Publicada em 13 de março de 1998
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
A frase “mão na cabeça” tornou-se uma rotina para moradores da periferia,
que, mesmo inocentes, são abordados com agressividade por policiais. E
também para Edvaldo Brito, de 61 anos, professor de Direito, doutor pela
Universidade de São Paulo (USP), ex-prefeito de Salvador e secretário dos
Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo. Desde que assumiu a pasta,
ele já foi cinco vezes vítima de abordagens policiais.
Brito é negro e considera-se vítima do preconceito da Polícia Militar do
Estado. Ele afirmou que se sentiu humilhado e até hoje convive com o medo de
ser novamente abordado por policiais. Tanto que já chegou a pensar em pedir
demissão do cargo de secretário e voltar para Salvador, onde nunca foi
vítima dessa violência moral. “Hoje, eu não posso ver um carro de polícia”,
confessou.
Ele faz questão de afirmar que foi muito bem acolhido pela cidade e é
respeitado na maioria das vezes. A exceção ocorre quando ele, seu motorista
e seu segurança estão no carro oficial, de chapa preta, identificando o
cargo de secretário. Todos são negros.
A primeira ocorrência foi em março do ano passado, quando um carro de
polícia parou o carro oficial e pediu a identificação de todos. “Foi um
desastre”, comentou. Ele se identificou como secretário e pediu para ser
liberado. O PM, porém, iniciou um bate-boca e afirmou que Brito poderia ser
preso por “desacato à autoridade”.
Assustado, o secretário relatou o episódio ao prefeito Celso Pitta, também
negro. Na oportunidade, o secretário de Segurança Pública, José Afonso da
Silva, apresentou um pedido de desculpas formal, em nome do governador Mário
Covas. Nas outras vezes, preferiu não falar mais ao prefeito. “Tenho
vergonha.”
Em agosto, entretanto, na Rua Maestro Cardim, foi surpreendido novamente. O
seu motorista apenas disse: “O senhor vai ter de resolver um problema:
estamos presos.” Segundo Brito, os policiais procuravam suspeitos na região
e pensaram que fosse o carro do secretário. Novamente, teve de apresentar-se
como autoridade municipal e foi obrigado a engolir a seguinte frase: “Na
verdade, viemos aqui para proteger o senhor.”
A terceira vez que foi parado foi na frente de sua casa, em Moema, bairro de
classe média alta de São Paulo. Quando desceu para dirigir-se ao trabalho, o
motorista já tinha sido abordado por duas vezes por policiais, afirmando que
ele estava em “atitude suspeita”.
O quarto episódio foi o pior e mais humilhante de todos, para o secretário.
Na Avenida Heitor Penteado, um carro da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar
(Rota) perseguiu o carro oficial, obrigando o motorista a parar. “Mãos para
cima”, disse o policial com uma metralhadora nas mãos. “Foi uma humilhação”,
relatou Brito. “O policial afirmou que estava voltando de um enterro de um
colega e queria mostrar o que precisava ser feito.”
No dia da abertura do ano legislativo na Câmara Municipal, o secretário
Brito chegou atrasado à cerimônia. Era a quinta abordagem, desta vez na
Avenida 9 de Julho, em 2 de fevereiro. Um de seus seguranças, também negro,
que estava em outro carro, havia sido parado em uma perseguição por quatro
carros de Polícia Militar. “Eu estava roubando, atacando alguém, estava
drogado ou sem roupa?”, pergunta o secretário para mostrar sua indignação
com os episódios.
Ele considerou uma ofensa a explicação do tenente-coronel Paulo Régis
Salgado de que “não há pessoa suspeita, existem atitudes suspeitas”. Para
ele, a polícia está mal preparada para lidar com a população.
Brito faz questão de ressaltar que foi bem acolhido pela população de São
Paulo e sua revolta é especificamente contra a forma que foi abordado pelos
policiais. “Da última vez, lamentei o despreparo da polícia”, afirmou. “Há
um conceito prévio de que o negro não pode estar numa posição superior.” Ele
disse que teme também pelas pessoas mais pobres e humildes, que são ainda
mais vítimas do preconceito. “Até para ajudar os outros negros, tenho de
denunciar isso.”
Sua denúncia ganhou dimensão internacional ao ser publicada pela revista
Newsweek desta semana, em que ele relata os episódios. Filho da lavadeira
Edite e do pedreiro João, Edvaldo Brito passou por maus momentos em sua
vida, até conquistar a sua posição atual. Nunca, porém, a ponto de ser
vítima de racismo. “Tenho orgulho de minha negritude.”
Explicações – O tenente-coronel Paulo Régis Salgado, assessor de Relações
Públicas do Comando da Polícia Militar, afirmou ontem que considera os cinco
episódios relatados pelo secretário Edvaldo Brito como uma “infeliz
coincidência”. Ontem, ele prometeu ligar para o secretário, a fim de
conversar com Brito e até pedir desculpas pela atitude da corporação.
“O Comando da Polícia Militar não orienta os policiais a tomar atitudes de
preconceito”, explicou Salgado. Segundo ele, a dignidade humana é uma norma
a ser seguida pelos policiais. “Qualquer filosofia ou norma de adotar
estereótipos ou preconceitos não cabem e estão contrariando os princípios da
PM.”
Ele afirmou que não pode explicar o porquê de o secretário ter sido abordado
cinco vezes em menos de um ano, enquanto o mesmo não ocorre com outras
pessoas. “Os policiais podem ter cometido erro, ter trabalhado mal”, admitiu
o tenente-coronel. “Só quem está nas ruas é que pode explicar os detalhes, é
tudo uma questão de momento, mas não estou defendendo os policiais.”