A boemia paulistana de Vanzolini

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Publicada em 8 de janeiro de 2004
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
O primeiro passeio de bicicleta é difícil de esquecer. Ainda mais quando se
tinha pelo caminho uma avenida de paralelepípedos, muito mato, várzeas e um
rio piscoso. Os carros não avançavam sobre os pedestres. Aliás, era raro ver
veículos por aqueles lados. As poucas casas da região eram baixas, nada
parecidas com os prédios altos que iam sendo erguidos no centro. Paulo não
se esqueceu. E com detalhes lembra do destino final dessa aventura, nos anos
1930: ver as cobras do Instituto Butantã. Sem saber, o garoto de 10 anos
tinha trilhado o rumo de sua vida. Virou cientista, mas muitos só se lembram
dele, Paulo Vanzolini, por sua outra faceta, a de compositor musical.
Em quase oito décadas, Vanzolini testemunhou as transformações de São Paulo.
Daquele e de outros passeios, na época em que um dos extremos da cidade era
a Rua Iguatemi, que hoje se chama Faria Lima, ele guarda muitas recordações.
Dali até o Rio Pinheiros era uma várzea só. Naquelas águas límpidas, anos
antes e como outros paulistanos, aprendeu a nadar. O Clube Germânia, atual
Pinheiros, tinha piscinas naturais: um gradeado de madeira dentro do rio.
Divertia-se ainda com as partidas de futebol na várzea. “Jogava no campo do
Ítalo-Lusitano. Era um alfo esquerdo (lateral esquerdo).” O clube, na 2.ª
Guerra, mudou de nome. Virou Ídolo-Lusitano.
Da adolescência, Vanzolini diz se lembrar do clarão que via na direção da
Avenida Paulista. “Era o céu vermelho de quando queimavam o café que não era
exportado.” Na Revolução de 32, na sua casa só se falava mal de Getúlio
Vargas. “Era um antipaulista, um cara horroroso.” Nos estudos, trocou o
Colégio Rio Branco pelo Ginásio do Estado, este “mil vezes melhor que
qualquer escola particular”. Idos tempos.
Foi na época do Ginásio do Estado que começou sua vida adulta. Os jovens
estudantes só queriam saber de jogar sinuca no Edifício Martinelli, beber
“samba em Berlim” (guaraná com cachaça) e ver os prostíbulos, que ficavam
entre as Ruas Vitória e Aurora. “Era zona livre, meretrício de portas
abertas”, diverte-se. Já então recitava monólogos e acompanhava as caravanas
artísticas estudantis. Aos 21 anos, ingressou no Exército. Entrou soldado e
saiu cabo. Naquele tempo, militar patrulhava as ruas do centro. Duas vezes
por semana, Vanzolini percorria as modernas Avenidas Ipiranga e São João com
um revólver calibre 45 na cintura. Dali surgiu a inspiração para compor
Ronda, um de seus maiores sucessos e símbolo da boemia paulistana.
“A ronda é uma enganação. A mulher começa dando a impressão de que está
procurando um cara, mas não é para amar e sim matar”, volta a explicar, numa
clara tentativa de desmistificar a canção e diminuir sua importância. Mas
nas noites de São Paulo, os versos “cena de sangue num bar da Avenida São
João” se tornaram um clássico e rendem dividendos até hoje ao cientista.
A boemia, ruas e praças da capital voltaram a inspirá-lo em músicas, como
Praça Clóvis: “Na Praça Clóvis, minha carteira foi batida.” Sim, a cidade do
jovem Vanzolini já era grande e tinha seus problemas de violência.
Da vida airada, Vanzolini se lembra da amizade com Adoniran Barbosa, das
conversas com os maestros de tango do centro, de ouvir a balalaica, o
instrumento de cordas tocado pelos russos na Rua Vitória, dos cartões
perfurados nas entradas dos dancings, das conversas noite afora e das sopas
baratas nas madrugadas. Tudo girava em torno da Avenida São João e do Largo
do Paiçandu.
Apesar de sua família pertencer à burguesia da época, era pouco afeito às
festas da alta sociedade. Preferia o Clubinho, ou Clube dos Artistas e
Amigos dos Artistas, nos anos 1950. Era o grande marco da intelectualidade
paulistana, freqüentado por Tarsila do Amaral, Sergio Milliet, Alfredo Volpi
e Paulo Rossi. Ficava no porão do Instituto de Arquitetos do Brasil, na Rua
Bento Freitas, e onde havia reuniões animadas e divertidas de artistas e
intelectuais no bar do local.
Em 1963, Vanzolini compôs Volta por Cima, outro de seu sucesso. Foi Noite
Ilustrada quem gravou a primeira versão, na véspera do golpe militar. Os
versos “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima” ganharam ares
revolucionários. Nos anos seguintes, tornou-se habitué do bar O Jogral, de
Luís Carlos Paraná, seu parceiro violonista. Nesse outro reduto da boemia
paulistana, na época na Rua Avanhandava, surgiram nomes como Jorge Ben e
Trio Mocotó e lá tocavam artistas como Chico Buarque. Virou contraponto ao
“iê-iê-iê” e às “discothéques”, inspirando os hoje conhecidos barzinhos de
MPB.
Academia – Vanzolini trabalhou na TV Record, onde presenciou os famosos
festivais da canção, e depois, já formado em medicina, no Hospital das
Clínicas, onde ajudou na orientação de centenas de teses. Um de seus alunos
foi Dráuzio Varella. Da experiência na televisão brasileira, guarda boas
lembranças do diretor Raul Duarte, da simplicidade de Aracy de Almeida e das
suas intérpretes favoritas, Marcia e Inezita Barroso. Da experiência
acadêmica, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o
fato de ter cursado a excelência no ensino. “A USP deu um foco para a
mocidade pensar, vibrar, ser contra ou a favor, pensar. Quando fui fazer
doutorado em Harvard, me dispensaram de metade das disciplinas.”
Ex-diretor do Museu de Zoologia da USP, na Avenida Nazaré, onde antes ia de
bonde e hoje vai de táxi, Vanzolini montou uma respeitada coleção de 130 mil
répteis e anfíbios. Sua biblioteca pessoal tem mais de 50 mil volumes, é a
maior da América Latina e será doada ao museu. Como conseguiu conciliar as
duas vidas, de cientista e compositor? Trabalhando muito. Até hoje chega às
8 horas ao museu e só sai de lá às 19 horas.
Vanzolini viajou o Brasil e o mundo, não tem mais vida boêmia, mas continua
amando São Paulo, para ele só comparável a Nova York. “Esta cidade se
ajusta, não pára e não perde sua personalidade”, diz o morador do Cambuci.
Parou de compor, mas para não dizer que se afastou da música ainda freqüenta
rodas de choro. De vez em quando, aos sábados pela manhã vai até a Rua
General Osório, 46, na casa de instrumentos Contemporânea, onde a boa música
tem lá seu cantinho especial para os boêmios há mais de três décadas.

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