Publicada em 12 de março de 1997
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
O movimento Fórum de Cortiços de São Paulo definiu 1997 como o ano decisivo para
pressionar os governantes. A principal reivindicação do movimento é obter
moradias para as cerca de 160 mil famílias que vivem hoje em cortiços. Uma das
estratégias é a ocupação de prédios e terrenos públicos abandonados, muitos
deles já na mira dos encortiçados (veja ilustração nesta página).
No domingo, cerca de 300 famílias ocuparam quatro casarões do governo estadual
na Alameda Cleveland, em Campos Elísios. O movimento começou a ganhar força a
partir de maio do ano passado estimulado pelo próprio Estado, que patrocinou o
Fórum da Cidadania dos Cortiços. A partir do evento, os encortiçados ganharam
estímulo para organizar-se.
Na fase atual, o movimento centraliza a pressão no governo estadual, justamente
porque, no fórum oficial, os encortiçados descobriram que a Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), da Secretaria de Habitação do
Estado, tinha projetos nessa área.
“Manipulação” – Opresidente da CDHU, Goro Hama, disse que não tem intenção de
ceder à pressão. “O Fórum não fala, até porque não tem boca”, afirmou. Segundo
ele, há “manipulação política” do movimento. “O programa estadual é mais amplo
e não feito para uma meia dúzia. ” Hama afirmou que a Prefeitura poderia ser uma
boa parceira nessa questão.
O movimento tende a crescer, na opinião de sua líder, Verônica Kroll, de 36
anos. Ela garante que novas ocupações podem ocorrer. “Tem muitos lugares na
cidade que estão abandonados há anos”, afirmou. “Mas a ocupação é o último dos
recursos”, ressaltou.
A organização também começa a ganhar sofisticação: mapeamento de novos
terrenos, criação de cadastros de interessados, apoio a moradores que estejam
sofrendo ações de despejo e ajuda aos mais carentes. Rntidades religiosas
apóiam o movimento, fornecendo até alimentos.
Modelo – O espelho dos encortiçados é o Movimento dos Sem-Terra (MST). “O
processo é o mesmo”, afirmou Verônica. “Um movimento vai puxando o outro”,
disse Lisete Gomes das Neves, de 29 anos, coordenadora do Fórum de Cortiços,
que também faz parte do MST.
Os encortiçados chegam até a comprar alimentos produzidos pelo MST e alguns de
seus líderes visitam locais ocupados ou invadidos pelos sem-terra. Uma
diferença entre eles é a falta de estrutura financeira do Fórum dos Cortiços.
“Hoje, gastamos os últimos R$ 40,00 que tínhamos”, afirmou Verônica.
O Fórum de Cortiços engloba movimentos locais. Bairros como Bela Vista,
Liberdade, Brás, Barra Funda, Bom Retiro, Campos Elísios, Ipiranga e Vila
Formosa já possuem organizações de encortiçados.
A secretária Ana Cristina Rodrigues Gomes, de 29 anos, coordenadora da Pastoral
de Moradia da Bela Vista, recebeu convite em novembro do ano passado para
integrar o fórum e já se mostra animada com os resultados. “Não existia
organização antes porque não tínhamos o que oferecer aos encortiçados”, disse.
Movimento tem direção feminina
“Acho que eles são mais tímidos”, arrisca Lisete Gomes das Neves, de 29 anos,
uma das coordenadoras do movimento. “A mulher, por mais que seja sensível
emocionalmente, sempre pensa em sua família e vai à luta”, interpreta Verônica
Kroll, a líder do Fórum dos Cortiços. Ela quase perdeu o marido por estar no
movimento(leia nesta página).
Também os vários movimentos menores, espalhados pelos bairros da cidade, têm
mulheres na liderança. Verônica nunca perde a chance de convidar outras
mulheres para integrar “a luta”. Ela já convenceu dezenas de amigas a se unir
ao movimento dos encortiçados.
Nos casarões abandonados ocupados na Alameda Cleveland, está atualmente o ponto
de encontro das líderes. Elas vêm de diversos pontos da cidade para apoiar a
última ação do movimento.
Elas dizem não temer as pressões de políticos e de técnicos das secretarias.
Prometem estender a luta para as instâncias municipais e federais, e até
agendaram a participação na 8ª caravana da União do Movimento de Moradia, que
será realizada em junho, em Brasília.
Marido de líder ameaçou ir embora
A coordenadora do movimento Fórum dos Cortiços de São Paulo, Verônica Kroll, de
36 anos, é o exemplo da obra do acaso. Ex-doméstica e ex-moradora de cortiços
por 10 anos, ela é ciente de sua importância para o movimento e não se recusa a
participar de ocupações, mesmo que isso a deixe longe da família por alguns
dias.
“Meu marido chegou a me ameaçar, dizendo que não precisaria voltar se fosse
participar de um mutirão”, lembrou Verônica. Ela foi, voltou e continua casada.
Sua participação nos movimentos populares por moradia começou quando soube, por
uma amiga, de “uma reunião que dava casas”. Reticente, ela foi à reunião e logo
se tornou coordenadora de um movimento na zona leste.
Em 1985, participou do mutirão no Jardim Ivone, na Vila Industrial, na zona
leste, para construir sua casa atual. “Daí, vi que não podia parar naquilo e a
solução para as outras pessoas seria essa”, lembrou. Verônica, simpatizante do
Partido dos Trabalhadores (PT), faz críticas aos governos municipais de Jânio
Quadros e Paulo Maluf, por acreditar que fizeram muito pouco nessa área. “As
coisas só saíam com muita briga. “
Ela perde as contas do número de reuniões que participou e também das
ocupações. “Nosso movimento, além de lutar pela moradia, procura resgatar a
cidadania das pessoas.”. Para ela, a solução definitiva só virá quando o
governo “começar a trabalhar”.
PS: usei a palavra “encortiçado” (que não existe) em vez de “sem-teto” porque, simplesmente, esta última não se utilizava ainda