A corrida atrás do Boeing que virou corpo-a-corpo com a selva

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Publicada em 8 de outubro de 2006
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
PEIXOTO DE AZEVEDO (MT)
No fundão de Mato Grosso, o caminhoneiro Alberto Vieira Barros colhia
bacabas, fruta típica dessa região mais conhecida pela destruição da
floresta amazônica. Foi o colega Carlos Nascimento quem chamou sua atenção,
apontando o avião: “Ó lá quem vem te pegar.” Barros também brincou. “Nada, o
cara está bêbado ou vai dormindo.” As asas cambaleavam de um lado para o
outro. E o avião voava baixo, muito baixo. Aos olhos de Barros, tinha uns 10
metros de comprimento. Não rodopiava nem dava piruetas. Ele estranhou o
ronco das turbinas, reduzido para aquela altitude. O Boeing sumiu da vista
dos colhedores de bacabas. Só depois eles souberam que tinham visto os
momentos finais do vôo 1907, no qual morreram 154 pessoas.
Ainda não eram 17 horas quando o tenente Jerônimo Inácio lembrou que
prometera dedicar aos quatro filhos o resto do dia. Sabia até qual seria o
programa: assistir ao seriado Lost pela primeira vez. Naquela sexta-feira o
expediente no Centro de Operações Militares de Manaus iria até o meio-dia. A
burocracia deteve Inácio no escritório. Quando o telefone tocou, soube do
desaparecimento do vôo 1907 nos radares. Seguiu para o Cindacta-4, que
controla os vôos na Amazônia.
Em Brasília, o coronel Jorge Amaral, do Centro de Comunicação Social da
Aeronáutica, tinha ido ao cinema com a mulher. Ligou o celular e soube que
um colega o procurava. Queria o telefone do comandante da Base Aérea de
Cachimbo: um avião da Gol e um Legacy estavam desaparecidos. Já pensando no
pior, voltou para casa e entrou no Google Earth, programa de busca de
imagens de satélite, para cruzar os dados que tinha recebido pelo telefone.
Naquele momento, mais de dez pessoas do Salvaero, unidade que coordena a
busca e resgate de aeronaves perdidas, tentavam encontrar pistas do Boeing.
Ligavam para locais próximos da última coordenada registrada no radar,
fazendas, aeroportos e órgãos de tráfego aéreo. Àquela altura, já se sabia
que o Legacy havia pousado na base de Cachimbo.
Por volta das 20 horas, o tenente Inácio pediu à filha que preparasse a mala
de viagem. Seria um dos coordenadores da missão de busca e resgate. As TVs
noticiavam o caso e uma extensa rede de pessoas, que incluía radioamadores,
jornalistas e militares, buscava desesperadamente informações.
Um desses telefonemas foi atendido por Ademir Ribeiro, de 52, assistente da
gerência da Fazenda Jarinã, a 200 quilômetros de Peixoto de Azevedo (MT). A
Base Aérea de Brasília queria saber se era verdade que alguém tinha ouvido
um estrondo de avião em queda. Ele confirmou, mas disse que a informação era
de terceiros.
Acostumada a ouvir histórias tristes, Lindalva Vieira Costa, a Dalva,
operadora de uma central de radiofreqüência na região, estava tensa. Em dias
normais, divide a tarefa de ajudar radioamadores com afazeres como cozinhar,
passar roupa e limpar a casa. Por causa do acidente, só foi dormir às 4
horas do sábado. “Uma moça me chamou mais a atenção. Ela ficou perturbada
por causa de um cunhado no Espírito Santo. Chorava, gritava, pedia ajuda de
qualquer jeito.” Dalva a pôs em contato com a Jarinã.
Antes da meia-noite, aviões da Aeronáutica sobrevoavam a região. O trabalho
terminou por volta da 1 hora de sábado e foi retomado pela manhã. O espaço
aéreo nas redondezas foi interditado.
Por volta de 10 horas, um Hércules C-130 localizou uma parte do avião da
Gol. Começava uma nova etapa da tragédia, o drama do resgate, no qual a
esperança de procurar sobreviventes se transformou na desgastante tarefa de
buscar corpos.
Uma equipe do Pára-Sar, tropa de elite da Força Aérea Brasileira, saltou de
pára-quedas no campo de futebol da Fazenda Jarinã, que logo virou base de
apoio da Aeronáutica. Com 30 mil hectares, a Jarinã é a propriedade mais
estruturada da região. Tem pista de pouso, serraria, mecânica, escola,
farmácia, venda de secos e molhados, posto de comunicação com radioamador e
telefone por rádio. Tem até uma mini-hidrelétrica.
Ainda no sábado, militares desceram na mata suspensos por cordas. Como se
fosse um ritual, o primeiro-sargento Rogério fechou os olhos para a selva à
sua frente, fez o sinal da cruz, rezou em silêncio um Pai-Nosso e uma
Ave-Maria, imaginou que os colegas ao lado faziam o mesmo e iniciou a
missão. Ele e sua equipe foram os primeiros a pisar na mata e ver in loco a
gravidade do acidente. A asa dianteira estava de cabeça para baixo, o trem
de pouso virado para o céu. Tudo destroçado e ninguém fazia idéia de onde
estava o resto do avião. Carioca, 40 anos e metade de vida como militar,
Rogério soube que dali por diante teria só uma coisa a fazer: resgatar o
maior número de corpos possível.
Só na quinta-feira, após mais um dia estafante de trabalho, quase
meia-noite, o primeiro-sargento teve a curiosidade de ver no telejornal os
gols do Brasileirão. Era, de certa forma, um meio de aliviar a tensão, que
recomeçaria cedo no dia seguinte. Desde que ele e outros da equipe
encontraram os dois primeiros corpos, há uma semana, a rotina tem sido
sistemática. Eles descem numa das cinco clareiras abertas. Caminham de 1
hora a 1 hora e meia por quilômetro. Marcam com fitas nas árvores os locais
onde estão as vítimas. Quando não dá mais para avançar, por causa do
horário, todos voltam para as marcas. Os corpos localizados são colocados no
saco de despojos verde, onde também vão pertences como anéis, relógios,
bolsas e celulares. “Ainda há muitos corpos na mata e nossa determinação é
só parar quando retirarmos os 154”, diz.
Ninguém sabe ao certo se isso será possível. Todas as equipes envolvidas na
operação torcem para que sim. Há uma pressão no ar, mas ela vem de longe.
Militares de baixa patente como o primeiro-sargento Rogério não podem falar
com os jornalistas. De Brasília veio a ordem para que se concentrem na
operação de busca e resgate. Que tragam as vítimas no menor prazo possível.
Que deixem tudo o que sentem para os momentos compartilhados nos dormitórios
improvisados ou guardem para si mesmos.
É o que tem tentado fazer outro sargento, atormentado com o trabalho. “Dei
azar de só pegar crianças”, desabafou, pedindo para não ser identificado por
causa do filho, de 4 anos. Na segunda-feira, encontrou um bebê. Nos dias
seguintes, outros três meninos, de 5 a 7 anos.
As noites têm sido difíceis. Não bastassem as lembranças, ele dorme num
colchão no chão da mecânica cheia de graxa e óleo da fazenda e vizinho da
serralheria, onde está um ponto de energia trifásico. É ali que, por volta
das 22 horas, o caminhão frigorífico com as vítimas recarrega a energia. O
forte odor se confunde com o da itaúba, a madeira nobre amazônica cortada na
serralheria. O que perturba o sargento é a presença tão próxima do caminhão
com os corpos. “Sinto uma coisa aqui dentro, um aperto. Espero que esta seja
a minha última vez.”
Até a sexta-feira não havia entre os homens da Aeronáutica baixas por
estresse, fadiga ou estafa, muito comuns em situações tensas como os
resgates na selva. Apenas um militar foi removido por reação alérgica a
picadas de abelhas. Durante as buscas, eles vêem cenas impactantes. Quando
escapam das abelhas são picados por mosquitos e carrapatos, voltam da mata
com piolhos. Como os trabalhos ainda se estenderão por um número indefinido
de dias (há mais de 70 corpos na mata, alguns ainda não localizados), foi
montado um módulo de HCamp, o hospital de campanha, na Base Aérea de
Cachimbo. Antes já havia um posto médico avançado na fazenda.
“O pessoal está naturalmente tenso. Choveu e todos só pensavam em ir logo
fazer seu resgate na mata”, afirmou, na terça-feira, o coronel Jorge Amaral,
do Centro de Comunicação Social da Aeronáutica, um dos três responsáveis
pelo atendimento à imprensa. Anteontem, os militares entraram na selva com
detectores de metais. Objetivo: localizar o cilindro de voz da caixa-preta.
Como os militares, peritos como Zuilton Marcelino, responsável pelo laudo
criminal da Polícia Civil, também descem na mata. Marcelino observa tudo,
mas seu foco é a aeronave acidentada. Procura pontos onde houve avarias no
contato com o Legacy. Até a quinta-feira, havia descido em três locais com
restos do avião destruído, a 500 metros um do outro. Periciou a cauda, a asa
dianteira e a cabine de pilotos. Faltavam outras duas partes para começar a
montar o quebra-cabeças.
Marcelino já descartou hipóteses como a de ter havido explosão antes da
queda ou a de que corpos se desintegraram no ar. “A mais forte hipótese é
que o vôo 1907 tenha sido desestabilizado pelo Legacy num ponto-chave. Ainda
procuramos onde”, diz. Uma das turbinas não foi encontrada.
Em tese, peritos do Instituto Médico-Legal de Brasília deveriam descer até o
local do acidente para fazer seu trabalho. Mas eles não têm experiência de
selva, seria arriscado. Não podem, por isso, ver quais passageiros estavam
próximos uns dos outros, como as famílias fazem quando voam juntas. Sabem,
porém, que quase ninguém ficou sentado nas poltronas, com exceção dos
pilotos na cabine.
Os corpos, já em estágio avançado de decomposição, estão afundados no chão.
Os militares têm de usar enxadas para retirar e preservar ao máximo as
vítimas. Quanto mais intactos estiverem, maiores as chances de
reconhecimento. “Eram pessoas cheias de vida e de repente tudo se perde num
evento instantâneo, talvez sem perceberem o que estava acontecendo”, diz o
legista Aluísio Trindade Filho, do Instituto de DNA da Polícia Civil, em
Brasília.
A perícia é feita no campo de futebol, ao lado do caminhão frigorífico.
Bombeiros manuseiam os corpos. Estão sendo recolhidas as impressões
digitais, tecidos internos para eventual exame de DNA, sinais
característicos (cirurgias, cortes, fraturas, raça, entre outros) e objetos
pessoais.
O resgate tem muito de operação de guerra. Só não é de fato porque os
helicópteros, por segurança, não voam depois do pôr-do-sol. As aeronaves com
hélices de cerca de 20 metros precisam descer precisamente numa única
clareira de pouco mais de 30 metros. Todos os corpos encontrados num raio de
5 quilômetros são levados até esse ponto para então ser içados.
A missão começou com 60 militares, 4 aviões e 3 helicópteros. Uma semana
depois do acidente, já eram 139 homens, 3 aviões e 7 helicópteros, incluindo
um Black Hawk, a Ferrari dos helicópteros, e o Super Puma, uma
Mercedes-Benz. Até a sexta-feira, as horas voadas na região equivaliam a 63
viagens de ida-e-volta de São Paulo a Brasília, consumindo 281 mil litros de
querosene e transportando 40 mil litros de carga.
Apesar de todo o aparato montado pela Aeronáutica, o controle do tráfego
aéreo na região ainda é precário. No sábado, poucas horas depois de o avião
da Gol ter sido localizado, um piloto com mais de 17 mil horas de vôo
decolou da cidade de Matupá, vizinha de Peixoto de Azevedo, para a aldeia
mektrotire levando duas urnas eletrônicas. Tecnicamente, pousou de forma
clandestina, apesar dos insistentes chamados para o Centro de Controle de
Tráfego Aéreo da Amazônia.
Na segunda-feira, quando ainda havia restrições para sobrevôos no local, já
que as equipes de resgate do vôo 1907 intensificavam o trabalho, o piloto
retornou com as urnas para Matupá e até sobrevoou uma das clareiras com
destroços do avião da Gol. Só na quarta-feira, quando voou até uma fazenda
da região, um avião tucano o interceptou e o acompanhou até o pouso. O
fundão de Mato Grosso finalmente se tornou vigiado e protegido. Até o fim
dos trabalhos de resgate.

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