Publicada em 23 de junho de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Diz o projeto de lei: “Fica a União autorizada a conceder indenização de R$
52 mil a José Pereira Ferreira por haver sido submetido à condição análoga à
de escravo e haver sofrido lesões corporais na fazenda denominada Espírito
Santo, localizada no sul do Estado do Pará, em setembro de 1989.” O texto é
um reconhecimento oficial de que existe trabalho escravo no País e o governo
federal assume sua responsabilidade pela proteção das pessoas submetidas a
esse tipo de humilhação. Se o projeto for aprovado no Senado, o agricultor
José Pereira Ferreira será o primeiro brasileiro a ganhar uma indenização
desse tipo no Brasil.
O projeto deve ser votado amanhã. É o fim de uma angústia para Ferreira, que
hoje trabalha numa fazenda em Bannach, sul do Pará.
No ano passado, com a expectativa de que seria indenizado, ele largou o
emprego, procurou terras para comprar e frustrou-se ao saber que levaria
mais alguns meses para receber o dinheiro. Faltava aprovar uma lei federal.
Em março, no lançamento do Programa Nacional para a Erradicação do Trabalho
Escravo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva empenhou-se em pagar a
indenização e o processo chega agora à sua fase final.
“O governo está reconhecendo a grave tragédia do trabalho escravo e que deve
lutar contra isso”, comemora frei Henri Des Roziers, da Comissão Pastoral
da Terra. Ele foi um dos advogados que auxiliaram no caso contra o governo
brasileiro levado à Organização dos Estados Americanos (OEA). O agricultor
recorre a ele para ter notícias do processo. “Ferreira é hoje um homem
forte, sadio, mas ainda guarda marcas no rosto. Fala pouco, não tem traumas
e só pensa em recomeçar a vida.”
Outro que comemora a decisão é o padre de Rio Maria na época, Ricardo
Rezende. Em setembro de 1992, ele foi a Washington fazer a representação na
OEA. Para evitar a publicação de um relatório sobre o caso, o governo
decidiu negociar a indenização. “É lamentável que tenha levado tanto tempo,
uns seis anos. Hoje percebemos que não era tão complicado. Bastava o governo
mandar um projeto de lei.” Rezende foi um dos primeiros a ter contato com
Ferreira, há 14 anos, quando ainda se recuperava de um tiro e se escondia de
matadores.
Engodo – A história do agricultor é parecida com a de milhares de
trabalhadores pobres que caem nas garras de aliciadores e fazendeiros
desonestos. Em 1989, ao completar 17 anos, ele quis provar aos pais que já
podia trabalhar por conta própria. Saiu de sua casa em Rio Maria sem se
despedir da mãe, do pai ou dos irmãos. Em Xinguara, lançou-se à sorte. Mas
caiu numa das redes do trabalho escravo.
Um dono de pensão ofereceu-lhe hospedagem e comida. Pagaria quando pudesse.
Já havia outros jovens na pensão. Um aliciador comprou o passe de todos e
levou-os até uma fazenda. Lá, soube que só poderia ir embora quando pagasse
a dívida e a comida da propriedade. Mas, ao fazer as contas, descobriu que
nunca conseguiria, já que o trabalho mal pagava o que comia.
Às 3 horas de 13 de setembro, ele fugiu pela mata com um colega. Os dois
andaram até as 18 horas, quase sem parar. Alcançaram uma estrada, a PA-150,
e decidiram seguir por ela. Duas horas depois, foram alcançados por quatro
pistoleiros numa caminhonete. Paraná, o colega cujo nome verdadeiro nunca
soube, foi alvejado e caiu a seus pés.
Ferreira colocou a mão na nuca à espera do tiro. A bala atingiu um dos
dedos, atravessou a cabeça e saiu pelo olho direito. Ele caiu no chão, mas
apenas fingiu-se de morto. Os corpos foram enrolados numa lona de plástico
preta. Ouviu dos jagunços que seriam jogados num rio. Mas o destino foi a
porteira de outra fazenda. Esperou um tempo para se levantar e pedir ajuda.
Ferreira sobreviveu para contar sua história. “A (Polícia) Federal encontrou
o carro que carregou nós. Encontraram também o encerado com as marcas de
sangue. Os funcionários da Espírito Santo disseram que era sangue de porco,
de animal que tinham matado e carregado ali. Grande mentira. Nem eu, nem
Paraná somos animais”, afirmou na época para o padre Ricardo Rezende, que
mais tarde transcreveu a história no livro Rio Maria-Canto da Terra. Foi
Rezende que conseguiu convencer Rosa, mãe de Ferreira, a fazer com que seu
filho denunciasse o caso. “Disse a ela: José se salvou e talvez consiga
salvar os que permanecem lá antes que ocorram novas mortes.” Na presença de
Ferreira, 60 trabalhadores escravos foram libertados.
Criminosos continuam impunes
O caso de José Pereira Ferreira mostra que o Brasil ainda tem uma longa luta
contra o trabalho escravo. Ninguém foi preso ou condenado por tê-lo feito
trabalhar forçado na Fazenda Espírito Santo. Nenhum dos proprietários, a
família Mutran, sofreu qualquer sanção ou terá de pagar dinheiro ao governo
para ressarcir o lavrador. Não há lei que os obrigue a isso. Apesar do
aumento de trabalhadores libertados nos últimos anos, o número de
aliciadores ou fazendeiros presos é mínimo.
De 1999 até hoje, apenas seis pessoas foram presas. Segundo a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério do Trabalho, hoje cerca de 25
mil pessoas no Brasil são submetidas à condição análoga à de escravo.
Nos últimos quatro anos, os fiscais do grupo especial do ministério
libertaram 4.052 pessoas. Só até abril, foram 1.147. Em breve, a OIT, o
governo brasileiro e organizações de direitos humanos lançarão uma campanha
nacional contra o trabalho escravo. Um dos objetivos é mobilizar os
parlamentares para aprovar uma emenda constitucional que estabelece a perda
da terra em que há essa modalidade de exploração.