A dura vida dos superdotados

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Revista CRESCER

Em um mundo com tantos estímulos e informação, quem não se pega confuso sobre o nível de habilidades das crianças de hoje, não? Mas quando o assunto é um filho superdotado, há diagnóstico, características particulares e, infelizmente, preconceito. Aqui, o que você precisa saber sobre o assunto

[dropcap type=”circle” color=”#ffffff” background=”#555555″]”S[/dropcap]a-ci Pe-re-rê!”. Os colegas de Lucas nem notaram que ele acabara de ler um cartaz no corredor. Já a professora, Marina de Almeida Grosso, levou um susto. Tudo bem se fosse um aluno de uma ou duas turmas seguintes, mas não uma criança matriculada no Jardim 1, com estudantes de 2 e 3 anos de idade, que poucas semanas antes estreava em sala de aula. Ao matriculá-lo, no começo de 2011, os publicitários Sheila Ferrari e César Utimura tinham informado que seu filho também já começava a escrever poucas palavras. Em casa, ligava o computador e digitava “jogos carros” no YouTube. No iPad, idem. Aos 2 anos, fazia contas básicas e sabia cantar a música do abecedê em português e inglês. As tarefas eram encaradas como brincadeiras, mas a coordenadora da escola, Gislene Naxara, convenceu a mãe a procurar um núcleo para altas habilidades. Em 25 anos de educação infantil, ela não testemunhara nada parecido.
Precoce, talentoso, gênio, prodígio, superdotado. Adjetivos muito conhecidos, mas de difícil compreensão – até porque eles têm significados distintos (entenda mais no quadro a seguir). “Ficamos muito felizes e, ao mesmo tempo, preocupados que ele fosse visto como diferente, e sofresse com isso”, explica Sheila. A psicóloga Christina Cupertino, coordenadora do Núcleo Paulista de Altas Habilidades (SP), reconheceu em Lucas as características de um superdotado. Tanto que aconselhou aos pais a esperarem mais alguns anos para fazer um teste de avaliação. Não havia motivo para pressa. A escola já o reconhecia assim e decidiu enriquecer as atividades dele. “Quando caiu a ficha, de fato não estávamos preparados. Tínhamos medo de que ele se tornasse um pequeno adulto”, continua a mãe, que sabe que, com o passar do tempo, seu filho terá de enfrentar outros adjetivos que certamente virão: bitolado, testa de ferro, nerd, estranho, hiperativo.
O PREPARO NAS ESCOLAS
Crianças talentosas como Lucas são precoces, apresentam muita vontade de aprender, progridem mais rápido que as outras da mesma idade e têm enorme aptidão em uma ou mais habilidades intelectual, artística ou corporal. São intensos, perseverantes, e, muitas vezes, introvertidos. Mas não são super-heróis com capacidades excepcionais. Pode ser aquele menino que se desinteressa rapidamente por uma atividade ou aula, perfeccionista e detalhista (não raras vezes esta atitude é confundida com manha, birra e até arrogância).
A terapeuta corporal Florangel Marquez teve de trocar três vezes o filho Gabriel de escola. Ela era chamada por diretores porque o garoto ficava zanzando em sala de aula e se irritava rapidamente com as atividades. Recomendaram psicólogos. Ela consultou três e os diagnósticos não batiam. Em casa, Florangel sentia que era apenas mãe de um doce de criança, mas os relatos que ouvia dos professores era o de um péssimo e mal comportado aluno. Essa história mudou quando foi feito o teste da Associação Paulista para as Altas Habilidades e Superdotação (Apahsd), que avaliou o quociente de inteligência (QI) e seu perfil psicológico. Gabriel era superdotado. Florangel matriculou seu filho, na época com 6 anos, em uma escola que propôs sua aceleração, isto é, que saltasse de série. Hoje, aos 10, ele está dois anos à frente de sua turma original, e a instituição solicitou junto do Conselho Estadual de Educação que ele permaneça nessa condição especial. Sua irmã Camila, de 8, também identificada como superdotada, está um ano adiantada. Ainda assim, a decisão de pular séries deve ser tomada com cuidado. Além de observar o desenvolvimento intelectual da criança, é necessário levar em conta se ela está socialmente bem. Colocá-la em uma sala com colegas com os quais não está emocionalmente madura para conviver tmabém não resolve a questão.
QUANTO A FAMÍLIA CONTA
A Organização Mundial da Saúde estima que 5% da população do Brasil é constituída por pessoas com superdotação ou altas habilidades: quase dez milhões. Segundo Daniel Fuentes, diretor do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (SP), não há um conjunto específico de genes que explicam a inteligência acima da média de uma pessoa. Além disso, as condições neurobiológicas, que envolvem a gestação, a alimentação desde os primeiros anos da criança e o ambiente em que ela cresce, também são fatores decisivos.
Em artigo publicado em 2006 na revista Nature, o psiquiatra Philip Shaw, do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, descobriu que o nível de inteligência está associado à trajetória da mudança na espessura do córtex cerebral e que nas crianças mais inteligentes essa região do cérebro é especialmente mais ágil. Contudo, o estudo também mostrou que as expressões de inteligência nesse órgão são dinâmicas e mudam de lugar de pessoa para pessoa. No atual estágio das pesquisas sobre o genoma humano, não há explicações de quando uma criança é ou não superdotada. Talvez nunca se chegue a esse tipo de conhecimento científico.
Mas o que já se sabe é que em ambientes enriquecidos e estimulantes, na casa e nas escolas, as altas habilidades se desenvolvem mais. É preciso dar amor, carinho e atenção, estímulos adequados, sem pressão e com muita criatividade, incentivar a leitura e apresentar uma diversidade de atividades que deem prazer à criança. Segundo dois renomados estudiosos, os norte-americanos Judy Galbraith, que fundou uma editora voltada para esse público, e Jim Delisle, professor recém-aposentado da Kent State University, isso é fundamental para que não ocorra o desuso das habilidades e até a sua estagnação. Às vezes, um mau comportamento pode ser fruto de uma frustração intelectual e não de uma desordem emocional da criança.
Muitos pais subestimam as habilidades dos filhos, enquanto outros as superestimam demais. “Tem pai que só quer saber se seu filho é superdotado para exibi-lo como um troféu”, alerta a psicóloga Eunice Soriano de Alencar, professora emérita da Universidade de Brasília. Segundo ela, não é raro ver casos de famílias que ao se depararem com a precocidade passam a sobrecarregar os filhos com múltiplas atividades. Isso pode resultar em crianças desengajadas, deprimidas e ressentidas. É fundamental, segundo a especialista, encontrar uma escola que auxilie no desenvolvimento do pequeno talento da família. “Muitos países querem educar essas crianças nas escolas normais, mas para isso funcionar precisamos assegurar que os professores estejam preparados para trabalhar com elas”, afirmou à CRESCER o pesquisador Nicholas Colangelo, professor de educação de superdotados da Universidade de Iowa. Nos Estados Unidos, há diversos centros de estudos para a superdotação que trabalham para formar educadores especializados. “No Brasil, tenho certeza de que não há dúvida sobre o reconhecimento do talento esportivo, mas não sei se isso vale para a habilidade intelectual”, diz Colangelo. Um educador sensível faz a diferença. Ele pode, por exemplo, permitir que um superdotado se expresse livremente e consiga falar de suas dificuldades, temores e preocupações.
DIAS DE LUTA
De fato, é muito recente a preocupação do Ministério da Educação com os superdotados. Foi só a partir da Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, que se previu a aceleração de série ou o enriquecimento curricular como as duas formais mais adequadas para atender a esse público. Deveria ser uma decisão dos pais e da escola, mas ela nem sempre vem sendo respeitada. São Paulo, que possui a maior rede escolar do país, tem obrigado alunos com altas habilidades que já estavam aceleradas a voltarem para a série correspondente à idade. Para a Secretaria da Educação, a melhor solução para essa criança é o enriquecimento curricular e o aprofundamento dos estudos, porque permite respeitar “o nível, o ritmo e o estilo de aprendizagem e os interesses de cada estudante”.
Ana Lucia Pires Fanganiello, dona de uma escola em São Paulo, entrou com um mandado de segurança para garantir que seu filho mais velho, Lucca, 7, pudesse permanecer em série acelerada – desde os 4 ele já lia Harry Potter. A juíza afirmou que compreendia o drama da família, mas indeferiu a ação por se sentir incapaz de julgá-la. No fim do ano passado, a Diretoria de Ensino pressionou Ana Lucia para cadastrar a criança no 1º ano, embora ele já tivesse cursado a série seguinte. “Saí chorando da reunião, mas aceitei a pressão para não correr risco de prejudicar todos os estudantes da minha escola. Não queria corrrer o risco de ser descredenciada por não acatar a imposição da Secretaria de Educação.” A mãe teme que Matteo, de 5, que ainda não fez a avaliação para superdotação, também siga os passos do irmão Lucca. Teria de assumir uma briga em dose dupla.
A assessora jurídica do Núcleo Paulista de Atenção à Superdotação, Claudia Hakim, já entrou com 155 mandados de segurança e obteve liminares para que crianças com altas habilidades permanecessem na série acelerada. Sua luta começou com o filho Rafael, de 9 anos. O menino estuda numa escola trilíngue e está dois anos adiantado. “A Secretaria de Educação se recusa a ver os laudos, nem sabe quem são essas crianças. É um descaso total.” A secretaria informa que há 1.020 alunos superdotados na rede estadual e orienta que eles participem de concursos, olimpíadas escolares e programas de enriquecimento curricular. “Existe uma distância enorme entre o que manda a lei federal e a prática”, sentencia Cristina Delou, psicóloga e presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (Conbrasd). Apenas 13 estados têm leis próprias que tratam da questão, como Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Paraná. A falta de regulamentação leva ao desconhecimento, o que faz com que escola e professores não se vejam na obrigação de atender de forma diferenciada essas crianças. Segundo ela, os modelos teóricos de educação estão ultrapassados. Se os professores já não dão conta de atender a essa nova geração de nativos digitais, imagine a situação dos superdotados? “O que está por trás do não reconhecimento dessas crianças é o preconceito. As pessoas se sentem inseguras diante das que se mostram mais habilidosas”, diz Cristina Delou.
Mas o futuro pode nos fazer mudar. O pesquisador americano naturalizado neozelandês James Flynn, da Universidade de Otago, tem constatado uma elevação do QI na população mundial desde os anos 1980. Em seus estudos, verificou que a cada geração de 30 anos, há um aumento médio de 20 pontos. Isso não significa que em pouco tempo o planeta será formado apenas de superdotados, prodígios e gênios, mas que outros indicadores devem ser levados em conta para testar a inteligência neste século 21. Flynn entende que mudanças sociais e ambientais têm provocado esse fenômeno, o que só aumenta a importância da família e da escola em reconhecer e atender às necessidades das novas gerações, superdotadas ou não.
Os portadores de altas habilidades ainda correm riscos de que seu comportamento diferenciado ganhe um diagnóstico de hiperatividade. A auxiliar de cozinha Luzia Ribeiro dos Santos é mãe de cinco filhos, incluindo Carlos, de 10 e desde os 5 avaliado como superdotado. Segundo a mãe, a escola municipal que estuda, na periferia de São Paulo, já enviou o menino para hospitais públicos e psiquiatras, que receitaram ritalina (medicamento para tratar casos de déficit de atenção com hiperatividade), tofranil (antidepressivo), carbamazepina (anticonvulsivante) e neuleptil (contra surtos psicóticos). “Meu filho está ficando dopado”, desabafa a mãe. No exame que o reconheceu como superdotado, Carlos apresentou sete altas habilidades e duas dentro da média dos meninos de sua idade. Segundo Ada Toscanini, presidente da Apahsd, metade das crianças chega à associação diagnosticada com déficit de atenção.
Uma última questão nesse quadro complicado que permeia os superdotados: o lado emocional. Da série norte-americana de sucesso The Big Bang Theory a dezenas de filmes, novelas ou outros seriados que abordam o assunto, o fantasma do preconceito de que os superdotados não sejam “bons de relacionamento” sempre impera. O fato é que eles demandam muito mais que a média das outras crianças e não raras vezes se sentem incompreendidos. “Quando isso acontece, podem, sim, ter um tipo de comportamento que não agrade ao restante da comunidade em que vive, mas isso seria consequência das demandas não-atendidas ou reprimidas”, afirma Cristina Delou. Aí surgem as dificuldades de relacionamento com as crianças da mesma idade (não é à toa que elas costumam se adaptar bem nas turmas avançadas ou com gente mais velha), soam arrogantes, tendem ao exagero nas questões do perfeccionismo, não aceitam facilmente as críticas dos outros, são questionadores de regras e convenções que lhes parecem, digamos, desmedidas, podem se tornar rebeldes e agressivos, caso sejam tratadas sem respeito. Assim, o recado está claro: precisamos aprender a lidar com as diferenças e, claro, ensinar as crianças em qualquer condição a fazer o mesmo.

CARACTERÍSTICAS DE UM SUPERDOTADO
Capacidade intelectual geral Tem curiosidade intelectual, rapidez de pensamento, compreensão e memória elevadas, e é muito observador.
Aptidão acadêmica específica Apresenta desempenho escolar excepcional, tem alta concentração e motivação por algumas disciplinas.
Pensamento criativo ou produtivo É imaginativo, propõe soluções diferentes e inovadoras e vê os problemas de diferentes perspectivas.
Capacidade de liderança Adota uma atitude cooperativa, resolve situações sociais complexas, tem poder de persuasão e influência o grupo.
Talento especial para artes Demonstra habilidades muito acima da média em artes plásticas, musicais, dramáticas, literárias ou cênicas.
Capacidade psicomotora Talentoso em esportes e atividades físicas, apresentando velocidade, movimentos ágeis, força, resistência, e controle.
Fonte: “Diretrizes gerais para o atendimento educacional aos alunos portadores de altas habilidades/superdotação e talentos”, MEC

AS DIFERENÇAS NOS CONCEITOS
Prodígio, gênio, superdotado… Apesar de, muitas vezes, serem usados com a mesma finalidade, esses termos não são sinônimos. entenda mais sobre cada um deles
Precoce é a criança com uma ou mais habilidades desenvolvidas prematuramente. É o caso de Picasso que, com 8 anos, pintou sua primeira obra. prodígio é uma criança precoce que apresenta um desempenho comparável ao de um adulto. mozart, aos 7 anos, compunha e se apresentava em salões.
Gênio é aquele que deu contribuições originais e de grande valor à humanidade, como Pelé.
Superdotado possui habilidades superiores a de seus pares na área intelectual, artística, social ou corporal. Bill Gates, o fundador da microsoft é um deles.
Fonte: “Altas Habilidades/superdotação/encorajando Potenciais”, MEC

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