Publicada em 21 de janeiro de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Antes de começar a ler este texto, olhe bem ao seu redor. Se estiver na sua
casa, verá móveis com histórias. Talvez quadros nas paredes, lembranças de
viagens e porta-retratos espalhados pelos cômodos. Armários guardarão roupas
e jóias. Nas estantes, livros antigos. Haverá uma cozinha como qualquer
outra, com panelas novas e velhas e o resto da louça. Em alguma gaveta,
documentos, carteiras, álbuns de fotografias e vídeos da família. No
quintal, um cão ou gato e pássaros nas gaiolas. Lembre como obteve cada uma
dessas coisas. Imagine agora que ouvisse uma ordem incompreensível: “Rápido,
tire só o essencial, isso vai desabar.” Como? Como deixar tudo para trás e
partir? Foi o que Lucia Soares da Fonseca, de 38 anos, e dezenas de outras
famílias tiveram de fazer. Resumir uma vida em cinco minutos.
O desabamento da obra do metrô em Pinheiros soterrou e está soterrando
histórias de vida desde a tarde da sexta-feira, dia 12. Seis pessoas
morreram no acidente. Dezenas estão fora de suas casas. Em um processo lento
e doloroso, a gerente de loja Lucia sofre com a segunda morte da filha. Um
ano atrás, Gabriela, de 7 anos, morreu de câncer. Toda a luta da menina
contra a doença ocorreu na Rua Capri, 207. Foram 12 meses desde os momentos
em que apresentava sinais de melhora até os dias de cama. Todas as
lembranças da menina ficaram na casa. Na quarta-feira, o imóvel foi
condenado pela Defesa Civil.
“Estou doente com isso. Já passei o trauma da perda dela e agora essa
tragédia”, relata Lucia, tentando aparentar tranqüilidade. Por dentro,
admite, está em pedaços. “Se tiver uma oportunidade, e é só o que quero, vou
tirar fotos, os álbuns, as coisinhas dela.” Depois do acidente, ela entrou
no imóvel duas vezes. No total, dez minutos. Alguma força maior, contudo, a
bloqueou. O cérebro foi incapaz de ordenar que resgatasse as lembranças de
Gabriela.
Lucia vivia com o marido Antônio Augusto, duas irmãs, Joelma e Gislene, e
uma prima, Luciana Campos, num sobrado de dois dormitórios alugado por R$
475. A fundadora da casa foi Gislene, 15 anos atrás quando migrou de Montes
Claros, Minas. Na seqüência, vieram os outros membros da família. Montaram
um lar aos poucos. Era lá que todas as noites se juntavam para conversar.
“Queria chegar em casa, fazer café, botar os pés no sofá, pôr uma música,
como sempre fazia”, desabafa Joelma.
No dia 12, Joelma só conseguiu retornar do trabalho cinco horas depois do
acidente, por volta das 20h30. Na confusão, encontrou “pessoas abençoadas”,
como a assistente social que a guiou até o sobrado e o funcionário da
Eletropaulo que emprestou por cinco minutos uma lanterna. Na escuridão,
jamais teria encontrado as duas calças, uma blusa, dois sapatos e poucas
peças íntimas, tudo o que pôde recolher até que alguém gritou para saírem
correndo de lá. “É pegar tudo e pegar nada ao mesmo tempo.” Um forte
estampido fez ela atender aos apelos para abandonar a casa. No domingo, teve
mais cinco minutos para retirar documentos dela e da irmã Gislene, que
viajava, o uniforme do trabalho e um porta-retrato dos sobrinhos.
RESSURREIÇÃO
Um estacionamento e duas casas das Ruas Capri e Gilberto Sabino já foram
demolidos. O comerciante Nilton Tapxure, de 46 anos, era dono do Equipe
Park. No dia do acidente, chegou quando o sócio, Marcos de Faveri, e dois
funcionários retiravam, desesperadamente, os veículos. Só um dos 45 carros
foi perdido.
“Quando tivemos de sair, metade do estacionamento já havia afundado”, lembra
Tapxure. O corpo da aposentada Abigail Rossi de Azevedo, de 75 anos, foi
resgatado onde ficava o pátio do estacionamento. Na pressa, ele e Faveri
perderam documentos pessoais e da empresa como o livro-caixa e as notas
fiscais. Tapxure mantinha ainda uma loja de suprimentos de informática no
segundo andar do escritório. Os computadores e máquinas para recarga de
cartuchos de impressora se foram.
O comerciante mora na vizinhança, em um outro imóvel interditado. Agora está
hospedado com a mulher e dois filhos em um hotel, como outras famílias.
“Viramos os sem-teto de Pinheiros”, protesta Tapxure, lembrando que ali
todos têm nome e também sobrenome. Diz já ter tido um contato inicial e
animador da AIG Unibanco, seguradora responsável pelas indenizações.
“Prometeram uma solução em 20 dias.”
José Luís Juliano, de 38 anos, um ex-motoboy hoje empresário, viu seu
negócio sumir. A Juliano Express funcionava na Rua Gilberto Sabino, 214, e
na internet (www.julianoexpress.com.br). Representava o ganha-pão dele e de
22 motoboys. “Não foi dinheiro que perdi, foi a minha alma que ficou lá
dentro”, afirmou ele.
Desde o acidente, não pára de reprisar cenas que preferia esquecer. Primeiro
a morte dos pais e de dois irmãos em um acidente de carro no sábado de
carnaval de 1986. Sobreviveram ele e o irmão Wagner, 11 anos mais novo.
Comprou uma motocicleta e virou entregador por nove anos. Acidentou-se e
ficou um ano com a perna engessada, quebrada em seis partes. Os médicos
diziam que, se voltasse a andar, ficaria manco. Erraram. Depois casou-se com
Sandra Tardelli, sua atual sócia na empresa. A Juliano Express era sua
ressurreição.
O mundo de Juliano começou a ruir de novo quando ouviu o barulho de um
terremoto. Um estrondo bem maior do que as três explosões que os moradores
daquela parte de Pinheiros tentavam se habituar. Um impacto que rachou o
chão do fundo do imóvel. Em instantes, um jovem de short e sem camisa passou
correndo e gritando como um louco: “Evacua, evacua, o túnel do metrô está
caindo.” Todos saíram.
À noite, Juliano implorou a um policial. “Olha, meu amigo, não tenho nada na
vida a não ser os computadores com os nomes de meus clientes. Tive cinco
minutos.” Um isqueiro foi sua luz. Tudo o que pôde recolher foi jogado em
uma Kombi. Coisas se quebraram. Sem uma sede, improvisa agora a empresa na
casa, em Perus, e em uma mesa do bar Asteróide, a uma quadra do antigo
endereço. Teme falir. Seu faturamento caiu quase 70% e as despesas são as
mesmas. “Estou me sentindo um lixo. Vão pagar a demolição, mas como fica a
minha vida?”
SEM ROTINA
Diva Martins de Andrade Bordaz, de 68 anos, sente-se perdida depois que
tiraram o seu sobrado amarelo de três dormitórios. Ele foi ao chão no
domingo passado. Pode parecer pouco, afinal, todos da família estão vivos e
bem, mas o que Diva não se acostuma é viver sem rotina. Do simples acordar
cedo para passar o café, enquanto o marido, o serralheiro aposentado
Francisco Antônio Bordaz, de 71, buscava pão na padaria. Ou das horas de
crochê para produzir peças e mais peças para a família – todas soterradas.
“Não quero fazer mais nada, não tenho mais vontade.”
Religiosa, ela sente falta ainda do terço herdado da mãe, Ana Luísa. Quando
o coronel Jair Paca de Lima avisou a família que teriam uma chance de
resgatar as últimas coisas, ela não se lembrou de buscar o objeto.
Fielmente, rezava duas vezes o terço sempre antes de dormir. Depois,
repousava a relíquia debaixo do travesseiro.
Francisco perdeu as ferramentas antigas de sua serralheria, montada com
peças forjadas por ele. Foram com elas que construiu muitas coisas do
sobrado, como o portão de ferro que teve de arrancar, com a ajuda de seu
filho, Jorge, emperrado por causa do deslocamento da rua. No desespero, o
aposentado só pensou em salvar a mulher, seus dois filhos, o genro e dois
netos. Conseguiu, ainda, achar uma mala preta, onde estavam seus documentos
e a escritura da casa. Ali está a prova de que os Bordaz viveram na Rua
Capri, 162, por 22 anos.
INTERDIÇÕES
Na quarta-feira, outros dez imóveis foram condenados por estarem muito
próximos do guindaste que se manteve capengando em pé na semana passada. A
Rua Conselheiro Pereira Pinto, transversal às outras duas, também há locais
considerados impróprios pela Defesa Civil. No total, 69 imóveis foram
interditados, a maioria com sinais de rachaduras nas paredes, nos chãos,
quintais e calçadas. Desses, 3 já foram demolidos, 10 serão e 14 foram
liberados.
O vaivém de moradores pelas ruas do epicentro do acidente vem ocorrendo de
forma esparsa. Não se pode, a qualquer hora, entrar nos imóveis
interditados. Chaves valem pouco naquele quarteirão. É preciso estar
acompanhado de um representante da Defesa Civil.
As famílias começam o burocrático processo de pleitear indenizações. Reduzir
as perdas em cifras. Danos materiais e morais. Se já era difícil resumir uma
vida em cinco ou dez minutos, o que dizer de valorar histórias que serão
deixadas para trás. Joelma levou meses namorando uma loja de móveis até que
pudesse mobiliar o quarto. Sua prima Luciana havia comprado guarda-roupa,
fogão, cama, colchão e um fax, este último vital nos contatos com clientes
como analista de crédito. A irmã Lucia planejava voltar para Minas, mas
enquanto isso não ocorria foi comprando aparelho de DVD, batedeira,
cafeteira, forno elétrico, máquina de lavar.
Se não tiverem tempo suficiente para resgatar esses bens materiais, ao menos
querem encontrar coisas inestimáveis para cada uma. Lucia e as lembranças de
Gabriela. Joelma e um anel de formatura de 2004, seu talismã desde então.
Luciana e as três únicas e últimas fotos de seu falecido pai, José Campos.