Mundial chega à aldeia

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Publicada em 14 de junho de 2006
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
ANGRA DOS REIS
Há 11 mil ou 12 mil anos chegaram os primeiros habitantes à América do Sul.
Há mais de cinco séculos índios guaranis ocupavam o litoral do Brasil. Há 76
anos a Copa do Mundo começou a ser disputada. Há quase quatro décadas o
brasileiro passou a ver o Mundial em transmissões pela TV. Só ontem, haja
tempo, os moradores da aldeia Sapukai assistiram pela primeira vez e bem
debaixo de suas casas de pau-a-pique à seleção brasileira de futebol jogar.
Depois de conquistar cinco títulos, o brasileiro já se acostumou a ver Copa
do Mundo. É parte sentimental da vida de cada um. Alguns poucos Guaranis
Mbya já haviam visto Mundiais passados em tevês à pilha ou fora da aldeia
Sapukai. Ontem, a comunidade se juntou aos milhões de torcedores da seleção.
Gritaram “ai”, “oh”, “ah”, bateram nas cadeiras, um ou outro fez bolão a R$
10, reclamaram do juiz e sofreram muito com o minguado placar. “Só o Kaká e
o Ronaldinho jogaram”, protestou o índio Algemiro da Silva, o professor
Karai Mirim (“Pequeno Sábio”, em guarani).
Nas últimas semanas, quando o resto do Brasil se entediava de tantos
treinos, rachões e alongamentos da seleção em Weggis, na Suíça, ou
Königstein, na Alemanha, o cacique Verá Mirim andava preocupado. E se faltar
luz? , pensava ele. Os últimos dos 20 aparelhos de televisão comprados já
haviam chegado. As antenas parabólicas também. Mas a luz elétrica, esta
ainda falha sempre que chove muito. E ontem a energia deu um tremendo susto.
A aldeia ficou sem energia pela manhã e só voltou pouco antes de a seleção
entrar em campo.
E nada de alívio para os guaranis. Foram 90 minutos de sufoco, com exceção
do gol de Kaká e do apito final. “Ainda tem muita coisa pela frente, em 2006
todos os países já aprenderam a jogar, não tem partida fácil”, profetizou o
cacique dos Guaranis Mbya.
O Brasil é assim diferente. Uns estão assistindo aos jogos em TVs de plasma
gigantes com transmissão digital. Outros se divertem tanto ou até mais numa
televisão comprada no crediário bem no meio da mata atlântica. Pedro da
Silva Aquiles está entre estes últimos. E feliz. “O futebol é a coisa mais
divertida do mundo”, resume o índio de 39 anos. “Tem que trazer uma Copa do
Mundo para o índio saber como é.”
Bem no alto da Serra do Mar, onde não se vê o horizonte em dia de nevoeiro,
fica o território indígena Guarani de Bracuí. Numa área de 2,1 mil hectares,
os índios de hoje fazem exatamente o que os mais velhos faziam. Convivem em
sintonia com a natureza. O litoral, a mata atlântica, tudo isso faz parte do
universo dos guaranis, do deus Nhanderu. Já a luz começou a chegar a partir
de dezembro, uma “cultura do branco”, nas palavras de Verá Mirim (“Relâmpago
pequeno”). Lépido para seus 94 anos, o cacique anda de alto a baixo, no meio
da mata, visita os índios nas casas o dia todo e admite que só agora se
sente conformado com a modernidade que invade velozmente a aldeia.
“É só a luz”, diz Verá Mirim. “A TV prejudica, mas podemos ver só o jornal.
Agora o jogo do Brasil, todos querem e isso não faz mal.” Antes até que
tentou argumentar, lembrou aos mais jovens que gerações viveram sem ela, mas
a maioria queria o benefício. Os agentes de saúde convenceram-no de que
seria necessária. Tratamento dentário, posto de saúde melhor equipado,
iluminação nas casas e na única escola da comunidade, tudo graças à energia
elétrica. E os postes com a fiação chegaram com o programa Luz para Todos,
do governo federal, que desde outubro de 2004 atendeu 3,2 milhões de
brasileiros. Nos últimos dois meses, foram 18 mil beneficiados.
Das 74 famílias na aldeia Sapukai, todas recebem cestas básicas da
prefeitura, 30 vivem da aposentadoria e 20 recebem o Bolsa-Família.
Eleitores, em torno de 30. No total, vivem 400 índios. Não são isolados,
muitos conhecem a cidade, mas nenhum deles trabalha fora da comunidade.
Plantam pouco, mandioca, pupunha, banana, cana-de-açúcar e batata doce. Na
mata ainda se vê animais como macuco, jacu, paca e tatu. Só que a caça está
sendo proibida pelo cacique. Pode faltar para as outras gerações, ensina o
líder indígena.
GELADEIRA, TV E DVD
A aldeia guarani de Angra dos Reis é fã do futebol. Todo dia tem pelada no
campinho de terra que fica no centro da aldeia, bem ao lado da casa de reza.
É pequeno, cabem cinco jogadores de cada lado, contando com o goleiro. Por
volta das 16 horas, se não chove, os índios formam quatro times completos e
participam de disputadas partidas. Tanto que já trataram de providenciar um
terreno para outro campo, maior, que vai ser feito nos próximos meses.
Agora, com a televisão presente, o interesse pela bola só fez aumentar.
Muitos guaranis ainda desconhecem os nomes dos jogadores da seleção. Sabem
que há dois Ronaldos, um deles que joga “no lugar de Pelé”. Depois de pensar
um bocado, arriscam um Kaká. Acham que Roberto Carlos é ponta-esquerda. E o
técnico da seleção é Carlos… “Ah, Parreira, Parreira”, apressa-se em
corrigir o índio Pedro da Silva Aquiles. Seu pai, Nicanor Aquiles, de 66
anos, pai de 7 filhos e mais de 20 netos, não arrisca citar nenhum atleta.
Prefere dizer que já jogou, e muito, como goleiro.
Na casa de Nicanor há três aparelhos elétricos: uma geladeira usada, um TV
de 20 polegadas e um DVD. Desde a chegada da luz, os índios passaram a
conservar alimentos e bebidas, como carnes, peixes e frango, refrigerantes e
água. As crianças agora passam horas diante da TV, muitas vezes vendo filmes
alugados na “pista” (no centro da cidade). Riem de quase tudo, mesmo que
ninguém tenha ensinado a eles como mudar o som dos DVDs para o português –
nem em sonho esperam ver algo na língua guarani, usada por todos. Já os
jovens desfilam com celulares pré-pagos, outra moda recentíssima na aldeia.
Em breve, vão até virar figurantes de uma novela da Rede Record.
Os adultos aproveitam para trabalhar um pouco mais. Eles fazem artesanato,
como cestas, colares e bichos de madeira. Sem a luz, tinham de parar tudo
por volta das 16 ou 17 horas. Escurece rápido na serra. Com uma lâmpada de
100 Watts, podem seguir até as 22 horas. Ultimamente, adianta pouco.
Primeiro porque a matéria-prima, a taquara que vai ser trançada, está muita
seca. Depois, os homens brancos parecem estar comprando cada vez menos. Mas,
se tudo der certo, os guaranis esperam receber o quanto antes uma máquina de
costura e outra para furar sementes. Quanto mais elaborado o produto,
melhor. “Com essas atividades, a necessidade da saída deles será menor”,
atesta Cristino Cabreira Machado, chefe do posto indígena Bracuí.
ÍNDIO QUER BOLA
Iluminação não é coisa nova na aldeia. A luz, a tata endy, era obtida por
meio da queima da cera da abelha, depois do querosene. A primeira rareou. O
segundo ficou caro. Na casa de Nicanor, ele gastava cerca de R$ 60 por mês
só com o combustível das lamparinas. Agora, as primeiras contas da companhia
elétrica estão saindo por pouco menos de R$ 20 – a energia rural é
subsidiada. Com a Copa do Mundo, acreditam os guaranis, o consumo deve
aumentar – como no resto do País. Índio também quer bola.
É possível imaginar que no Mundial 2010 já haverá brasileiros assistindo aos
jogos em tempo real com óculos 3-D, transmissão digital e nítida sensação de
estar no estádio. Certeza mesmo, só a de que ainda haverá brasileiros que,
como foi desta vez com a maioria dos Guaranis Mbya, vão ver a sua primeira
Copa daqui a quatro anos.

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