Publicada em 4/3/2008
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
ENVIADO ESPECIAL
TOMÉ-AÇU (PA)
Quem chega em Tomé Açu, no Pará, se impressiona com a quantidade de madeireiras e carvoarias ao longo da estrada esburacada. É a crônica da destruição amazônica. Um grupo de agricultores se revolta, mas o faz em silêncio. Japoneses e descendentes costumam agir assim, pouco afeitos a brigas e mais dispostos a pegar na enxada. Se nos anos mais adversos da 2ª Guerra sobreviveram, por que seria diferente agora?
A terceira maior colônia japonesa no Brasil, em proporção de habitantes, fica no Pará. Só atrás de São Paulo e Paraná. Nas longínquas terras amazônicas, são produtivos agricultores. Introduziram culturas como pimenta-do-reino, acerola, mamão havaí, melão e mangustão. Em Tomé-Açu, quase uma ilha onde é mais fácil escoar madeira pelos rios do que frutas e especiarias pelas rodovias, o jeito foi ser criativo. Um dia, o colono Watanabe Imaki teve a idéia de congelar a polpa da fruta para vendê-la a mercados do Sudeste e Sul. A técnica nasceu entre esses japoneses.
O nissei Seiya Takaki, de 49 anos, não é um ambientalista, mas um produtor rural que defende a floresta em pé o mais que pode. Dono de 1.100 hectares que juntou pacientemente comprando lotes de 25 hectares de patrícios, ele mostra uma de suas propriedades. Faz questão de apontar as castanheiras frondosas com mais de 30 anos. Ou os pés de mogno, jatobá, cumaru, seringueiras e ipês, estes mais recentes. Ele faz o inverso do que os madeireiros fazem. Takaki planta as árvores amazônicas e, abaixo delas, vai consorciando outras espécies, como pimenta-do-reino, cacau, cupuaçu, maracujá. São o sustento da família.
Só que esses princípios que unem trabalho, prosperidade e harmonia com a natureza, que os nikkeis tanto prezam, estão ameaçados pelos sem-tora – invasores de terras que viram assentados e depois exploram a rentável madeira da Amazônia. Depois de sofrer tentativas de invasões, os nipo-brasileiros recorreram à Cooperativa Agrícola de Tomé-Açu, que se sente de mãos atadas. O governo estadual não dá sinais de que está do lado deles. “Só existe invasão quando é por madeira ou terra nobre. O nosso solo é pobre, mas a madeira que preservamos vale ouro”, protesta o issei Mitsuharu
Onuki, presidente da cooperativa.
Esqueça frases do gênero “Tomé-Açu é um cartão postal do Japão”. É um exagero dizer isso de pouco mais de 300 famílias de nikkeis. A cidade de mais de 60 mil habitantes tem uma maioria de nordestinos e capixabas. Os descendentes se concentram em Quatro Bocas, distrito do município e próximo das propriedades que mantêm há quase 80 anos. Lá está também a cooperativa, o oterá (templo budista), o gakko (escola) e o campo de golfe. Sem falar no supermercado, ponto de encontro para os agricultores. Nas manhãs de sextas-feiras, os homens levam as mulheres, que fazem as compras, e eles ficam batendo papo. Em japonês.
Como em outras colônias nipônicas, o idioma só é corrente entre os mais velhos. Tomé-Açu leva uma pequena vantagem, já que ainda há uma maioria de isseis e nisseis (japoneses e filhos de). Os pais ainda fazem questão de mandar a criançada para o curso de japonês, mas sem os ditchan e batchan (avôs e avós) em casa, o aprendizado mais difícil. “Os tomodati (as crianças) têm aulas duas vezes por semana. Entre uma classe e outra, já esqueceram muita coisa”, explica a nissei Lucia Arisa Ito Matsuzaki, de 29 anos, professora de nihongo.
PIONEIRO
Hajime Yamada, de 80 anos, chegou aos 2, na primeira leva de 43 famílias de imigrantes, 187 japoneses a bordo do navio Montevideu Maru. Vindo de Hiroshima com os pais, lembra da chegada ao Brasil, um 7 de Setembro. Achou que aquelas festividades eram para eles, uma espécie de boas-vindas. Àquela altura, a independência de vencer numa região inóspita, quente e cheia de mato, era um sonho distante.
Nos anos 1920, o Japão percebeu o colapso inevitável de suas colônias agrícolas em Taiwan, na Coréia e na Manchúria. Elas eram mantidas à força, dali bom fruto não sairia. E havia a necessidade de exportar japoneses. Uma expedição se embrenhou na Amazônia. Encontrou terras promissoras e uma boa receptividade do lado brasileiro. O governo do Pará doou à colônia 500 mil hectares no então município de Acará, hoje Tomé-Açu. Entre 1929 e 1935, mais de 600 famílias foram trazidas. Nos primeiros anos, viviam reclusos nas fazendas. Adoeciam, perdiam colheitas de cacau, tentavam outras espécies e as dificuldades só aumentavam.
“Até os 20 anos minha vida era só na lavoura, sofri muitas doenças, algumas malárias, tudo era difícil. Para construir um dique, levamos um ano”, lembra Yamada, que hoje faz as vezes de bonsan, o sacerdote que reza as missas no templo. Viúvo, ele sabe que se ninguém assumir essa função, como seu pai já assumiu no passado, a comunidade começa a perder os vínculos. Dos seis filhos que teve com a mulher Toyoie, três estão vivos, mas só um mora ele, na casa de madeira que resiste ao tempo.
Com as adversidades, muitas famílias desistiram da Amazônia, migraram para São Paulo, onde as notícias eram de que os japoneses estariam até arrendando sítios. Durante a 2ª Guerra, Tomé-Açu virou terra para teimosos, sem uma cultura que deslanchasse a economia. Não havia qualquer tipo de comunicação, nem estradas – o asfalto só chegou há cinco anos. Para se chegar a Belém, só de barco, uma viagem de dois a três dias. As escolas das crianças ficavam escondidas, nas casas. Funcionavam em esquema de rodízio, para fugir da repressão aos estrangeiros. “A cidade sempre foi isolada. Sem a união dos nihonjin, que vieram com coragem, não teríamos o que temos hoje”, diz o nissei Michonori Konagano, secretário municipal de agricultura.
A sorte da colônia começou a mudar por causa de uma fatalidade. Uma japonesa morreu a bordo de um navio de imigração, em 1933. A viagem foi interrompida com uma parada em Cingapura. Lá o chefe da embarcação, Makinoske Ussui, comprou 20 mudas da pimenta-do-reino. Em Tomé-Açu, ele as distribuiu às famílias, mas só duas plantas vingaram. Duas que fizeram, anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, a cidade se tornar o maior produtor mundial. Virou o diamante negro da Amazônia. Foi a virada econômica, fruto da persistência, da paciência oriental e de uma vida que valoriza o bem coletivo.
Novas levas de imigrantes aportaram. Incluindo alemães e italianos, com o fim do conflito mundial. Na cabeça do Estado, era melhor isolar os imigrantes numa cidade de difícil acesso como Tomé-Açu. Mas quem estava lá só queria produzir. Os colonos nipônicos perceberam que para deslanchar a economia da cidade, era preciso trazer mais patrícios. Nos anos 1970, retomaram o plantio de cacau, que levou algum tempo para se firmar. E aí vieram outros cultivos, dos quais os agricultores nikkeis se tornaram pioneiros no País. Hoje, possuem duas fábricas de polpas, um dos negócios
mais rentáveis, com a produção concentrada no açaí para exportação. E a cidade voltou a ser, ainda, o maior produtor mundial de pimenta-do-reino.
Os ciclos da pimenta-do-reino e do cacau impulsionaram uma região que podia figurar apenas como outras tantas do sul do Pará, com altas taxas de desmatamento. Em vez disso, trouxeram também benefícios a todos, como o hospital nipo-brasileiro, que completou 20 anos – 70% dele foi bancado pela colônia. As famílias foram crescendo e migraram também para cidades vizinhas, como Santa Isabel e Castanhal – em todo o Pará, são quase 55 mil nikkeis. Os mais jovens, em busca de uma formação superior, migraram para a capital. Nos anos 1990, quase 400 pessoas abandonaram Tomé-Açu com destino ao Japão. Viraram dekasseguis. Poucos, muitos poucos , retornaram.