Uma noite de fúria na Febem

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Publicada em 3 de novembro de 1999
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Eduardo Nunomura e Valéria França
O Brasil tem cerca de 20.000 jovens infratores, dos quais 8.000 estão encarcerados em unidades da Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor, Febem, espalhadas pelo país. Na teoria, são reformatórios para a recuperação dos internos. Na prática, são iguais aos grandes presídios, com os mesmos problemas que o sistema penitenciário reserva a criminosos perigosos e condenados. Se havia alguma distinção entre as prisões de adultos e as de adolescentes, ela desapareceu no domingo passado, quando a Febem da Imigrantes, em São Paulo, foi palco de uma batalha sangrenta. Quatro jovens morreram espancados pelos próprios colegas, com socos, pontapés, golpes de machado, marreta, enxada, pau, caco de telha e até espeto. Dois deles foram queimados e ficaram irreconhecíveis. Entre funcionários e adolescentes, sessenta pessoas ficaram feridas.
Todo esse terror e essa barbárie poderiam ter sido evitados. Até as telas da Febem sabem que a solução está na construção de pequenos reformatórios, mais parecidos com casas de recuperação do que com presídios. Só depois desse derramamento de sangue é que o governo voltou a falar em medidas para tentar resolver o impasse, como a implantação de abrigos para até cinqüenta adolescentes em cidades do interior. Na Imigrantes, três das quatro alas que abrigavam 1.147 menores foram destruídas. Destes, 102 fugiram e 265 foram transferidos. Os 776 restantes amontoavam-se na ala D, que estava em reforma. Sem porta nem janela, o prédio é guardado pela tropa de choque da Polícia Militar.
Já se perdeu a conta do número de rebeliões na Febem. Os motins e as denúncias de maus-tratos tornaram-se corriqueiros, assim como a superlotação da unidade Imigrantes. Destinada a abrigar cerca de 300 meninos por no máximo dois meses, estava com uma população quatro vezes maior – que em média permanecia ali por um ano. Nos últimos dias, dois fatos pioraram a situação: a ameaça de greve dos monitores e a reforma que deixou as instalações ainda mais apertadas e que forneceu as armas usadas na rebelião. “Essa revolta foi a gota d’água”, diz Guido Andrade, que pediu demissão da presidência da Febem na quinta-feira. “Não temos o que fazer.” No sábado anterior, houve um princípio de rebelião. No domingo, uma circular distribuída pelo Sindicato dos Monitores acirrou os ânimos. Comunicava que os monitores entrariam em greve na terça-feira próxima e que a Febem ficaria por conta da tropa de choque da Polícia Militar. Os detentos planejavam uma fuga em massa para esta semana. Com a notícia de que a PM cuidaria do “reformatório”, os rapazes resolveram antecipar a data da rebelião. Havia quem esperasse pelo pior. “Américo disse que eu nunca mais o veria. Sabia que ia morrer”, diz Graziela de Oliveira, de 18 anos, irmã de Américo, um interno que ameaçara contar sobre a revolta. Como costumam dizer na instituição, estava no seguro, ou seja, protegido pelos monitores.
Durante o jantar, alguns funcionários suspeitaram de que algo estava para acontecer. Os garotos permaneciam quietos demais. Era hora de troca de turno e havia menos monitores que o de costume, cerca de apenas trinta. A agitação começou na ala B, quando os internos se preparavam para dormir. “Vamos sair antes que a polícia invada”, gritavam. Aos berros, saíram quebrando tudo. Arrancaram portas, batentes, esquadrias, grades das janelas e mais o que pudessem usar como arma. Fizeram os primeiros reféns e saíram libertando todos os que estavam nos alojamentos. Não encontraram resistência nem dos vigilantes contratados para zelar pelo patrimônio e conter situações como essa. Tomaram todas as alas em poucos minutos. Na D, em reforma, conseguiram parte da munição que serviria para torturar os próprios companheiros: maçarico, cabos de vassoura e marreta. Da enfermaria, levaram instrumentos cirúrgicos, além de álcool e desodorante – que beberam e também usaram para tocar fogo.
Como nos presídios, ali há grupos rivais com líderes, só que o ímpeto era adolescente, sem organização. Alguns subiam nos muros e telhados como numa comemoração. “Vamos matar todos”, gritavam. Outros escaparam. Os meninos do seguro tentavam se esconder. Do lado de fora, a vizinhança assistia a tudo. O que de longe parecia apenas uma confusão tomou ares de tragédia quando chegou o reforço da tropa de choque, com cães. Vendo que era impossível a fuga em massa pelos portões, os garotos enlouqueceram. Atearam fogo nos prédios, explodiram botijões de gás e fizeram mais reféns. As luzes se apagaram, aumentando a tensão. Enfurecidos, ao encontrar um grupo de monitores e internos entrincheirados entre móveis, bateram em todos.
Entre eles estava Rodrigo Dutra, 18 anos, calouro na Febem, que foi arrastado para o telhado. Além de socos e chutes, Dutra recebeu golpes na cabeça com cacos de telha. Gritou, esperneou, pediu a Deus para não morrer. Só saiu com vida porque, na hora em que apanhava, um helicóptero da Polícia Militar apareceu. Quando seus algozes olharam para cima, Dutra jogou-se de mais de 5 metros de altura. Na manhã de segunda-feira, foi resgatado pela polícia com politraumatismo. Ficou dois dias na UTI. Filho de um motorista e de uma cabeleireira que tem apartamento próprio, Dutra, como a maioria, não está lá por ter cometido algum crime hediondo. Dono de uma moto de 125 cilindradas, foi preso com três amigos tentando furtar uma mais potente. Se tivesse um bom advogado poderia estar em liberdade assistida.
De cada dez internos, apenas um é condenado por assassinato, latrocínio ou tentativa de homicídio. O problema é que a Febem virou um depósito que recebe qualquer caso. Vítima da rebelião, Adriano Brandão, 15 anos, sofria de rebaixamento mental e tinha problemas de convívio social, segundo os psiquiatras. Ali se misturaram novatos no mundo do crime com quem tem uma lista interminável de delitos, bandidos ferozes que ainda não cruzaram a idade para ser despachados para uma cadeia comum. É o que explica as cenas de barbárie na Imigrantes. Para alguns, ali a vida não vale nada. Fábio Antônio de Castro, por exemplo, aproveitou a confusão para acertar as contas com outro rapaz (veja quadro). Um garoto estava sendo torturado com as chamas de um maçarico e com uma marreta, quando ele o decapitou a machadadas. Mais tarde, a cabeça foi usada para intimidar a promotora Sueli Riviera, que tentava atender a uma reivindicação dos rebelados – transferir 23 deles para a unidade de Ribeirão Preto. A cabeça foi lançada de cima do muro dentro de um saco plástico, caindo em cima de um policial. Os menores ameaçaram fazer o mesmo com os reféns.
Os monitores também passaram por maus pedaços. Um deles, Roberto Brasil, foi enrolado num cobertor embebido em álcool depois de apanhar muito. Quando um dos rebelados pegou o isqueiro para atear fogo no monitor, as atenções se voltaram para um garoto. Ao que parece, tratava-se de um alcagüete. “Tiraram a roupa do menino e partiram para o massacre”, conta o monitor. Bateram com canos, paus e chutaram muito. Depois fizeram cortes superficiais com estilete e por fim enfiaram um espeto em seu estômago. Para completar a crueldade, alguém jogou água sobre o corpo, que parecia sem vida. Houve um estrebucho. Desferiram uma marretada fatal no olho da vítima antes de lançar o corpo nas chamas. Enquanto a pele estalava, os assassinos riam.
O horror durou dezoito horas. Às 3 da tarde da segunda-feira, os pais exigiam informações sobre os filhos. Temiam passar pelo mesmo que a mineira Zelita de Oliveira. Na terça-feira, ela enterrou um de seus quatro filhos, Américo, de 17 anos. A tragédia não é fato raro nessa família. O marido de Zelita foi assassinado há catorze anos. O menino sofria de epilepsia e era dependente de crack. Começou um tratamento na Pastoral do Menor, em São Paulo. “Tínhamos um trato. Se ele tentasse largar as drogas, eu pagaria o implante dos dentes que lhe faltavam”, diz o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral. Américo foi para a Febem por roubar 15 reais com uma arma de brinquedo. “Juro que ensinei o valor da vida para meu filho”, diz Zelita, inconformada. A cada crise, repete-se a ladainha de sempre. “Estar perto da família e em unidades menores permite melhores ações pedagógicas”, disse o governador Mário Covas ao assumir pessoalmente o controle da Febem. “O governo deveria cuidar apenas da segurança e da custódia desses meninos”, declara Roberto da Silva, pedagogo e ex-interno da Febem. “A educação, a saúde e a assistência psicológica deveriam ser feitas por gente que entende do assunto.”

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