O mal do milênio

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Publicada em 20 de janeiro de 1999
Veja

Eduardo Nunomura
Em seu cenário mais pavoroso, o chamado bug do milênio, o erro fatídico que pode desorientar os computadores quando o ano 2000 chegar, é um pesadelo. No segundo que se seguisse à meia-noite, já em 1º de janeiro de 2000, começariam os problemas. Os caixas 24 horas não aceitariam os cartões dos bancos, cartões de crédito seriam rejeitados, telefones ficariam mudos e não seria possível sequer ligar para os números de emergência da polícia ou dos bombeiros. As luzes em algumas cidades não se acenderiam, os elevadores ficariam travados e as agendas eletrônicas perderiam dados. Os sistemas hospitalares de monitoramento que injetam medicação nos pacientes graves e verificam as dosagens podem ter uma pane e interromper a inoculação dos remédios vitais. Caos nos aeroportos, com enorme confusão nas escalas das tripulações e nos computadores de bordo. Portas automáticas dos caixas-fortes dos bancos se abririam no meio da noite. Aposentados seriam identificados como recém-nascidos nos fichários digitais da Previdência e seus pagamentos, cancelados. Desorientados, os perigosos sistemas computadorizados que controlam os arsenais nucleares americanos e russos podem entrar em colapso.
O pesadelo descrito no parágrafo acima pode tornar-se realidade? Ninguém é capaz de prever o que realmente vai acontecer quando os relógios internos dos milhões de computadores espalhados pelo planeta alterarem a data do dia 31 de dezembro de 1999 e os primeiros minutos do ano 2000 chegarem. A simples mudança no calendário digital está sendo aguardada com tamanha expectativa e altas doses de especulação que já desencadeou uma onda de histeria coletiva. Nos Estados Unidos, famílias estão começando a estocar alimentos e comprar geradores de energia elétrica. Antes da virada do calendário, esperam ter ainda filtros de água e dinheiro sacado dos bancos para sobreviver ao caos que estão prevendo. São apenas malucos? Com boa dose de certeza é isso que se provará. Mas, de novo, ninguém sabe ao certo.
O que se sabe com certeza é que o problema será causado porque muitos computadores e equipamentos eletrônicos com processadores embutidos vão ler erroneamente as datas do ano 2000 como sendo de 1900, de 2001 como 1901, e daí por diante. Assim, apesar de o próximo 1º de janeiro cair num sábado, as máquinas vão achar que se está em 1º de janeiro de 1900, que foi uma segunda-feira. Por causa dessa confusão, é bastante provável que muitas falhas ocasionadas pelo bug do milênio, também conhecido como Problema do Ano 2000 ou Y2K (‘Y’ de ano, em inglês, e ‘2K’ para 2000), vão atazanar a vida de muita gente. A outra única certeza é que, se nada tivesse sido feito, as máquinas que hoje facilitam a vida moderna paralisariam mesmo meio mundo.
Esse efeito cascata pode ser explicado porque existem no mundo mais de 30 bilhões de microprocessadores instalados e os computadores funcionam com mais de 1,2 trilhão de linhas de código de programação. Estima-se que o custo global para que as falhas não ocorram, e o pesadelo não se torne realidade, seja superior a centenas de bilhões de dólares. “Não podemos mais perder tempo tentando convencer quem ainda continua a ignorar o problema. Todo o tempo que nos resta deve ser gasto para consertar o que ainda está com falhas”, alerta Peter de Jager, um consultor de informática que ganhou notoriedade ao alardear o bug no seu site www.year2000.com quando todo mundo achava o assunto uma piada.
Testes prévios realizados em vários países do mundo constataram que as correções são vitais. Em novembro, três sistemas de computadores do Pentágono foram reprovados numa bateria de testes e provocaram temor quanto à capacidade dos americanos de manter seguro seu arsenal nuclear. No ano passado, um erro computacional no cálculo de datas simplesmente mandou tirar do departamento de almoxarifado do Exército americano 90.000 itens, entre alimentos, combustível, medicamentos e uniformes. Durante um teste numa prisão em Maryland, os computadores decidiram que alguns presos que ainda tinham anos de sobra para cumprir suas penas poderiam ser soltos. Depois de um teste, a empresa de vendas por catálogo Amway decidiu reprogramar seus computadores o quanto antes. Uma das máquinas da Amway recusou-se a fabricar um produto de limpeza porque acreditava que um componente tinha data de vencimento no ano de 1900 — quando na verdade era 2000. Visa, Mastercard e American Express tiveram de esperar por mais de um ano que as lojas conveniadas se adaptassem antes de enviar a seus clientes cartões de crédito com vencimento para o próximo ano. No Brasil, as operadoras de cartões de crédito ainda estão trabalhando na erradicação do problema.
As raízes do bug do milênio foram lançadas quase meio século atrás, quando se criou a linguagem de programação Cobol, que rodava em todos os computadores comerciais. Para que os sistemas pudessem funcionar, eram utilizados cartões perfurados para armazenar os dados. Por uma economia de espaço, os programadores de Cobol convencionaram que bastariam dois dígitos para representar os anos: 57 para 1957 ou 70 para 1970, e por aí afora. Em 1964, a IBM gastou mais de 5 bilhões de dólares (mais que o custo do projeto Manhattan, que produziu a primeira bomba atômica) para lançar o System/360, a família de computadores de grande porte que se tornou padrão no mercado. Inexplicavelmente, manteve os dois dígitos para representar o ano, mesmo numa época em que já existiam fitas magnéticas em substituição aos cartões perfurados. O que ninguém esperava, então, é que ainda hoje alguns desses sistemas e seus sucessores estivessem funcionando. Pois estão, e os erros do passado foram, por inércia, sendo transferidos de geração em geração de computadores até os dias de hoje.
O que vai acontecer de verdade? A seguir, o resumo de algumas avaliações de especialistas a respeito dos problemas antecipados do bug do milênio:
Vai morrer paciente nos hospitais porque os computadores ficarão confusos? Provavelmente não. Os hospitais modernos o bastante para depender de computadores nos serviços vitais terão feito as correções necessárias. Os hospitais arcaicos não têm computadores.
Faltará dinheiro nos caixas eletrônicos? Improvável. O setor bancário é o que melhor se preparou para enfrentar o problema. Só haverá escassez de dinheiro se as pessoas começarem a sacar desesperadamente por pura paranóia.
O dinheiro depositado nos bancos vai sumir? Não. Mas os especialistas recomendam que, por precaução, o cliente documente a situação financeira imprimindo extratos das contas antes da virada do ano.
Os telefones ficarão mudos? Em algumas cidades é possível que isso ocorra. No Brasil, por exemplo, as telefônicas ainda estão se adaptando e têm até junho para consertar o erro.
Os aparelhos como videocassete, filmadoras, agendas eletrônicas, fornos de microondas e cafeteiras vão pirar? Os sistemas de programação de gravação antecipada dos videocassetes podem entrar em pane. Os demais dependem pouco de datas.
Aviões vão despencar? Não. Mas pode ser que alguns aeroportos tenham de operar radares temporariamente de forma manual, gerando atrasos. Algumas companhias pretendem evitar vôos durante o réveillon do ano 2000 para aeroportos que não ofereçam garantias de segurança.
Vai faltar água e luz? É provável que ocorram algumas falhas localizadas, porque muitas empresas do setor estão enfrentando dificuldades para corrigir o problema. Não deve afetar os grandes centros urbanos.
Fábricas vão parar? Podem surgir problemas localizados mas não catástrofes paralisantes.
Como o Brasil enfrentou o problema
O isolamento tecnológico que atrasou a modernização do país tornou o problema da data dos computadores no ano 2000 menos crítico no Brasil do que nas nações industrializadas. Entre as grandes companhias instaladas no país que podem ser afetadas, a maioria já está bem adiantada na prevenção do erro. A Comissão de Valores Mobiliários determinou que até o fim do ano passado todas as empresas de sociedade anônima adaptassem seus computadores e declarassem que estarão prontas para enfrentar a questão. A maioria diz que está. Algumas, como as montadoras General Motors e Volkswagen, devem concluir a readequação até abril.
O Banco Central entrou na fase de verificação dos programas de adaptação das instituições financeiras, que tinham até 31 de dezembro para finalizar seus trabalhos. Até abril, devem ser realizados os últimos testes para garantir que tudo correrá bem. A preocupação do governo está voltada mais para o setor elétrico e das telecomunicações. As companhias telefônicas, depois de privatizadas, começaram tarde seus planos de correção. O setor de energia elétrica também está atrasado. “O trabalho está sendo feito, porém há uma possibilidade de que não cheguemos com 100% dos sistemas corrigidos”, afirma Marcos Osório, assessor do Programa Brasileiro do Ano 2000 da Secretaria da Administração e do Patrimônio. “Mas não haverá recessão”, completa Marco Antonio Stefanini, da Stefanini Consultoria e Assessoria em Informática.
O setor mais atrasado seguramente é o formado pelas pequenas e médias empresas. O Banco do Brasil e o Bradesco já abriram linhas de crédito para que elas tenham acesso a recursos para realizar a tarefa. A Confederação Nacional da Indústria distribuiu 50.000 cartilhas com explicações sobre o problema, insuficientes para atender a todas as empresas filiadas. Até o fim do mês, deverá ser criada uma página na internet que servirá de referência sobre a questão no Brasil. Na semana passada, foi lançado o site Foro Y2K de America del Sur (www.foroy2kamericadelsur.org/), com informações sobre como está a corrida contra o tempo nos países do continente.

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