Publicada em 22 de março de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Lata d’água na cabeça, lá vai Maria caminhar até seis quilômetros em busca
de sua sobrevivência. Essa é a distância se Maria for mineira, do Vale do
Jequitinhonha, porque se fosse do sertão paraibano seriam dois quilômetros.
Os dados foram medidos pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), companhia
vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Num mapeamento do semi-árido, a
empresa descobriu que há água parada e sem uso no subsolo da região. Hoje,
são pelo menos 37 mil poços fora de operação.
A CPRM levantou a existência de quase 88 mil poços em 1.103 municípios de
oito Estados nordestinos (excetuando o Maranhão) e do norte de Minas.
Desses, 50.440 estão em operação. O restante não foi instalado ou está
paralisado. Para 530 deles, a companhia não obteve informações. Desde 2003,
quando o cadastramento de poços perfurados ainda estava pela metade, a CPRM
decidiu iniciar um projeto de revitalização dessas fontes. Na prática, seria
botar para funcionar o que não estava funcionando.
A idéia original do cadastro era mapear fontes de água subterrânea. Na
época, no fim dos anos 1990, perfurar poços sem critérios era prática
política comum. Abria-se um buraco, retirava-se água por um tempo e bastava
uma bomba quebrar para voltar à estaca zero. “Na região, abandona-se poço
por nada”, afirma José Emilio Carvalho de Oliveira, coordenador do
Departamento de Hidrologia da companhia. “O abastecimento, onde a água do
subsolo é a única que tem, fica muito dependente de questões políticas.”
Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), que em dezembro divulgou o
Atlas-Nordeste, recuperar poços ainda é uma das ações possíveis. O estudo
mostrou que serão necessários R$ 3,6 bilhões para investimentos em várias
frentes para minimizar o impacto das secas nos próximos anos. Tirar água do
subterrâneo é uma delas. A estimativa da agência é que, se nada for feito,
mais da metade dos municípios do semi-árido enfrentará graves problemas de
abastecimento em 2025.
Nem todo o semi-árido tem água de subsolo. A bem da verdade, 70% é de solo
ruim, não retém água. É composto de rochas calcárias ou o cristalino.
Dificultam a captação. Um poço perfurado ali não consegue produzir mais que
2 mil litros de água por hora. Só 30% da região é formada por rochas
porosas, as que têm aqüíferos de boa qualidade. É por essa razão que há um
predomínio de exploração de águas de superfície, captando em rios e açudes.
Idealmente a ocupação das terras deveria seguir essa lógica. Na prática, as
pessoas ocupam as áreas que podem e formam comunidades onde não há água
(leia texto abaixo). Os poços, bem ou mal, podem servir para reduzir as
dificuldades. “Há água suficiente para matar a sede, mas não para fixar o
homem no campo”, diz Oliveira, da CPRM, que lembra que com um pouco de água
é possível cultivar pequenas hortas de subsistência e criar poucos animais.
A CPRM já revitalizou 473 poços, beneficiando 29.385 famílias em 385
municípios. Só nos últimos dois anos foram 434 poços. Nem todos os poços
parados podem ou precisam ser reativados. Há casos em que a própria
comunidade desliga a bomba porque açudes próximos estão cheios. Ou porque a
prefeitura e o Estado trouxeram uma adutora na região. A Petrobrás furava e,
quando não encontrava petróleo, mas água, tampava o buraco. Com o cadastro,
até o sistema de carros-pipa ficou mais eficiente. Agora busca-se água no
terreno mais próximo.
No início do século passado, furar poços era a alternativa mais viável. O
Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs, atuou durante anos na
perfuração de poços artesianos e construção de açudes. Politicamente, era
obra certeira. Juntava a geração de empregos com a expectativa de ofertar
água. Só nas últimas décadas outras ações foram incorporadas, como uso de
cisternas, transposição de bacias e dessalinização de águas.
Depois da reforma, andança suspensa
O Povoado do Vidéu fica a 50 quilômetros da sede de Ouricuri, no sertão
pernambucano. A adutora mais próxima está a quase 20 quilômetros. Mas ali
pertinho do sítio do Vidéu, onde moram as cerca de 400 famílias da
comunidade, tem um poço com água subterrânea. Água boa, de beber. E não é
que ele ficou paralisado quase dez anos, enquanto a população passava sede?
A ironia é que foi uma chuva forte que fez queimar a única bomba que fazia a
captação. Só foi consertada há dois anos.
O Serviço Geológico do Brasil (antiga Companhia de Pesquisa de Recursos
Minerais) descobriu que o poço era ruim, mas não imprestável. Tinha uma
vazão de 1.800 litros por hora. Bem melhor que viajar até 10 quilômetros em
cima de uma carroça ou um jegue. Ou esperar o carro-pipa. A CPRM cercou o
poço para evitar a depredação, instalou um registro para controlar o
desperdício, montou um novo encanamento e ensinou os moradores a usarem
racionalmente a água.
“Depois que recuperaram o poço, aprendemos também que precisaríamos cobrar o
poder municipal”, explica João Batista Viana de Macedo, presidente da
Associação de Moradores e Agricultores do Povoado de Vidéu. Deu resultado.
Em novembro, quando as famílias se acostumaram a viver com água, a
prefeitura entregou um segundo poço de maior vazão. Por hora, são mais 4 mil
litros de água. Some-se a isso outras 30 cisternas construídas em algumas
casas.
ESPERANÇA
“Muitos moradores não foram embora porque tinham medo de perder suas
terrinhas”, afirma o presidente da associação de moradores. Agora que há
obras permanentes e água num nível mínimo, as famílias imaginam que chegou a
vez do Povoado do Vidéu. Fazem dívidas para comprar e cultivar feijão de
corda, milho, sorgo e capim de búfalo.
Esperam que não fiquem refém do clima. No ano passado, quando não choveu e a
seca veio forte, a solução ainda foi racionar a água. E.N.
Água para quem tem sede. Mas sede de quê?
Eduardo Nunomura
Como pode alguém negar um copo de água a quem tem sede? O ex-ministro Ciro
Gomes e outros representantes do governo usavam esse argumento sempre que
eram pressionados a debater o projeto de transposição do Rio São Francisco.
Visto dessa forma, como dizer não? A argumentação, contudo, nunca bastou
para remover a série de obstáculos contrários às obras de levar água para o
semi-árido nordestino. A começar do Ibama, órgão federal, que até hoje não
concedeu a licença ambiental total – o processo foi aberto em maio de 1994 e
a solicitação de licenciamento ocorreu em janeiro de 2000.
O relatório de impacto ambiental, de julho de 2004, enumerou 44 impactos
provocados pela construção de dois canais. Só 12 eram positivos, como levar
água para quem tem sede, gerar empregos e reduzir o êxodo rural. A maioria
indicava que havia riscos como reduzir a geração de energia elétrica,
ameaçar a fauna e a flora e perder terras férteis numa região já carente
desses recursos. Ambientalistas se apressaram então a cobrar a revitalização
do Velho Chico antes das obras sonhadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.
Numa tentativa de reduzir a resistência, o governo rebatizou as obras com o
nome de “Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas
do Nordeste Setentrional”. Transpor tem um sentido de transferir, levar de
um lugar para outro. No caso a água que já faz falta até mesmo nas cidades
lindeiras ao rio. Não é raro encontrar nordestinos e mineiros que vivem às
margens do Velho Chico sem abastecimento mínimo de água. Choca porque estão
ao lado de ricos projetos de irrigação presentes na bacia, como em Juazeiro
(BA) e Petrolina (PE).
Transpor águas é obra velha. Nos Estados Unidos, foi feito no Rio Colorado.
Lá a água já deixou de chegar à foz alguns meses do ano. Ambientalistas e
governos do chamado Baixo São Francisco, como Sergipe e Alagoas, têm medo de
que aconteça o mesmo com a obra brasileira. Nesses Estados, o rio vem
perdendo força para o avanço do mar, a língua salgada que sobrepuja o Velho
Chico. Causa ou efeito do aquecimento global?
Hoje, para produzir energia, usinas hidrelétricas tornaram a vazão do rio
artificial, com hora e volume definidos por máquinas. Quando a lagoa de
Sobradinho começa a reter água, os ribeirinhos percebem de imediato. A
Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf, afirma que sem o seu
controle o rio estaria ainda mais seco. E aí resta a explicação de que são
vários os maus usos da água.
Carvoarias que dizimaram florestas em Minas secaram afluentes do São
Francisco. Outros sofrem com o lançamento direto e indiscriminado de
esgotos, como faz a Grande Belo Horizonte no Rio das Velhas, o maior
afluente do Velho Chico. A sorte é que a natureza minimiza a ação do homem.
O rio perde e recupera vida ao longo de seus 2.700 quilômetros. É poluído no
Alto São Francisco. É translúcido nos cânions de Canindé de São Francisco
(SE), Baixo São Francisco.
Revitalizar um rio é obra rara. Significa recuperar a vegetação das margens,
a mata ciliar, desassorear a calha do rio, tratar esgoto, evitar desperdício
de quem já se aproveita das águas. De 2004 a 2006, enquanto se discutiam as
obras, o governo gastou R$ 229,4 milhões no programa revitalização de bacias
hidrográficas, boa parte centrada no São Francisco. Mas deixou nos cofres R$
57,9 milhões do orçamento. Na semana passada, Lula carimbou a cifra de R$
3,3 bilhões para começar a construir 700 quilômetros de canais.
Ambientalistas criticam a obra por tentar retirar água de um rio combalido.
Acusam o governo de ocultar que a transposição do São Francisco será
utilizada para abastecer o agronegócio irrigado, culturas de camarão no Rio
Grande do Norte e outros projetos de grande porte, além de favorecer
megaempreiteiros que tocarão os canais. O governo se defende e admite que o
projeto quer matar a sede e levar desenvolvimento a uma região até hoje sem
alternativa.
Os Estados beneficiários, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco,
querem o projeto. Os demais, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas, temem ser
prejudicados econômica e ambientalmente.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, um gerentão do Velho
Chico, admite que a vazão mínima, que determinará a retirada máxima de água
pelos vários projetos sugadores ao longo da bacia, seja reduzido em até
1.500 metros cúbicos (mil litros) por segundo. Hoje é de 1.850. O governo
alega que o projeto vai aumentar a retirada de água na proporção de 1 litro
em cada 100. Na somatória, significa remover entre 26 e 127 metros cúbicos
por segundo.