Publicada em 25 de fevereiro de 2007
O Estado de S. Paulo
Dida Sampaio
ENVIADO ESPECIAL
ARAME (MA)
Alfilenio Gomes é um homem atarracado, mas sua força vem mesmo de uma
motosserra Stihl, modelo MS 051. Ideal para “trabalhos pesados, em qualquer
tipo de floresta com árvores de grande porte”, como indica o fabricante. O
sabre de 75 centímetros é capaz de pôr abaixo, em questão de minutos,
árvores centenárias da Amazônia brasileira. É essa a profissão de Gomes, um
brasileiro de 36 anos que sustenta seis filhos derrubando jatobás, ipês,
cedros e outras madeiras nobres no interior do Maranhão.
Como a maioria dos trabalhadores, Alfilenio Gomes desperta cedo. No caso
dele, no meio da mata, abrigado em uma barraca improvisada de lona preta. É
sua morada enquanto houver árvores frondosas para serem cortadas. Às 7h30,
ele e seus colegas já estão caminhando. Uma hora de passos silenciosos e
imagens gritantes. Cruzam desmatamentos anteriores e árvores menores,
deixadas pelo caminho por causa do baixo valor comercial. Um cemitério da
floresta. E Gomes é mais um de seus construtores.
Surge um jatobá, fácil de reconhecer para quem vive de derrubá-las. A árvore
tem a altura de um prédio de dez andares. Gomes coloca o capacete protetor
azul, mira à volta e liga o motor da MS 051. É como o ronco de uma
motocicleta de alta cilindrada. Ensurdece. Nada mais natural que ele seja
chamado pelos colegas de Motoca. Um talho diagonal, de alto a baixo, é feito
num dos cantos da árvore. Aponta a direção da queda que virá em instantes.
Só o tempo de Motoca recomeçar o corte no resto do tronco, já na horizontal
e no canto oposto. Ninguém grita “madeira”. Apenas saem correndo para se
proteger.
O jatobá (nome científico Hymenaea courbaril) tem copa larga, que chega a 3
metros de diâmetro e cerca de 6 ou 7 metros quadrados de área. Isso
significa que, quando cai, arrasta também espécies menores que antes
protegia. Motoca acha isso rotina. E, como parte do trabalho, vem então a
tarefa de limpar o seu ganha-pão. Primeiro faz um novo corte próximo do
anterior. Rente ao tronco. É um tipo de atestado da árvore: se ela está oca,
o novo corte mostrará isso. “Essa é boa, virô só as tiras”, diz ele, numa
das raras vezes em que se manifesta. Em seguida, desbasta os galhos do
jatobá e corta-o em toras de cerca de 6 metros.
Num único dia, Motoca derruba uma média de cinco árvores. Tudo ilegalmente.
Vende a atravessadores que compram um caminhão carregado com nove toras de
jatobá ou ipê por R$ 300. É o preço do momento, uma árvore de mais de 30
metros valendo menos de R$ 170. “A vida é muito difícil”, afirma Gomes. “O
que se ganha é pouco e mal dá para sobreviver. O dinheiro que a gente tira
daqui é igual dinheiro de garimpo. É amaldiçoado, porque a gente não
consegue fazer nada.”
O “aqui” de Gomes é a Fazenda Citema, localizada entre os municípios de
Grajaú e Arame, a 500 quilômetros de São Luís. O “dinheiro de garimpo” faz
jus à rede formada no comércio ilegal de madeiras na Amazônia. Em muito se
parecem, o garimpo e a atividade madeireira. São cerca de 3 mil pessoas
entre ex-trabalhadores rurais, madeireiros e atravessadores atuando no
local. Os mais pobres entre eles são os que enfrentam os dias na mata,
sonhando ficarem ricos. Demarcam e cortam as madeiras, mas ganham menos.
Enriquecem os atravessadores, que revendem o produto para serrarias de
cidades vizinhas pelo dobro do preço. E também os donos das serrarias que
vendem a R$ 1 mil a mesma madeira processada.
TERRA DE NINGUÉM
A exploração ilegal de madeiras nobres nessa parte da Amazônia está
devastando uma área de 23 mil hectares – um pouco mais que a capital Recife,
em Pernambuco. A fazenda foi invadida por posseiros e grileiros em 2003.
Desde então, virou terra de ninguém. Os postos do Ibama e da Polícia Federal
estão a mais de 200 quilômetros. A fazenda pertence à Companhia Industrial e
Técnica do Maranhão, que compõe o grupo EIT Construções. Nenhum
representante da empresa é encontrado mais na área. Por e-mail, a diretoria
afirma que se sente impotente e impedida de entrar na propriedade.
Sem fiscalização, as atividades ilegais proliferam livremente. Caminhões
Chevrolet modelo D60, fabricados nos anos 1970, trafegam dia e noite pelas
estradas da região. São perigosas por causa do piso muito irregular. E
também pelo grande número de roubo a ônibus e carros. Quando atuam, os
fiscais do Ibama ficam no posto da Polícia Rodoviária Federal. Mas nunca de
noite, quando os bandidos agem.
Os caminhões entram vazios na fazenda e saem carregados de toras. São várias
as entradas nos mais de 60 quilômetros de largura da propriedade. Ramais de
terra e picadas que dão acesso aos acampamentos. Ao lado deles, um cenário
apocalíptico. Árvores queimadas, restos de toras apodrecidas e poucas
espécies vegetais rasteiras que resistem à destruição.
Buriticupu, vizinha a Arame, já é chamada de “cidade da fumaça”. Tem 40
serrarias em atividade e várias carvoarias. Estas são simbióticas à
exploração madeireira. Como aos madeireiros só interessa a madeira nobre, os
carvoeiros aproveitam o resto das árvores deixadas para trás. Produzem o
carvão vegetal que alimentam os fornos de siderúrgicas de ferro gusa no
Maranhão e Pará.
DESAPROPRIAÇÃO
Um ciclo que atrai brasileiros depauperados e sem apego à lei. A disputa de
terra e árvores nobres já causou a morte de oito pessoas desde 2005. Segundo
o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arame, todas foram assassinadas. “A
situação da fazenda é difícil desde 1997, quando parte da fazenda foi
invadida, primeiro por pequenos trabalhadores rurais, depois por grandes
grileiros”, explica Mariana Monteiro Araújo, presidente do sindicato.
“Tentamos colocar ordem na fazenda, fazendo 300 contratos de comodato. Mas
depois perdemos o controle da situação.”
O Incra tenta desapropriar a área para criar um assentamento de reforma
agrária para 350 famílias. Os invasores que pediram a vistoria da Fazenda
Citema afirmaram que fermentava ali um processo típico da destruição
florestal. Primeiro a derrubada da mata nativa em busca das árvores nobres.
Sem dó. Depois, a retirada de matéria-prima para as carvoarias. A
mão-de-obra envolveria trabalho escravo, nunca comprovado. Terra arrasada, a
empresa entraria com um projeto de reflorestamento de eucalipto, como já vem
ocorrendo com outras áreas ao sul do Maranhão. A empresa nega. Afirma apenas
que desenvolvia duas atividades: serraria e criação de gado. Hoje
paralisadas.COLABOROU EDUARDO NUNOMURA
Por dinheiro, índios viram cúmplices
ARAME, MARANHÃO
De um lado da MA-008, a destruição da floresta na Fazenda Citema. Do outro,
a mesma cena, só que na terra indígena Araribóia, dos índios guajajaras.
Embora com menos intensidade, os madeireiros também conseguem extrair
madeiras da parte que deveria estar protegida. O que está acontecendo agora,
neste momento, nesta região, é a crônica do desmatamento amazônico. Um crime
que se arrasta há mais de 30 anos.
Em 9 outubro de 1975, o Estado publicou a seguinte história: “Um grupo de
índios guajajaras apreendeu no princípio desta semana 640 toras de madeira
que estavam sendo retiradas ilegalmente de sua reserva, localizada no
município de Grajaú. Enquanto Mário Murici (chefe do posto de Angico Torto)
vinha a São Luiz comunicar o fato, trabalhadores da construtora EIT –
proprietária de uma extensa área na divisa com a reserva indígena –
convenceram os índios a negociar a madeira apreendida, que foi trocada por
rádios de pilha, isqueiros, cigarros e pequenas quantias de dinheiro.”
Hoje o crime persiste, também movido por dinheiro. O cacique Edivaldo Souza
Barbosa Guajajara, da comunidade Bela Vista, admite que os índios
autorizaram a entrada dos madeireiros. Eles sabiam o que isso representava,
mas alegam ter optado pelo mal menor. Segundo o líder indígena, o dinheiro
da extração ilegal da madeira será usado para comprar arame. Ele quer cercar
a aldeia para impedir a fuga do gado e evitar futuros desmatamentos.
Segundo o padre Marcos Bassani, de Grajaú, ao longo dos anos os guajajaras
foram se deslocando para a beirada da BR-226. A vida deles passou a girar em
torno da economia do não-índio. No caso, madeireiros, carvoeiros e até
plantadores de maconha. “Há vários casos de bandidos que casaram com
mulheres índias para se refugiar na aldeia. Se cometem um crime, a Polícia
Militar não entra, só a Federal pode.”
A Polícia Federal não atua por falta de dinheiro e estrutura, admite o
superintendente do órgão em São Luís, Gustavo Ferraz Gominho. “Lá dentro, os
índios se acham donos da terra, que é da União. Fazem o que querem. Os
índios cobram para deixar os madeireiros entrar.” Na visão do delegado,
madeireiros e carvoeiros agem livremente porque a economia local depende
deles. Em 2003, a PF realizou uma operação. Semanas depois, tudo voltou ao
que era antes. No ano passado, um carro da Polícia Rodoviária Federal foi
incendiado por moradores em Buriticupu.
“Aqui inexiste o poder público. Tudo é feito como se fosse um faroeste: com
um pouco de dinheiro e mínimo de coragem, eles reinam”, afirma o padre
Marcos Bassani. Com dinheiro, por exemplo, pode-se comprar falsas ATPFs,
autorização para transporte de produtos florestais. Ele teme que o avanço da
soja no sul e dos latifúndios do agronegócio na região torne os conflitos
ainda piores.
SEM COMBUSTÍVEL
O Ibama, órgão ambiental federal, está a mais de 200 quilômetros. Não tem
condições de fiscalizar com dois técnicos em atividade – um terceiro está
doente. Falta ainda combustível e verbas nunca liberadas para deslocar a
equipe. “Não temos como dizer onde está ocorrendo a retirada de madeira
ilegal. Talvez a superintendência, com imagens de satélite, possa”, diz a
chefe do posto, Rosa Freitas Viegas. Mas e o vaivém de caminhões pelas
estradas, tão escancaradamente, não dá para fiscalizar? “Os projetos de
desmate estão sendo autorizados pela secretaria estadual do Maranhão”,
rebate Rosa.
João Wilson, de 33 anos e há 8 trabalhando com madeira, desdenha das
críticas que costuma receber, sobretudo de quem está longe. O madeireiro
raciocina assim: “Cientista fica querendo arrumar mídia para ter patrocínio
para tocar o seu lado. Fica botando na cabeça essa coisa de aquecimento
global, que vai esquentar o tempo, vai esfriar o tempo. Verão é verão,
inverno é inverno. Os caras ficam preocupados com o que vai acontecer daqui
a 50, 100 anos? Temos de importar com o nosso dia de hoje.”
DIDA SAMPAIO E EDUARDO NUNOMURA