Agora que reciclagem dá lucro,catadores têm de pagar pedágio

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Publicada em 4 de fevereiro de 2007
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
Catadores de materiais recicláveis têm sido obrigados a pagar para trabalhar
em São Paulo, tirar das ruas o que a maioria prefere jogar fora. Disputam
com empresas, algumas fora da lei, cada naco de produto descartável que vire
centavos de real.
A concorrência desigual cresce à medida que reaproveitar sucata vira
sinônimo de dinheiro. Opõe carroças puxadas por homens aos “morcegões”,
caminhões velhos que circulam de madrugada por corredores de prédios de
escritório, como a Avenida Paulista. Sugam com voracidade fatia considerável
da sucata reciclável, a mina de ouro dos papéis, papelões, PETs e latinhas
de alumínio. Sem opção, catadores vendem o resto dos restos, alimentando
parte da ilegalidade da reciclagem.
Em São Paulo, onde se recicla bem menos de 1% do lixo, empresas recebem para
entulhar aterros. Milhares de toneladas de resíduos deixam de ser
reaproveitadas, milhares de homens ficam sujeitos a se contentar com o pouco
que sobra e milhões de reais são jogados fora.
Durante duas semanas, o Estado acompanhou o dia-a-dia de uma cooperativa na
Baixada do Glicério, região central, a Cooperglicério. Conseguiu um rascunho
da história da reciclagem na cidade, que segue nesta e na página seguinte –
páginas que vão parar nas mãos de catadores e, quando somarem 1 quilo, serão
vendidas a atravessadores por R$ 0, 10.
PEDÁGIO
Você é feliz trabalhando com reciclagem? Ariovaldo Emboava responde: “A
felicidade virá aos 61 anos.” Uma idade aleatória, decerto. Até lá, acha que
vai continuar pagando para trabalhar.
Toda última terça-feira do mês, o franzino Ariovaldo, cabelos brancos demais
para seus 43 anos, recolhe de 500 a 800 kg de jornal, carrega por
quilômetros os fardos em seu carrinho e revende a um aparista (empresa
atravessadora). Engana-se quem pensa que embolsa os R$ 80 da revenda.
Ariovaldo repassa parte da quantia para a Ação Local, entidade que recebe o
lixo de um grande escritório da Rua Álvares Penteado. A entidade quis assim.
Ele aceitou, de olho em dezenas de sacos de lixo diárias de produtos
recicláveis.
Filho de um “garrafeiro, metaleiro e ferro-velho”, Ariovaldo leva a vida com
uma tranqüilidade de dar inveja, apesar da renda inferior a 2 salários
mínimos. Só se chateia por pagar pedágio para trabalhar. “Eles nunca me
faltam com material, mas tudo precisa ter um preço?”
William Aparecido, de 22 anos, entrou na Cooperglicério há 2 meses. Teve um
choque. As ruas de São Paulo já têm dono e algumas delas estão nas mãos de
empresas ilegais. “A Paulista virou a máfia dos caminhões”, diz o pai dele,
Luís Carlos Silva Santos, de 49, catador há 6. “Se um catador entrasse na
avenida poderia sorrir um mês inteiro”, garante Luís Carlos.
William se juntou à cooperativa pouco antes de o pai se acidentar ao descer
de de um ônibus. Luís Carlos teve de passar por uma cirurgia na perna. Não
pôde mais puxar o carrinho. Sem acesso ao filão das avenidas, William
recolhe sacos pretos no centro da cidade. De manhã, separa lixo com a mulher
e os pais. À noite, anda cinco horas com o carrinho para recolher o
material do dia seguinte.
Cada empresa que produz mais de 200 litros diários de lixo, portanto um
grande gerador, tem de contratar uma transportadora para dar fim aos
resíduos. São Paulo tem cerca de 700 mil empresas e a maioria não é de
grandes geradores. Mas, pelos números oficiais, só 8 mil destinam
adequadamente o lixo por meio de 41 transportadoras cadastradas. Os
morcegões ganham mercado porque cobram mais barato para recolher lixo ou até
pagam por ele.
“O problema nosso não é ele (o morcegão) trabalhar na clandestinidade, mas
saber onde vai jogar o material”, diz o diretor do Departamento de Limpeza
Urbana (Limpurb), Giuseppe Pagano. “Que ele trabalhe de maneira, digamos
assim, clandestina, santa paciência, o que fazer? Por exemplo, recolhe o
papel e leva direto a uma empresa que faz apara. Não está cadastrado, mas
está fazendo o trabalho, está ganhando o dinheiro dele.”
A Prefeitura não faz a menor idéia de quanto material é transportado dessa
forma. Tudo o que o Limpurb sabe é que, de cada 70 grandes geradores
fiscalizados por mês, 30 são multados. São autuados em R$ 1 mil porque
trabalham com empresas com cadastros vencidos ou sem contrato registrado no
órgão. Já os donos dos morcegões pagam R$ 250 para retirar o caminhão quando
apreendido.
A valorização da reciclagem e o empobrecimento da população fizeram aumentar
o número de catadores. É uma concorrência ingrata. Quem fica um dia sem
passar num prédio perde o ponto. Antes, cada empresa dava a alguém a
exclusividade de recolher o material. Livrava-se de ver o lixo revirado por
carroceiros e do gasto de destinar resíduos por conta própria.
Depois as empresas se deram conta do valor da reciclagem. Catadores viraram
sinônimo de prejuízo. E ainda têm de enfrentar a concorrência de
funcionários dos prédios. “Faxineiros separam e vão vender na 25 de Março.
Ganham até R$ 10 por dia e deixam o resto para nós”, protesta Luís Carlos.

Catadores ficam só com 25% da renda do lixo
Sem estrutura, carroceiros ficam dependentes dos atravessadores
Coleta seletiva oficial é cara e só recicla 0,45% do total produzido
De cada R$ 4 gerados na reciclagem de lixo, R$ 3 ficam nas mãos dos
atravessadores e das indústrias. O R$ 1 que sobra é dividido entre
catadores. Qualquer um percebe que eliminar os atravessadores aumentaria
muito a renda dos carroceiros. Mas, como não trabalham com grandes
quantidades, eles não conseguem vender direto para a indústria. E sem
estrutura mínima, como empacotar adequadamente a sucata (triturar, prensar,
enfardar e pesar) ou apresentar nota fiscal, ficam reféns dos atravessadores.
Na semana passada, os preços pagos por quilo pelos atravessadores eram os
seguintes: R$ 0,14 para o papelão de boa qualidade; R$ 0,35 para o papel
“branco”; R$ 0,22 para o papel misto (B4); R$ 0,10 para vidro ou jornal; R$
0,24 para ferro; R$ 0,15 para o plástico mole (copinho plástico); e R$ 0,50
para garrafas PET.
O alumínio é um caso à parte. Um quilo, ou cerca de 70 embalagens, vale R$
3,70. Seu mercado virou tão cobiçado quanto o comércio de jóias e fez do
Brasil o campeão mundial de reciclagem desse material. Cerca de 150 mil
brasileiros vivem de reciclar latas de alumínio. São desempregados, donas de
casa e comerciantes. Hoje, em pouco mais de um mês a latinha passa pelo
consumidor, é reciclada e volta para a mão de outro consumidor. Quase nada
vai parar nas carroças dos catadores.
Já a sigla B4 esconde uma ilegalidade praticada pela grande maioria dos
catadores autônomos. Entram nessa categoria papéis como folhas de sulfite
impressas, manuscritos ou cadernos usados. Mas, embora isso seja proibido,
papel higiênico e papel toalha também entram. Aparistas compram o B4
contendo material impróprio. Revendem fardos a grandes atravessadores, que
trituram tudo e com a massa formada misturam ao “branco”. Fazem o mesmo que
é feito com a gasolina adulterada. Indústrias, que defendem o
desenvolvimento sustentável, produzem papel reciclado com o B4.
Pela legislação, é proibido reaproveitar papel higiênico e papel toalha
usados porque eles são patogênicos, carregam doenças e trazem ameaças aos
trabalhadores, que muitas vezes separam esse material sem usar luvas. A
Vigilância Sanitária fiscaliza os galpões dos aparistas, mas nunca flagrou a
presença dos materiais impróprios – em fardos, eles viram um mero bloco de
papel prensado. Para os catadores, se há mercado, por que não vender? O B4
chega a representar metade do seu faturamento.
Procurada, a Associação Nacional de Aparistas não quis dar entrevista. O que
se sabe é que o consumo do B4 só faz crescer. Saltou de 79,3 mil para 138,5
mil toneladas entre 2001 e 2004, último ano com dados consolidados da
Associação Brasileira de Celulose e Papel.
SATURAÇÃO
No mercado formal do lixo, as concessionárias de limpeza pública recebem da
Prefeitura R$ 65 por tonelada coletada e levada ao local adequado. É o saco
de lixo das casas, que vem saturando os dois únicos aterros em atividade na
cidade, o Bandeirantes e o São João. Ambos têm vida útil para só mais um ano.
Em 2002, foi criada a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares, destinada a
bancar as despesas com coleta, transporte, tratamento e destinação do lixo
na capital. Em quatro anos, a Prefeitura arrecadou R$ 560 milhões, dinheiro
carimbado para a prestação de serviços de limpeza urbana. A taxa foi extinta
e o problema dos aterros persiste. Reciclar mais seria um meio de atenuá-lo.
A Cooperglicério recicla cerca de 70 toneladas por mês. Os principais itens
são papel (21 t), papelão (15 t) e copinhos de plástico (2 t). Fatura cerca
de R$ 16 mil, divididos entre os 52 cooperados. Se as 70 toneladas
estivessem acondicionadas em sacos pretos, a remoção custaria aos cofres
municipais R$ 4.550. “A Prefeitura paga às empresas para retirarem o lixo,
mas, nós, que reduzimos o material dos aterros, não recebemos nada”, explica
Givanildo Silva Santos, articulador estadual do Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis.
Para recolher as 15 mil t de lixo diárias produzidas na cidade, a Prefeitura
paga R$ 60 milhões por mês às empresas. Estima-se que metade dos resíduos
produzidos nas casas seja orgânico, algo em torno de 4,5 mil t por dia.
Poderiam virar adubo, mas não viram. Os outros 50% são inorgânicos, a
maioria embalagens e papéis. Poderiam ser reciclados, mas não são. Se
existisse uma Cooperglicério capaz de absorver essa metade reciclável, a
Prefeitura economizaria R$ 31,7 milhões e geraria 103 mil empregos.
A Defensoria Pública move uma ação contra a Prefeitura justamente por não
incentivar a reciclagem. Em 16,5 mil casas há coleta seletiva, recolhendo só
67 t (0,45% do total). Esse material vai para 15 centrais de triagem –
deveriam ser 31 até dezembro de 2004. Manter a coleta seletiva tem custo
elevado, argumenta a Prefeitura: R$ 2,5 milhões mensais pelo aluguel dos
galpões, caminhões e manutenção de equipamentos. Há custos, contudo, que
representam ganhos ambientais e sociais incalculáveis. Cerca de 700
cooperados trabalham nas 15 centrais de triagem, evitando que 85 t cheguem
aos aterros.
Segundo o Instituto Polis, existem de 300 mil a 1 milhão de catadores no
Brasil. Na capital, são 20 mil, dos quais só 3 mil organizados. Aos poucos,
governos têm criado políticas públicas para esses recicladores. Uma delas é
a Lei Federal 5.940, de outubro. Órgãos federais serão obrigados a separar
os resíduos e destiná-los exclusivamente a associações e cooperativas. Nos
próximos dois anos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) prevê liberar R$ 25 milhões e a Petrobrás outros R$ 18 milhões para
que catadores montem galpões e comprem com prensas, esteiras e balanças
eletrônicas. Assim, ganharão a força de um atravessador sem precisar de um.
“Cato muito papelão, sei que cada 200 quilos de papel significam cinco
árvores que não são cortadas”, orgulha-se Paulo César Pontes, de 34 anos.
Ex-vigilante, conseguiu com a reciclagem renda mensal de pouco mais de R$
500. Está feliz por sustentar a mulher e os três filhos pequenos. Sua oração
preferida, repetida dez vezes por dia: “Senhor, dê-me serenidade para as
coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e
sabedoria para distinguir uma das outras. Amém.” EDUARDO NUNOMURA

Cooperativa, a redenção dos marginalizados
Quando apanhou um jornal do chão, há seis meses, e soube que a ministra
Ellen Gracie elevou os salários do Supremo Tribunal Federal para R$ 25.725,
Romeu Sergio Bueno fez as contas e descobriu que levaria mais de quatro anos
para conseguir tanto dinheiro. Refez os cálculos acrescentando quantos
quilos de sucata teria de separar: astronômicas 52 toneladas.
Romeu, de 50 anos, faz parte do conselho da Cooperglicério. Diz ser formado
em engenharia e viver de reciclagem há mais de 30 anos para provar que
cooperativas de catadores são o quilombo das metrópoles. Se bem geridas,
representam a libertação do povo de rua. “Este é o fim da vida, o encontro
de pessoas que já passaram por drogas, vieram sozinhos do Nordeste, ficaram
na rua. Aqui sobrevivemos. Estamos lutando por algo mais. A liberdade já
temos. Queremos a igualdade.”
Os cooperados respeitam Romeu. Ele não só fala como age. Num dia,
surpreendeu a todos quando disse que, de carcaças de computador entregues
por uma firma, montaria um “novo”. E não é que o micro de sucata funcionou?
Máquinas de sucata.
Luís Carlos Silva Santos, de 49 anos, trabalha na Cooperglicério há seis
anos. Foi levado pela mulher, Sonia, de 45. Pintor de carros da Volkswagen
em São Bernardo do Campo, foi demitido por ter participado de greves. Ela,
dona de casa, cansou de ver o marido desempregado e aceitou o convite de uma
vizinha para catar sucata na rua. Ganhou R$ 12 num dia e uma profissão.
“Tive de perder a vergonha na marra”, lembra ela, que hoje gasta a renda de
R$ 500 com roupas, calçados e comida. Tem dez filhos. “Sem a reciclagem não
teríamos nada”, afirma, mostrando os cinco cômodos da casa, no Itaim
Paulista. Peças catadas na cooperativa estão por toda a parte, como os
móbiles de peixes coloridos e telefone, meramente decorativo: a família não
tem dinheiro para comprar a linha. E.N.

Taxa para reaver carroça vale 2 meses de trabalho
O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, acusa a Prefeitura
de incentivar a apreensão e quebra de carroças por parte da Guarda Civil
Metropolitana. É quase improvável que o catador consiga reaver o seu
instrumento de trabalho, em geral, ele não é devolvido, mas sim destruído
pela fiscalização. Sem alternativa, o carroceiro tem de comprar um novo por
R$ 200. A Guarda Civil não se defende da acusação. Prefere atribuir às
subprefeituras a paternidade das operações de repressão contra os
recicladores.
“Não podemos deixar que a cidade vire um cortiço”, afirma o secretário de
Coordenação das Subprefeituras, Andrea Matarazzo. O secretário defende a
substituição, no futuro, de carroças por veículos motorizados. Os
carroceiros querem o mesmo, só não têm dinheiro para a substituição.
Matarazzo diz ainda que os catadores precisam trabalhar em centrais de
triagem organizadas. Mas a localização delas é outro motivo de disputa. “Não
tem por que ter uma central no meio de um bairro residencial, porque a
atividade não é compatível com a moradia”, diz Matarazzo. Apesar disso, ele
diz que vê os carroceiros como “parceiros”.E.N.

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