Publicada em 1 de setembro de 1999
Veja
Eduardo Nunomura
Na noite de terça-feira da semana passada, o paranaense Alberto Kambara, de 25 anos, esperava no saguão do Aeroporto Internacional de São Paulo a chamada para um vôo que ele conhece bem. Como há oito anos, quando viajou com a família, ele se preparava para enfrentar 24 horas dentro de um avião, tempo que separa o Brasil do Japão. Desta vez, porém, iria acompanhado de sua mulher, a também paranaense Aparecida Yayoi Kondo, de 27 anos, e do filho Rodrigo, de 1 ano e 3 meses. Alberto e Aparecida são dois dekasseguis, imigrantes em busca de trabalho, que decidiram voltar ao Japão para mais uma vez ganhar a vida longe do país onde nasceram. Como eles, nos próximos meses, milhares de brasileiros vão preencher os postos de trabalho que estão voltando a surgir no mercado japonês depois de um período de estagnação. Agora a realidade que vão enfrentar é bem diferente daquela que os primeiros descendentes de japoneses encontraram ao tentar a aventura da volta à terra dos avós.
O aumento da oferta de vagas para dekasseguis no Japão, que ficou praticamente paralisada no ano passado, pode ser facilmente constatado nas filas do consulado japonês em São Paulo e nos classificados de jornais voltados para a colônia nipo-brasileira das últimas semanas. São dezenas de anúncios oferecendo empregos em fábricas de autopeças, componentes eletrônicos e alimentação. A tendência é que esse número cresça até o fim do ano, por dois motivos. Primeiro, há sinais claros de que a economia japonesa saiu de sua pior fase, após dois anos de forte recessão. O outro fator é a abertura de novas vagas deixadas no Japão por brasileiros que têm planos de retornar ao Brasil até a virada do ano. De outubro a dezembro, todos os vôos de Tóquio para São Paulo estão lotados. Para suprir os postos que estão surgindo, as agências brasileiras que intermedeiam a contratação de dekasseguis estão agora à procura de um novo perfil de profissionais (veja quadro). Como é cada vez mais rara a presença de tradutores nas indústrias, o conhecimento básico da língua japonesa tornou-se vital. Além disso, os homens passaram a receber menos e as mulheres são mais bem-aceitas nas fábricas.
Por outro lado, os dekasseguis que estão retornando ao Japão ou indo pela primeira vez também fazem suas exigências. No passado, muitos iam sozinhos para trabalhar por um período mais curto de tempo (um ou dois anos). Isso acabou causando problemas de desagregação familiar, como separações e filhos distantes dos pais. “Se fosse para me separar da família, seria melhor comer farinha aqui no Brasil”, afirma o ex-comerciante Jorge Yabu, de 49 anos. Também na semana passada, ele embarcou para o Japão com sua mulher, Yoshie Eunice, de 39 anos, e seus dois filhos adolescentes, Michel, 17, e Wilson, 14. Ao perceber que a mercearia que tiveram por dez anos em Araçatuba, interior de São Paulo, não permitiria manter os filhos em boas escolas e faculdades, os Yabu decidiram vender o negócio e arriscar tudo no Japão. “A gente está saindo meio no escuro. Dá mais medo por causa das crianças”, confessa Yoshie Eunice. “Mas a situação no Brasil está muito ruim. Vamos nos aventurar para tentar algo melhor.”
Movimento inverso – A palavra “dekassegui” surgiu para designar no passado os trabalhadores japoneses do norte que migravam para o sul do arquipélago em busca de trabalho durante o período de inverno. Composto dos ideogramas japoneses das palavras “sair” e “ganhar dinheiro”, o termo dekassegui tornou-se sinônimo do migrante que alimentava o desejo de voltar à terra de origem. Uma versão bem diferente do uso quase pejorativo que a palavra ganhou no Japão com o fenômeno vivenciado pelos brasileiros nesta década e infinitas vezes distinto do tratamento que os japoneses receberam quando emigraram para o Brasil. Em 18 de junho de 1908, o navio Kasato-Maru chegou ao Porto de Santos trazendo os primeiros 781 imigrantes que fugiam da falta de emprego no Japão. Nos anos seguintes, mais de 190.000 pessoas fizeram o mesmo percurso que levava dois meses de navio. Atualmente, são mais de 1,3 milhão de pessoas, entre japoneses e descendentes, no Brasil. Chegaram até a fundar “cidades japonesas” como Assaí e Rolândia, no Paraná, e Bastos, em São Paulo, onde a cultura oriental chega a ser preservada fielmente.
Nos anos 90, o fluxo migratório se inverteu vertiginosamente. Depois da II Guerra Mundial, o Japão tornou-se uma superpotência mundial, rivalizando com os Estados Unidos e países prósperos europeus. Hoje, os japoneses possuem uma renda per capita anual de 41.000 dólares, quase dez vezes superior à dos brasileiros, e uma economia de 5 trilhões de dólares por ano, seis vezes maior que a do Brasil. Eles exportam para cá eletroeletrônicos, automóveis e capitais. O
Segundo o último levantamento do Ministério de Justiça japonês, são 222.217 brasileiros vivendo no Japão. É um número exato, pois lá todo trabalhador que passa pelo aeroporto tem de ter visto no passaporte e contrato de trabalho assinado. É a primeira vez que caiu a população brasileira no arquipélago desde o início do movimento dekassegui, no fim dos anos 80. Em 1997, era de 233.254. O freio na economia japonesa dos últimos dois anos interrompeu essa curva migratória que crescia ano a ano. Um resultado que afetou diretamente o Brasil foi a diminuição das remessas de dólares dos dekasseguis para os parentes que ficaram no país. O valor das remessas oficiais registrado no ano passado pelo Banco Central caiu de 722 milhões de dólares em 1997 para 511 milhões no ano passado, uma queda de quase 30%.
Esse número, porém, não representa a totalidade do dinheiro que os brasileiros enviam do Japão. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, a cifra chega a 2,5 bilhões de dólares por ano. A tendência é de que ela diminua. Hoje, as empresas japonesas pagam, em média, para os homens 1.200 ienes a hora (11 dólares) e para as mulheres e menores de idade 900 ienes (8 dólares). Não é muito se se levar em consideração que uma laranja custa 1 dólar, uma Coca-Cola, 8 e 1 quilo de carne, quase 20. Uma das conseqüências da recessão japonesa é que muitos benefícios foram cortados, como as horas extras e os salários bônus.
Nova realidade – A migração de brasileiros para o Japão foi acelerada depois de junho de 1990, quando o governo japonês criou uma lei que incentiva o trabalho temporário dos dekasseguis. Após a emenda, os brasileiros no arquipélago saltaram dos 15.000 em 1989 para 56.000 um ano depois e 120.000 em 1991. Mas esse movimento faz parte de um fenômeno mundial, que se tornou cada vez mais real com o fim das fronteiras econômicas entre os países e o aumento da diferença entre as nações mais ricas e as mais pobres. Como resultado dessa globalização, cerca de 1,5 milhão de brasileiros busca um futuro melhor fora do território nacional. Os Estados Unidos ainda são o país com o maior número de brasileiros. Oficialmente são 400.000. Japão e Paraguai vêm em seguida.
Essa nova fase migratória vai encontrar um Japão diferente e mais bem preparado para recepcionar os dekasseguis. No início da década, quando começou a migração em massa, só restava aos brasileiros enfrentar um trabalho que era denominado pelos japoneses como kitsui (pesado), kitanai (sujo) e kiken (perigoso) – que os brasileiros logo trataram de ampliar com dois novos Ks, kibishii (exigente) e kirai (detestável). Hoje, o trabalho não mudou muito, mas a vida dos brasileiros, sim. Para a professora da Universidade de Tsukuba, Lili Kawamura, autora do livro Para Onde Vão os Brasileiros?, os dekasseguis vão encontrar uma infra-estrutura capaz de diminuir a distância Brasil–Japão. Nas várias cidades onde se concentra essa população, há shopping centers, restaurantes, escolas com aulas em português, discotecas, salões de beleza, locadoras de vídeo e caminhões com produtos brasileiros. Para os mais exigentes, pode-se até captar emissoras brasileiras via satélite e assistir ao Jornal Nacional diariamente. “Antes, eram apenas trabalhadores braçais. O sofrimento era tão grande que só pensavam em voltar para casa. Agora, os brasileiros conseguiram criar um mercado próprio. Para alguns a vida é bastante agradável no Japão”, explica a professora Lili.
Os dekasseguis estão deixando o Brasil com o objetivo de ficar mais tempo. “Hoje, eles estão ficando cinco ou mais anos por lá. Muitos ficam com medo ao ouvir tantas histórias de gente que já perdeu tudo ou da própria economia brasileira. Com isso, preferem adiar o retorno”, diz Rui Hara, presidente da Associação de Apoio aos Dekasseguis. “Uma parte dos mais de 200.000 dekasseguis nunca mais vai retornar ao Brasil. São despatriados mesmo.”