O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Há um ano, trabalhadores estremeciam só de ouvir falar em férias coletivas. Hoje, suplicam por elas. Os últimos meses no chão de fábrica foram de moer. A produção de carros parece não dar conta das vendas e sobra mais trabalho para os metalúrgicos. Só que, gatos escaldados, eles não reclamam. Bem melhor assim do que viver sob o fantasma do desemprego. “O peão reclama sempre: se está parado, se vai parar ou está trabalhando demais”, zomba de sua própria sina o pintor Helio Paggi. Funcionário da General Motors, a GM, ele se diverte ao comparar o Brasil do fim de 2008 com o deste ano. São dois países diferentes.
Quando a crise financeira internacional estourou, no último trimestre de 2008, economistas se apressaram em antever o pior dos mundos. O Brasil não seria exceção. O setor industrial em geral sentiu o baque e pisou no freio. As montadoras, que vinham num ritmo frenético, decidiram segurar a produção, temendo um contágio do pessimismo entre os consumidores. Os três turnos das fábricas viraram dois. Já em novembro, os trabalhadores entraram em férias coletivas a contragosto. Ou foram demitidos.
Paggi, que mal sabia fritar ovos, virou cozinheiro da família, passava as horas na internet ou pescava com os amigos. Mas o pior veio quando o filho, também funcionário da GM, chegou em casa avisando: “Pai, acabou o terceiro turno.” Aquilo era um mau sinal. Cancelou a viagem para o sul do País, onde era tradição visitar os parentes. “Em 22 anos, foi o primeiro Natal que passei em Santo André.” Esse era o Brasil que entrava na crise, que desempregava milhares de trabalhadores e fazia a economia se retrair.
Depois de quatro meses na incerteza, gastando o banco de horas, os metalúrgicos voltaram às fábricas. “Somos trabalhadores flexíveis, saímos de férias sem causar problemas à empresa e quando nos chamaram de volta, já entramos a todo vapor.” A crise ainda rondava, mas a decisão do governo de reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para carros surtiu efeitos positivos. A GM chegou a outubro com 299 mil unidades produzidas. Só faltariam mil veículos para atingir a meta anual e os trabalhadores receberem a participação nos lucros: mais R$ 8 mil.
No ano passado, o bônus veio pela metade, o que forçou Josenildo Bezerra, de 32 anos, a desistir de comprar um apartamento. Desconfia que sua noiva não tenha gostado, mas entendeu. “Não tinha segurança para dar um salto grande. Hoje estou confiante, mas claro que com medo de uma crise voltar.” Cauteloso, resolveu comprar um terreno em Mauá para erguer uma casinha. E voltou a frequentar a faculdade de tecnologia e mecatrônica.
Já Odair Rogerio, de 52 anos, planejava concluir a reforma de sua casa nas férias. Mas conforme as notícias iam ficando piores, pisou no freio. Com medo de gastar demais e faltar depois, comprou uma tinta barata para fazer uma pintura “meia-boca”. “Agora vou retomar refazendo um serviço de primeira”, garante. O problema, contudo, será a falta de tempo e a coluna que não anda boa. De tanto flexionar o corpo na pintura dos automóveis, ele precisou parar uma semana no fim de novembro para fazer fisioterapia.
O Brasil de hoje é outro. A produção na montadora vai de vento em popa e só não está melhor por causa do apagão de 10 de novembro e de um problema de manutenção. No mês passado, a fábrica trabalhava para recuperar um atraso de quase 900 carros. O sindicato dos metalúrgicos vivia uma cena surreal, um ano depois das férias coletivas. Do carro de som no pátio da GM, sindicalistas diziam ser contra o aumento de 42 minutos para o turno da noite. Há quatro meses, os metalúrgicos fazem uma hora extra por dia e trabalham sábado sim, outro não. Hoje, por hora, a empresa produz 53 carros – há cinco anos, a média era de 38.
O pátio em São Caetano será o único da GM a parar a partir de amanhã até 13 de janeiro – em Gravataí (RS) e em São José dos Campos, a produção segue sem folga. Será apenas uma parada técnica para uma readequação na linha de montagem para produzir ainda mais carros – o objetivo é chegar a 60 carros por hora. O Corsa Classic será todo produzido no ABC paulista, inclusive os modelos remodelados, e novos veículos estão a caminho. O sindicato reivindica a criação do terceiro turno, uma forma de recontratar 1.650 metalúrgicos, cujos contratos foram encerrados e não renovados na crise. Até agora, 250 novos trabalhadores ingressaram na empresa, inclusive o filho de Helio Paggi.
Em 2008, quando tudo corria bem, Jair Nery de Andrade fazia planos para visitar o Nordeste. A mulher, Jeanne, queria rever os parentes. Ele comprou um pacote para o fim de ano e já tinha pago até a segunda prestação. Aí veio a crise e o Natal e réveillon foram mesmo no bairro do Itaussu, em Mauá. Foi uma festa alegre, mas o temor do desemprego não saía de sua cabeça. Este ano vai ser diferente. Faz segredo, mas quer presentear a mulher e o filho com coisas boas. “Quero ir comprar umas lembranças, só que não tenho é tempo.”
Paggi comprou uma geladeira e uma máquina de lavar, aproveitando a redução de IPI para a linha branca. “Hoje teria dinheiro para trocar de carro, mas no ano passado não dava nem para pensar em ter uma geladeira.” Josenildo comprou, à vista, uma TV LCD de 32 polegadas, uma geladeira inox e fez a cobertura da casa de sua mãe. “Essa crise me ensinou a economizar e dar valor ao trabalho.”
Há um ano, a reportagem do Estado mostrou a apreensão desses mesmos metalúrgicos. De todos os entrevistados, apenas Fabiano Pacheco, de 24 anos, não retornou à montadora. Nas férias coletivas, teve a infelicidade de machucar o joelho e ficou afastado pelo INSS por seis meses. Tempo demais. A empresa começou a chamar os funcionários do antigo terceiro turno, Pacheco entre eles. Recém-operado, ele perdeu a chance de voltar ao emprego de seus sonhos.
“Já mandei o currículo, os amigos estão falando do meu nome lá, mas não me chamam.” Para tocar a vida, arrumou um bico de motorista de um supermercado, vendeu o carro já bem sambado, sua mulher, Luciene, começou a trabalhar de diarista e a irmã passou a cuidar do filho Kauan. “Queria só uma chance para eles poderem fazer um exame e ver que está tudo bem comigo.”
A expectativa unânime dos entrevistados é fechar 2009 com chave de ouro, atingindo metas, e voltar à fábrica em 2010 a todo vapor. “Eu não votei no Lula, como muitos aqui, mas esse governo levou as coisas muito a sério, e o povo brasileiro acreditou nele”, diz Paggi.
“Foi o pior momento que vivi em 25 anos de Embraer”, confessa o diretor-presidente, Frederico Curado, ao lembrar da decisão de cortar, de uma só vez, 4.273 trabalhadores. Alguns eram seus amigos. Muitos haviam sido contratados em sua gestão. Mas, em fevereiro, ele precisou optar entre demitir ou por em risco a própria companhia. “Fomos atropelados por uma crise, um tsunami global. Felizmente, ela passou rápido pelo Brasil e poucos foram tão afetados quanto nós.”
De cada dez aviões que produz, a empresa exporta nove. De uma hora para outra, o mercado externo parou de comprar aeronaves.
Quando uma empresa como a Embraer decide demitir, uma cidade inteira parece entrar na lista de corte. O sofrimento se irradia pelas casas, pelo comércio, por toda uma economia. Em São José dos Campos, um município de quase 600 mil habitantes, o desalento persiste com a constatação de que a companhia não se recuperará em 2010. Funcionários demitidos vão ver o Brasil crescer já sabendo que a empresa não tem planos de contratação e a receita deve cair cerca de 10%.
Este ano, a companhia fechou com receita de US$ 5,5 bilhões. Nessa soma já está incluído o recorde de US$ 500 milhões em vendas para o mercado interno. Foram 36 aviões para a Azul e 5 para a Trip. Mas as vendas foram insuficientes para contrapor às exportações em queda. No total, serão entregues 130 aviões de porte maior e 100 de pequeno porte. “Estamos menores, mas com a mesma integridade, preservando a capacidade tecnológica, a motivação das pessoas e a saúde financeira”, diz Curado.
Para o funcionário Herbert Claros da Silva, vice-presidente do sindicato dos metalúrgicos de São José dos Campos, a Embraer cortou, ao longo do ano, mais que os 4.273 trabalhadores. “Foi no estilo conta-gotas, instaurando o medo entre todos.” Os que ficaram, diz Silva, acabam cobrindo o trabalho dos que se foram com horas extras ininterruptas e estafantes.
AUMENTO REAL
A crise já é uma imagem desfocada em Volta Redonda (RJ). Tanto que o sindicato voltou à velha pauta da categoria: a briga por reajuste real. No auge da crise, empresas como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Votorantim e Peugeot concederam aumentos pela inflação e os trabalhadores se deram por satisfeitos. Só a CSN havia demitido cerca de 1,3 mil funcionários e a única função do sindicato parecia, àquela altura, homologar rescisões. Hoje, mais de 70% deles foram recontratados.
“Passei um inferno astral, era como um filme de terror”, diz o presidente do Sindicato de Metalúrgicos da Região Sul Fluminense, Renato Ramos. Morador de um bairro operário, Ramos chegava em casa depois de um dia de derrotas e via pais e filhos voltando para casa dispensados. “Se o País não tivesse agido rápido, teria sido catastrófico. O governo salvou muitos postos de trabalho.” E.N.