Publicada em 20 de abril de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
PAU BRASIL
Minervina Maria de Jesus diz não se lembrar dos fatos, pede desculpas pela
“mente esquecida” e assegura que a filha Yaranawi a ajudará se precisar. Tem
sido assim desde o ano passado, quando a pataxó de 72 anos viu o marido
morrer de enfarte fulminante. Não é que a mãe do índio Galdino não se lembre
das coisas. As coisas é que perderam sentido. Palavras só a fazem recordar
da injustiça que tem sido sua vida.
Mas Minervina fala: “Minha vida é como uma balança. Uma hora tá certa. Nas
outras tá mais caída prum lado. Tá faltando o peso, o peso certo.”
Dez anos se passaram desde a morte do índio Galdino Jesus Santos Pataxó,
queimado vivo por jovens ricos de Brasília. O episódio virou sinônimo de
injustiça social no Brasil. Os assassinos achavam que era um mendigo aquele
corpo do filho de Minervina dormindo num ponto de ônibus na madrugada do dia
20 de abril de 1997. Ela ainda guarda muita raiva deles. Em vez de dizer o
que sente, resume a dor com uma frase curta: “(A condenação deles) Foi
pouca, queria que ficassem presos a vida toda.”
Os cinco jovens já estão soltos e cumpriram menos que os 14 anos a que
tinham sido sentenciados. Procurados pela reportagem do Estado em Brasília,
seu advogados disseram que não falariam. Os pataxós hã-hã-hãe tiveram uma
condenação maior. Até hoje não conseguiram obter na Justiça o direito de
recuperar suas terras, cuja área Caramuru-Catarina-Paraguassu está situada
em três cidades: Camacãn, Pau-Brasil e Itaju do Colônia.
Um processo no Supremo Tribunal Federal (STF), a ação cível originária 312,
está entre as mais antigas do Judiciário. Passou por 15 presidentes do STF e
quatro relatores: Celio Borja, Francisco Rezeke, Nelson Jobim e Eros Grau.
Causa grande. Acumulou 25 volumes, o equivalente a 5 mil folhas de sulfite e
20 apensos (CDs, mapas e outros documentos). Parou por um agravo regimental
que decidirá se a perícia sobre as terras já feita é válida ou será
necessária outra. Só então a ação será julgada.
O pataxó Galdino tinha ido a Brasília pedir pressa nesse processo. Em
setembro, a ação da Funai completará 25 anos.
Minervina não acreditava em destino. Hoje crê. Quando saiu de casa para ir à
capital federal, Galdino confidenciou à mãe que ia, mas voltaria nas mãos
dos outros. Ela ralhou, depois achou que era brincadeira besta. O pai,
Juvenal, foi junto. Quando pisou em Pau Brasil, na Bahia, trazendo o corpo
do filho queimado num caixão, ele disse à missionária Alda Oliveira, sem
saber, o que a mulher já tinha ouvido: “Vê, Sinhá menina, meu filho foi com
as próprias pernas e voltou com as dos outros.” Galdino não queria ir a
Brasília para mais um Dia do Índio. Talvez estivesse cansado de pressionar
pelas terras, o rito parecia inútil. Talvez pressentisse algo. O grupo
perdeu o ônibus, e o pataxó bebeu até cair em Itabuna. Na manhã seguinte,
pediu dispensa ao vice-cacique Gerson. Assim mesmo teve de ir. Ninguém
imaginaria a tragédia na capital federal.
Minervina mora hoje na sede da Fazenda São Lucas, uma ocupação ocorrida
ainda com Galdino vivo. É uma habitação precária, não tem “conforto”, diz.
Com ela, moram a filha Yanawari, ex-cacique e hoje líder dos hã-hã-hãe,
outro irmão de Galdino e alguns netos.
Com o assassinato que virou notícia mundial, como os fazendeiros podiam
resistir à pressão? Naquele 1997, tomaram posse de outras quatro fazendas e
obtiveram 2 mil hectares.
INVASÕES
Em 1999 e 2000, cansados de esperar por uma solução pacífica, os pataxós
reiniciaram invasões em mais de 20 fazendas de pecuaristas e plantadores de
cacau. A política da Funai, o órgão federal que cuida dos direitos
indígenas, foi indenizar os proprietários. Alguns aceitaram; outros resistem
até hoje.
“Índio só vi nas margens do Rio Negro. Esses aqui são mestiços, mas mestiços
somos todos nós”, ironiza o fazendeiro Durval José de Santana, de 70 anos,
40 deles com propriedade em Pau Brasil. Ex-prefeito por duas vezes, ele
garante que a Fazenda Letícia é sua. Baseia a defesa no fato de que o
interventor Landulfo Alves, em 1926, titulou as terras para os fazendeiros.
Ele tem os títulos e a ação no STF da Funai justamente para anulá-los. A
terra foi demarcada, mas nunca homologada pelo órgão indígena.
O fazendeiro Santana tem se dedicado à agricultura e à pecuária. São 130
hectares com cacau e 600 cabeças de gado. Não cogita largar o usufruto. “Se
perder o que tenho, disse ao doutor (promotor): não preciso mais viver. Mas
antes de morrer levo muito cabra junto.”
Índios têm morrido violentamente e aos montes no Brasil. Depois de Galdino,
foram 241 homicídios. No governo Fernando Henrique Cardoso, 20 índios eram
assassinados por ano. Sob o governo Lula, essa média dobrou. Os últimos dois
hã-hã-hãe que Minervina ajudou a enterrar foram os companheiros Milton Sauba
e Raimundo Sota, em 2002. E antes deles, também seu outro filho.
OUTRA VÍTIMA
Em 1988, o pataxó João Cravim, então com 29 anos, foi brutalmente
assassinado numa emboscada na estrada que liga a cidade de Pau Brasil ao
arremedo de aldeia que criaram após as invasões nas imediações da Fazenda
São Lucas. Cravim era líder dos hã-hã-hãe. “O João morreu pela mão dos
fazendeiros. Está tudo do mesmo jeito, sem ninguém pagar pelo crime”,
protesta Minervina.
Com as invasões após a morte de Galdino, os hã-hã-hãe têm hoje 18 mil
hectares, mas se tivessem mil viveriam igualmente na miséria. Produzem
feijão, mandioca, milho, abóbora, culturas plantadas de acordo com as fases
da lua. Criam porcos e galinhas. Não são assistidos pelo poder público.
Alguns recebem só o Bolsa-Família. Ajuda têm do Conselho Missionário
Indigenista.
Os pataxós estão com medo. Eles querem o direito a 54 mil hectares de terra,
mas têm ouvido que o governo de Jaques Wagner quer dividir esse desejo pela
metade. Os hã-hã-hãe teriam direito a mais 9 mil hectares. A outra metade,
27 mil hectares, ficaria com os fazendeiros. É uma luta que opõe 2.500
índios a 250 fazendeiros.
Sem pensão, filhos e netos de índio vivem na miséria
PAU BRASIL
A última imagem que as filhas têm do índio Galdino jamais existiu. “Só vi
ele passando queimado na TV”, diz Erlane, então com 9 anos. “Tava com minha
mãe e ela disse que aquele homem queimado era meu pai”, completa Taetê,
nascida dois anos antes da irmã. As duas viviam separadas do pataxó, com a
mãe, Carmelia Salustiano Jesus. Só a filha mais velha, Evanilza, vivia com o
pai.
Galdino hoje teria 10 netos. A mãe e as filhas nunca conseguiram receber
pensão alimentícia. A burocracia impediu, fazendo exigências como a cédula
de identidade do pataxó, que ele carregava quando estava em Brasília. A mãe,
Carmelia, passou um mês indo ao prédio da Funai, atrás do benefício. “Para
dar comida aos filhos, a gente tem de cortar banana e vender na feira”, diz
Taetê, que ganha o Bolsa-Família.
Os hã-hã-hãe foram expulsos por fazendeiros de suas terras em meados dos
anos 30. Partiram para Minas e Paraná. Misturaram-se aos não índios. Quando
Galdino vivia, poucos se arriscavam a voltar para Pau Brasil lutar pela
terra. “A morte dele despertou a união da comunidade”, diz o professor
Edilson Jesus de Souza, sobrinho de Galdino. “Não podemos deixar morrer
nossa história.”
Com a onda de ocupações, mais de 20 nos últimos dez anos, os “filhos e
netos” de Galdino voltaram a acreditar no direito à terra. “Se tivessem
coração, assinariam neste 21 de abril a nulidade dos títulos”, diz Yanawari,
irmã de Galdino. O Brasil, contudo, dá sinais de que já esqueceu da tragédia
dos pataxós hã-hã-hãe. E.N.