros cúbicos por segundo. Construída pelo Barão de Mauá,
a ponte da cidade de Paraíba do Sul abrigou o primeiro pedágio brasileiro
entre os anos de 1857 e 1889. Um cavaleiro pagava 100 réis pela travessia,
mas valia a pena: o tempo de viagem de Vila Rica, em Minas, para o Estado do
Rio caía pela metade. Na época, a taxa serviu para cobrir os altos custos da
obra. Agora, no século 21, a cobrança das águas terá outra finalidade:
construir obras que revitalizem um rio que implora para não ser jogado à
margem da história do Brasil.
Uma água que faz milagres
APARECIDA – A água do Paraíba do Sul é milagrosa, acreditam os católicos
mais fervorosos. O motivo da fé é Nossa Senhora Aparecida. Foi no Porto de
Itaguaçu que pescadores encontraram, em 1717, a imagem de Nossa Senhora da
Conceição numa das margens. Hoje, o local abriga um pátio que recebe
milhares de romeiros em Aparecida, sobretudo nos fins de semana e feriados
santos. É nesses dias que a comerciante Madalena Assis Rangel, de 58 anos,
pode ganhar algum dinheiro vendendo lembranças da padroeira do Brasil.
“Daí para cima dá para ver tudo o que jogam no Paraíba. Deixar de ser benta,
não deixou, só que agora a água é suja”, diz Madalena. Segundo ela, os fiéis
vêm com seus carros para serem “lavados” com a água, outros levam-na embora
para benzer suas casas. Alguns até bebem dessa fonte. “Isso depende da fé de
cada um.”
A zeladora da Capela São Geraldo, Terezinha Lino, de 72 anos, acredita na
força do Paraíba do Sul. “É um santo remédio. Qualquer coisa que acontece
vou lá e pego a santa água para beber.” Terezinha garante que já foi salva
por Nossa Senhora Aparecida. Quando tinha 13 anos, saiu para passear de
barco, caiu no rio e só foi resgatada após três tentativas. Mas milagre
mesmo ela acredita ter sido a descoberta da imagem da santa, que logo em
seguida rendeu aos pescadores um barco carregado de peixes.
Os atuais pescadores do Paraíba do Sul já não contam com milagres. Viram, ao
longo de desastrosas intervenções humanas, os peixes sumirem do rio.
Encontraram também outras espécies introduzidas artificialmente, como os
bagres africanos e tucunarés. O dourado, que não era nativo, mas se tornou
um cobiçado pescado da região, está sumindo de suas águas. Piabanhas, piaus,
piaparas e pirapitingas do sul são cada vez mais raros. Só os mandis
proliferam, já que se alimentam de lixo.
“Pescar agora virou só passatempo”, afirma o aposentado Zacarias Clemente
Gomes, de 71 anos, que já recorreu ao Paraíba do Sul para buscar alimento
para a família quando não havia tanta poluição. Ironicamente, até os
romeiros de Aparecida contribuem diretamente para a sujeira do rio. Os
moradores ribeirinhos até batizaram de “esgoto dos padres” o cano de dejetos
que desce do Santuário Nacional. “Quando chove ou nos fins de semana, é um
fedor que ninguém agüenta”, reclama a dona de casa Rita de Cássia Souza, de
41 anos. O quintal de sua casa fica ao lado da tubulação e a poucos metros
de onde a prefeitura capta água para abastecer a cidade.
Na cidade fluminense de Paraíba do Sul, o garçom Fabio Luís Cardoso, de 31
anos, tem uma hipótese peculiar para a escassez de peixes: “Educaram mal
eles. Agora, só comem queijo provolone ou pedaços de frango.” O pescador
Serafim Alves Barreto, de 58 anos, que vive na foz do rio, culpa o progresso
pela falta do pescado. “Antes, era uma sangria de água no Paraíba do Sul.
Hoje, ele está sem água, cheio de ilhas que represam cada vez mais o rio e
impedem os peixes de viver livremente.”
Comércio polêmico: vende-se areia
JACAREÍ – Centenas de caminhões circulam pelas cidades e estradas do Vale do
Paraíba paulista carregados de areia. É um comércio antigo e motivo de
discussões polêmicas. Muitos atribuem aos areeiros a destruição das matas
ciliares e parte da degradação ambiental do Rio Paraíba do Sul. Eles avançam
rapidamente sobre as margens, lançam suas dragas possantes para sugar a
areia do leito e despacham tudo para o setor de construção dos municípios
vizinhos e da Grande São Paulo. Só que os empresários do setor se defendem:
sem eles, cidades nem estariam de pé. A região metropolitana consome 1,5
milhão de metros cúbicos todo mês.
“Chamam de atividade degradadora (do ambiente). Não é. Ela é modificadora”,
contesta o empresário Clóvis Moscoso, de 46 anos. Sua empresa de extração,
que fica em São José dos Campos, tem porte médio, mas acabou criando um
grande lago artificial beirando o Paraíba do Sul. Ele não sabe se terá de
pagar pelo uso dessa água, já que não remove mais areia do leito do rio. “A
poluição é culpa do porto de areia? Polui é quem põe, não quem tira.”
Há mais de 80 empresas de extração de areia entre Guararema e Queluz. Muitas
surgiram acompanhando o desenvolvimento das cidades no entorno da Via Dutra,
na esteira da explosão de empreendimentos imobiliários, sobretudo de
loteamentos. Com as construções nas margens ou próximo do rio, avança o
assoreamento do Paraíba do Sul. Sem o processo de lavagem natural propiciado
pelas cheias, a areia vai se acumulando, formando grandes depósitos ao longo
do leito. Nos últimos anos, algumas empresas, como a Petrobrás e a Rhodia,
foram obrigadas a contratar os serviços dos areeiros para remover o material
acumulado próximo do ponto de captação da água.
Liminares – Por outro lado, sempre que há esgotamento de areia em um ponto,
os empresários tratam de se mudar para uma região mais próxima, invadindo
até terrenos vizinhos. Foi o que ocorreu com Vanderlei de Lima, de 47 anos,
dono de um rancho de pescaria em Roseira. Um areeiro, não satisfeito com a
extração a montante de sua propriedade, “comendo a beira do barranco”
durante dois anos, iniciou em 2002 a retirada a jusante. “Os dois lados do
rio estão assoreados”, diz Lima.
Em várias cidades há ações na Justiça tentando impedir a exploração
desenfreada dos areeiros. Em São José dos Campos, a promotoria tentou no fim
do ano passado fechar as empresas de extração de areia do município. Muitas
estão funcionando graças a liminares.
“A gente tem de tirar areia onde tem areia”, argumenta o empresário Nelson
Rubens de Barros, de 48 anos, que desde 1983 tem um porto de pequeno porte.
No início do ano, a empresa foi fechada pela Justiça, mas depois obteve
liminar para trabalhar.
‘Benfeitor’ – Segundo Barros, sua atividade faz um “bem” ao Paraíba do Sul,
já que as máquinas retiram com a areia colchões, bolas, bicicletas, madeira
e outros detritos. “As pessoas tratam a gente como bandido. Tiro areia do
meio do rio e não mexo em nada. Preservo o meio ambiente. É proibido matar
animal na minha fazenda”, afirma o empresário, embora sua propriedade fique
em Caçapava e não em São José dos Campos, de onde extrai 6.500 metros
cúbicos por mês.
Quem poluir mais, pagará mais
VOLTA REDONDA – A Agência Nacional das Águas (ANA) cobrará taxas maiores dos
que poluem mais o Paraíba do Sul. Prevista para ser iniciada em julho, a
inovação deve ser adiada para depois de setembro. Ainda faltam ser definidos
pontos vitais, como a agência que fará a cobrança.
Cada consumidor, concessionária de abastecimento de água e esgoto,
agricultores ou empresas, deverá declarar o seu consumo, no mesmo sistema do
Imposto de Renda. Para cada metro cúbico captado será cobrado R$ 0,008; se
não for devolvido ao rio, mais R$ 0,02; haverá um acréscimo de até R$ 0,02
para o esgoto lançado sem tratamento. Assim, se alguém capta 10 mil litros
de água, consome metade e devolve a outra parte suja, pagará 28 centavos por
isso. Pouco? Antes era de graça.
“De repente os consumidores vão perceber que, se não poluírem, pagarão
menos”, explica o diretor da ANA Benedito Braga. A arrecadação total só com
a cobrança das empresas e concessionárias deve render cerca de R$ 14 milhões
por ano. Dinheiro que, pela lei, voltará na forma de estações de tratamento
de esgoto e lixo, proteção de nascentes e recuperação das matas ciliares e
áreas degradadas.
A inspiração do programa brasileiro veio da França, onde a cobrança foi
adotada 40 anos atrás e resultou em rios potáveis ou não tão degradados.
Aqui, teme-se que a taxa se transforme numa “CPMF das águas”.
“Nos próximos 20 anos, os 14 milhões que hoje dependem do Paraíba do Sul vão
ser 18 milhões. A água realmente está contadinha”, diz o
secretário-executivo do Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica do Rio
Paraíba do Sul, Edilson de Paula Andrade.
Desvio – Em Barra do Piraí, outro complicador. Quase dois terços da vazão
são desviados para a Bacia do Guandu, que abastece de água e energia
elétrica a região metropolitana do Rio. É dessa transposição de 130 a 160
metros cúbicos de água por segundo que se espera obter a maior arrecadação
com a cobrança. A cifra pode chegar a R$ 100 milhões por ano.
Por segundo, 27 empresas captam no trecho paulista do Paraíba do Sul água
suficiente para abastecer 1,2 milhão de habitantes. No Rio de Janeiro, só a
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) retira um volume que abasteceria 2,2
milhões de pessoas.
Em toda a bacia hidrográfica, que abrange uma área de 56,6 mil quilômetros
quadrados, estão instaladas quase 8 mil indústrias em 88 municípios. Muitas
se beneficiaram das águas do rio e só agora pagarão pelo seu uso.
“Pior é amanhã não termos água”, afirma o gerente Cássio Ciulla, da Malteria
do Valle, em Taubaté. Produtora de malte para cervejarias, a empresa faz a
captação em uma nascente, utiliza a água no seu processo produtivo e a
devolve para o Paraíba do Sul tratada. Uma estação de tratamento de esgoto
foi construída com essa finalidade. “Temos de pensar mais para frente. O
Brasil tem a bênção de ter uma grande quantidade de água, mas o
desenvolvimento econômico ameaça hoje a sua qualidade e é preciso que cada
um faça sua parte.”
Com a mesma filosofia, a CSN resolveu cuidar da água que devolve ao Paraíba
do Sul, em Volta Redonda. Até 2000, a empresa despejava o benzopireno,
substância tóxica, diretamente no rio. Hoje o grupo afirma já ter gasto mais
de R$ 200 milhões em programas ambientais, quase o mesmo valor do lucro
registrado no balanço de 2001. Pelo seu consumo, deve pagar entre R$ 2,5
milhões e R$ 3 milhões por ano com a cobrança da ANA.
“Se a água chegar com melhor qualidade, os nossos gastos com tratamento
tendem a ser menores e o custo operacional deve se reduzir. Todo mundo sairá
ganhando”, diz o gerente de Relações Ambientais, Roberto da Rocha Brito.
Na CSN circulam 40 metros cúbicos de água por segundo, num circuito fechado.
Dos 8,7 metros cúbicos por segundo que capta do Paraíba do Sul, a empresa
devolve 7. Ainda são lançados no rio metais pesados, fenol e amônia, mas
dentro dos parâmetros permitidos pela legislação ambiental. Nada que se
compare a um passado recente, quando a CSN era uma das maiores poluidoras do
Paraíba do Sul. Tanto que era apontada como a responsável pelo surgimento do
peixe de quatro olhos, uma lenda jamais comprovada.
O rio seca, o mar avança
SÃO JOÃO DA BARRA – O encontro de um rio com o mar é um espetáculo de encher
os olhos. Na Praia de Atafona, onde deságua o Paraíba do Sul, deveria ser
assim, mas seus moradores têm pouco do que se orgulhar e muito que lamentar.
A fúria com que o mar vem destruindo casas, avançando 1 quilômetro em terra
firme, apavora a todos. Na temporada de verão a maré derrubou 20 imóveis.
Nos últimos 25 anos, foram mais de 500. A maior dúvida dos habitantes desse
trecho do litoral norte do Rio é se um dia haverá uma trégua.
“O Paraíba continua secando e o mar, avançando”, lamenta a empresária
Odinéia Pereira Rangel, de 57 anos. Nascida em Atafona, ela viu a casa em
que nasceu, o posto de gasolina e o frigorífico de peixes da família ficarem
debaixo d’água. Tudo devorado 15 anos atrás. “Não gosto mais de ir ao mar. É
muito triste.”
Odinéia reconstruiu o posto de gasolina. O novo frigorífico, que fica às
margens do rio para receber os barcos pesqueiros, é menos equipado do que o
antigo. Ela afirma que não pretende gastar cerca de R$ 150 mil para comprar
freezers e outras máquinas para modernizar o estabelecimento. O mar já está
chegando, explica.
Segundo os moradores de Atafona, a areia da praia é medicinal, mas ninguém
dá muito valor a isso. Prefeririam que ela ficasse lá para trás e deixasse
“vivas” as cinco ruas com asfalto, onde havia restaurantes, casas, comércio
e circulavam carros e ônibus. Até uma igreja, a de Nossa Senhora dos
Navegantes, foi engolida, em 1991.
No pontal, no encontro do rio com o mar, ficava uma vila de pescadores. Eram
eles que lotavam o salão de baile de forró e seresta de Dorian Claudo dos
Santos, de 62 anos. Por 29 vezes, número que jamais esquecerá, Santos teve
de pagar para que removessem a areia trazida pelas águas. “No fim, cansei de
lutar contra o mar.” Para ele, a explicação para esse fenômeno é uma só:
“Tiraram o ‘peso’ do rio. As ondas que quebram aqui perto estouravam lá
longe.”
Ao navegar a montante do Paraíba do Sul, vê-se diversos bancos de areia
imensos formados pela natureza. Espigões de pedras foram erguidos em vários
pontos para represar a água e hoje servem para reduzir a força do rio.
Abandono – “Tem mais de 10 quilômetros de pedras abandonadas. Elas acabaram
com o Paraíba”, reclama Jaci Monteiro, um pescador de 55 anos. “Só dá para
pescar na maré cheia, quando o barco sobe.”
Não há explicação exata para o fenômeno. Alguns dizem que o responsável não
é o rio enfraquecido, mas o aquecimento global, que tem aumentado a
quantidade de água nos oceanos.
A prefeitura de São João da Barra considera área de risco alguns quarteirões
próximos da praia. Mas muitos moradores, como o desempregado Rodrigo da
Silva, de 62 anos, insistem em permanecer nas suas casas, já parcialmente
destruídas. “Já teve noite de ninguém dormir, esperando a maré grande.” É
nessa espera pelo destino incerto que os moradores de Atafona vão vivendo.