Publicada em 29 de abril de 2007
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Teresinha, de 49 anos, e Andreza, de 26, pertencem a duas gerações de
educadores, mas é como se tivessem estudado juntas desde a 1ª série até a
faculdade. A estréia como professoras, separada por um intervalo de 27 anos,
foi péssima. Sentiam-se despreparadas. Um sentimento que só foi aumentando.
Havia um abismo entre o que aprenderam e o que precisavam ensinar a seus
alunos. Das duas, uma: ou corriam atrás do conhecimento que faltava ou suas
aulas seriam um fiasco.
Muitos professores devem se reconhecer nas linhas acima. Eles são parte de
uma sociedade em que formar educadores é tarefa secundária por mais que
todos digam que educação é prioridade. Em 1996, o Brasil teve a chance de
ouro de avançar com a Lei de Diretrizes e Base (LDB). Uma das metas era
acabar com a figura do professor sem qualificação. Crianças de 0 a 10 anos
têm mais aulas com professores sem curso superior (676 mil) do que com
aqueles com diploma universitário (540 mil).
O resultado da chamada Década da Educação, de 1997 a 2007, é que ela foi
perdida. Em 2005, alunos das 4ª e 8ª séries e do 3º ano do ensino médio
sabiam bem menos português e matemática do que turmas formadas dez anos
antes.
À exceção dos abnegados, vai ser professor quem não teve condições de ser
engenheiro, médico, advogado. Grosso modo, é como se quem estuda nas escolas
públicas fosse cursar uma faculdade para ser professor, enquanto os
privilegiados de colégios particulares optassem por outras profissões.
Melhorar a educação passa por qualificar o professor, dizem especialistas
como o economista Claudio de Moura Castro. Por ser uma tarefa secundária, a
formação dos educadores cai num círculo vicioso. Um aluno que teve uma
educação básica de baixa qualidade e opta pelo magistério só com muita
dificuldade entrará numa universidade de primeira. Se entra, não acompanha.
Se não desiste, muda para um curso privado, ruim e caro. Quando retorna para
o ensino básico, agora como professor, ele constata que não aprendeu a dar
aula.
A professora de geografia Teresinha do Amaral Pancieri leciona da 8ª série
do ensino fundamental ao 3º do médio da Escola Estadual Professora Carmosina
Monteiro Vianna, na zona norte de São Paulo. Formada em 1979 pela Faculdade
Prof. Carlos Pasquale (hoje Unifieo), admite que começou dando disciplinas
medíocres. Isso a deixava deprimida. Chegou a querer lavar banheiro no
Nordeste em vez de continuar enganando a si mesma. Mas ela insistiu e saiu
desse redemoinho pessoal voltando à sala de aula.
A partir de 1994, Teresinha passou a cursar o maior número possível de
cursos de capacitação. Descobriu que o aluno não quer mais aula de giz e
lousa, de se distrair olhando a nuca do colega da frente. Ela optou por
introduzir temas polêmicos, despertando o interesse da classe. Para falar de
crescimento populacional, por que não incluir temas da gravidez na
adolescência ou do aborto? “Sou meio Tiradentes, se dez vidas tivesse, dez
vidas daria ao magistério”, diz Teresinha, que não compreende por que a
profissão não é valorizada.
A Secretaria de Educação paulista, como outras nos demais Estados, entendeu
que do jeito que as aulas estavam sendo dadas não poderia continuar. Nos
últimos quatro anos, mais de 85 mil educadores participaram dos cursos Teia
do Saber, fruto de parcerias com universidades. Um resultado evidente desse
tipo de capacitação é melhorar a auto-estima de professores como Teresinha e
a novata Andreza.
TEORIA E PRÁTICA
Há dois anos Andreza Briganó Reis se sente angustiada por saber que poderia
render mais. Mas como fazer isso na rede pública em turmas tão heterogêneas,
onde alguns alunos cumprem liberdade assistida porque cometeram delitos e
outros querem tudo menos estudar na Escola Estadual Doutor Justino Cardoso,
também na zona norte? Por mais que a pedagogia moderna tenha ensinado a ela
que cada um tem sua individualidade, não daria para adotar tal sistemática
numa sala com quase 40 estudantes.
Formada em Letras pela Universidade Estadual Paulista, onde aprendeu inglês,
italiano e espanhol, Andreza descobriu na prática que a faculdade não a
preparou para ser professora. “Nunca tive aula de gramática normativa, por
exemplo.” Não que ela precisasse, mas e se? “As aulas na universidade
pareciam voltadas só para quem quer seguir a área científica.”
O ensino superior forma dois tipos de professor. No caso dos pedagogos, dá a
eles formação repleta de teorias de ensino e muito pouco de conteúdo. E são
eles os principais responsáveis pelas aulas para crianças até a 4ª série do
ensino fundamental. Para quem vai trabalhar no magistério a partir da 5ª
série, a formação específica é como a de Andreza, não se mira num futuro
educador. Alguém que cursou a faculdade de Física, Química ou Matemática
aprende muita coisa, pode sonhar com um Prêmio Nobel, mas pouco sabe de
didática.
Nos dois casos, cursos de capacitação têm sido vendidos como a salvação da
lavoura educacional. É como gastar dinheiro duas vezes, nem sempre com bons
resultados. Se parar para pensar, surte mais efeito diretores e mesmo os
pais dos alunos cobrarem e estimularem os professores a dar melhores aulas e
a ensinar o que o estudante precisará. Meio óbvio, mas até o óbvio tem de
ser ensinado no Brasil.
Aulas são dadas sem cobrança
Menos de 10% das cidades brasileiras têm um plano de educação. Sem plano,
cabe ao professor a missão quixotesca de melhorar o ensino. Mas como fazer
isso com jornadas superiores a 12 horas diárias, trabalhando com até 400
crianças e escola que não motiva o profissional?, indaga Helena Costa Lopes
de Freitas, presidente da Associação Nacional pela Formação de Profissionais
da Educação.
Na última década, a expansão de matrículas de alunos na escola extrapolou a
formação de professores. “Temos três desafios a superar: não ter um sistema
nacional de formação profissional, milhares continuarem dando aula sem ter a
formação exigida e a contínua necessidade de formar professores”, diz o
secretário nacional de Educação Básica, Francisco das Chagas Fernandes.
Há várias formas para se tornar um professor da educação básica. Com a
inclusão da quase totalidade de crianças na escola, o que se viu foi a piora
nessa qualificação.Surgiram inúmeras faculdades de Pedagogia ou
licenciatura, cursos a distância e outros com aulas só de fim de semana. O
Ministério da Educação (MEC) fez vista grossa. A té hoje continuam formando
maus professores.
Na sala de aula, faltam metas de aprendizagem que sejam cobradas (pelas
direções das escolas) e cumpridas (pelos educadores). Se os estudantes vão
mal em exames como Prova Brasil, Saeb ou Enem, azar deles. E azar mesmo,
porque na sala de aula o aluno nem sempre aprende o que estaria previsto nas
disciplinas, como está escrito nos Parâmetros Curriculares Nacionais.
“O professor pega o livro didático e manda brasa. O currículo vira o samba
do crioulo doido”, critica Guiomar Namo de Mello, diretora do Núcleo de
Educação Escolar da Rádio e TV Cultura. “Há uma ausência de uma política
clara sobre qual é o currículo.” Segundo a educadora, deve-se começar a
exigir dos atuais professores que cumpram o mínimo: ensinar o que deve ser
ensinado em sala de aula.
Guiomar emenda outras propostas, algumas polêmicas, outras básicas. Ela
considera um erro que os futuros educadores até a 4ª série sejam formados em
Pedagogia. Eles não estariam preparados para dar aula. Os que se opõem a
essa idéia consideram que uma criança de 0 a 10 anos merece um cuidado
redobrado e um pedagogo foi lapidado para isso.
Polêmicas à parte, as outras sugestões de Guiomar passariam pelo MEC, que
teria de ser o grande indutor da melhoria na formação dos mestres. “Ninguém
controla ou cobra o professor formado. Por que não um ISO 9000 (padrão de
qualidade) para as escolas que formam educadores?”
Para chegar lá, ela cobra a criação do instituto nacional para formar
professores. Esses só dariam aula se dominassem os conteúdos que ensinam e
soubessem escrever e falar o português. Como o educador Darcy Ribeiro dizia:
“O português é o melhor termômetro da educação. Se ele vai mal, é porque
todo o ensino está péssimo.” E.N.
Gastos desiguais persistem
A União gastou R$ 521 milhões em ações para melhorar a formação do professor
no Brasil em 2006. Se fosse dividir a quantia entre os 2,6 milhões de
educadores, daria duas mensalidades do Bolsa-Família para cada um. Uma
ninharia.
Para chegar perto da meta de 100% de professores com formação superior, o
Ministério da Educação (MEC) criou programas como o Pró-Licenciatura. Serve
para os 164.789 que dão aula da 5ª série até o 3º ano do ensino médio sem
ter a licenciatura. Feito em parceria com Estados e municípios, prevê um
custo de R$ 20,8 milhões.
Já o Proinfantil foi instituído para quem trabalha na educação infantil, mas
não têm o ensino médio – o mínimo que a lei exige. Estima-se que sejam mais
de 37 mil professores em creches e pré-escolas nessas condições.
No Pró-Letramento, o MEC quer que professores façam com que os alunos leiam
e escrevam melhor e saibam fazer contas. Outro programa de formação
continuada e objetivos semelhantes é a Rede Nacional de Formação. Os dois
orçamentos somam R$ 9,5 milhões.
Para chegar aos rincões brasileiros, o governo aposta na Universidade Aberta
do Brasil. Para este ano, estão previstos 300 pólos (onde haverá aulas
presenciais), participação de 60 mil alunos e orçamento de R$ 200 milhões.
Entram nessa luta por formar melhores professores também os Estados e
municípios. Se há, então, uma cruzada nacional para aprimorar a formação de
quem educa, por que os resultados não aparecem?
Às explicações. O professor ganha mal. Salários baixos não atraem as
melhores cabeças. O governo quer criar um piso nacional de R$ 850 para uma
jornada de 40 horas semanais. De cada dez professores da rede pública,
quatro recebem menos que isso. O professor nem pensa em ir ao cinema ou
teatro e raramente compra livros. Fica dependente dos cursos de capacitação,
se a direção da escola inscrevê-lo.
Há uma dinheirama que deveria servir de compensação. É o Fundef, que em 2006
repassou a Estados e municípios entre R$ 682,60 e R$ 730,38 por aluno –
ainda que carimbado, há casos de desvios dos recursos e professor e escola
ficam sem nada. O fundo virou o Fundeb, que incluirá, além da educação
fundamental, o ensino infantil e médio. Vai aumentar de R$ 35,5 bilhões para
R$ 55,2 bilhões, em 2009, os recursos para 48,1 milhões de alunos (hoje são
30,2 milhões no fundamental). A Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais de Educação (Anfope) estimou que para uma escola de 500
alunos, jornada de 30 horas semanais e piso salarial de R$ 800, o custo por
estudante seria de R$ 1.134. O Fundeb repassará R$ R$ 946,29 para alunos de
1ª a 8ª séries das cidades.
Os gastos em educação no País são como uma pirâmide invertida. O Brasil
gasta proporcionalmente mais com o ensino do que a Coréia do Sul. Só que lá
para cada tostão utilizado na educação de crianças aplica-se menos do que o
dobro para o ensino superior. Aqui a proporção é de R$ 1 (ensino básico)
para R$ 14 (superior).
Exigir e praticar educação básica de qualidade seria uma saída. Professores
dando melhores aulas representariam alunos com mais conhecimento que
virariam futuros educadores ainda mais preparados. Alguns deles dariam
ótimos professores.E.N.