Publicada em 27 de outubro de 1999
Veja
Eduardo Nunomura
Todo ano, entre agosto e outubro, dezenas de milhares de aves do Hemisfério Norte invadem os céus e o território brasileiros em busca de comida e de um clima mais ameno. Aqui, em locais paradisíacos e ainda preservados, como as Reentrâncias Maranhenses ou a Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, encontram terras calmas e fartas em alimentos. O maçarico de peito vermelho é uma das espécies que fazem esse percurso migratório, encantando os amantes de pássaros e intrigando os cientistas. Quem vê esse pequeno animal de perto, com seus 27 centímetros de comprimento e no máximo 250 gramas de peso, não consegue imaginar as proezas de que é capaz. Voam dia e noite, fazem pouquíssimas paradas e percorrem os 16.000 quilômetros entre as tundras canadenses e a Terra do Fogo, dois pontos extremos do continente americano. Como têm de voar longas distâncias, com alguns trechos chegando a 7.000 quilômetros ininterruptos, planam ao sabor das correntes de ar. Por isso, nos Estados Unidos, são apelidados de “anjos do céu”. Quando um bando corta rapidamente o horizonte é sinal de ventos fortes se aproximando.
Essa maratona fustigante ainda é enigmática para os pesquisadores. Nos estudos dessa espécie, e de outras aves migratórias, podem estar explicações sobre a evolução, sobre como conseguem ter um senso de navegação tão aguçado e reagem às mudanças do meio ambiente. Os pesquisadores já descobriram que a vida frenética dessas aves costeiras começa desde o nascimento. Uma semana após chocar os ovos, as mães partem; duas semanas mais tarde, é a vez de o pai abandonar a ninhada. E três semanas depois, normalmente no fim de agosto, os filhotes vão seguir a mesma trajetória de seus pais rumo à Terra do Fogo. Alguns ainda são tão pequenos que pesam pouco mais de 25 gramas. Voam à noite, orientando-se pelas estrelas e pela Lua. Quando encontram uma corrente de ar favorável, planam em um estado de letargia, quase como se estivessem num sono profundo. Durante o dia, o bando segue o recorte da costa litorânea a uma velocidade de 65 quilômetros por hora.
Sul-americanas – Depois que partem das tundras canadenses, cruzam o território americano e fazem apenas uma parada na Baía de Delaware, no norte dos Estados Unidos. De lá, seguem em direção ao sul, onde farão nova parada entre agosto e setembro na Guiana, no Suriname ou na parte norte do Brasil, nas Reentrâncias Maranhenses ou no litoral do Pará, região conhecida como Salgado Paraense. Antes de chegar à Terra do Fogo, fazem novo pouso no Parque da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul. As paradas são sistemáticas. Os registros de pousos fora dos locais já catalogados são raros e ocasionais. Apesar de nascer no Canadá, os maçaricos passam 80% do tempo de seu ciclo de vida na América do Sul. É aqui que vão crescer e ganhar peso comendo insetos, pequenos crustáceos e outros animais marinhos.
As aves migratórias são vistas entre os ornitólogos, cientistas especialistas no estudo desses animais, como excelentes indicadores da qualidade de vida. “Elas só param onde a oferta de alimentos é abundante. Por isso, esses locais de parada representam um sinal de que o ambiente continua saudável”, explica a pesquisadora Inês Nascimento, do Centro de Pesquisa para a Conservação das Aves Silvestres, Cemave. Neste momento, a maioria dos mais de 80.000 maçaricos que migram anualmente já está na Terra do Fogo, na Argentina, ou a caminho de lá. Entre vôos com fantásticas formações sincronizadas, preparam-se para guardar energias suficientes para a volta, entre março e abril. Serão outros 16.000 quilômetros em direção ao norte, na longa viagem ao Ártico. Os maçaricos de peito vermelho vivem, em média, dez anos, período em que viajarão mais de 300.000 quilômetros – o equivalente a sete voltas consecutivas em torno da linha do Equador.
Já crescidos e bem alimentados, voltarão a passar pelo Rio Grande do Sul. A maioria ainda fará nova parada em território brasileiro, no Maranhão ou no Pará. Mas alguns, mais corajosos, seguirão direto para a Baía de Delaware. Um vôo ininterrupto de 7.000 quilômetros. Aves marcadas pelos cientistas no Estado gaúcho foram encontradas três semanas depois nos Estados Unidos. Estavam esgotadas, magríssimas. É nesse momento que mostram que são mais que fenômenos voadores. São também prodigiosos comedores. Quando chegam à baía, terão menos de um mês para se preparar para os últimos 4.000 quilômetros de um vôo sem parada até chegar à região ártica, onde vão procriar. Para conseguir esse feito, cada maçarico devora diariamente 10.000 pequenos ovos de caranguejos. Aí mora o perigo para o futuro da espécie. Nos últimos sete anos, a população desses caranguejos reduziu-se à metade por causa da pesca predatória. Vazamentos de óleo na baía americana representam outra ameaça aos maçaricos. “É muito provável que daqui a pouquíssimos anos entrem na lista de espécies ameaçadas de extinção nos Estados Unidos”, adverte a bióloga Inês Nascimento.
Pelo menos no papel, o maçarico e outras aves migratórias que atravessam os hemisférios continuam sendo preservados. Em 1985, canadenses e americanos criaram a rede hemisférica de reservas para aves limícolas, como são conhecidos os pássaros costeiros. Nesse grupo estão também as gaivotas, os trinta-réis, as batuíras, entre outras. O Brasil participa dessa rede. Estão catalogadas mais de 8.000 aves. Pesquisadores já conseguiram desvendar alguns segredos desses animais. Descobriu-se, por exemplo, que os maçaricos são donos de uma excepcional memória genética. Numa experiência, um grupo de recém-nascidos foi transportado de avião para o Hemisfério Sul. No ano seguinte, alguns animais marcados voltaram ao ponto de partida, mesmo sem ter feito a rota de vinda para o sul do planeta. Outra descoberta, que os ornitólogos não gostam de divulgar, é que essas aves migratórias estão entre os responsáveis, ainda que involuntariamente, pela dispersão de vírus e bactérias pelo mundo afora. O vírus da gripe, que contamina milhões de pessoas, é um deles.
Voando perto de casa
Há 836 espécies de aves migratórias catalogadas pelos cientistas no mundo todo. Um grande número delas é protegido por acordos internacionais. Isso significa que os cientistas brasileiros têm o compromisso de monitorar a migração de aves vindas do Hemisfério Norte. A mesma preocupação não existe em relação a todas as espécies nativas, que fazem migrações dentro do Brasil e para países vizinhos. É o caso da tesourinha, que viaja todos os anos do Rio Grande do Sul para a Amazônia ou para o cerrado do Centro-Oeste. Os cabeças-cegas e os colhereiros, símbolos do Pantanal, também fazem migrações na própria bacia pantaneira, conforme os períodos de cheia. Outras fazem viagens ainda menores. “Na Serra do Mar, há várias espécies que vivem no alto do morro e descem para as beiradas da serra, como o sabiá-una e o ferreiro”, diz o presidente da Sociedade Brasileira de Ornitologia, professor José Maria Cardoso da Silva. “Esse sistema é pouco conhecido, mas de grande importância para determinar onde devem ser criadas reservas da Floresta Atlântica.” No total, 250 espécies de pássaros migram sem sair da América do Sul.