Big Brother observa-o neste exato momento

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Publicada em 10 de dezembro de 2000
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
A vida num mundo sem privacidade previsto pelo escritor George Orwell, no
livro 1984, já é real. A figura do Big Brother, o Grande Irmão, capaz de
vigiar seus movimentos 24 horas por dia, cerca a atual sociedade. Nunca na
história houve tantos exemplos de como é possível controlar as pessoas por
meio da informação. A aprovação pelos deputados de um projeto que permite a
quebra do sigilo bancário é mais uma prova disso. A decisão da semana
passada está sendo torpedeada por juristas, advogados e políticos, que vêem
na medida uma ameaça aos direitos do contribuinte. A Ordem dos Advogados do
Brasil considerou fascista a proposta, quase a compará-la com o
totalitarismo imaginado por Orwell.
O controle não pára por aí. Neste exato instante, seus dados pessoais
circulam por diferentes computadores e estão sendo manuseados por
interessados em vender alguma coisa, conhecê-lo melhor ou simplesmente
controlá-lo a distância. Se mora numa cidade grande com câmeras e radares
eletrônicos espalhados por ruas e avenidas, ande na linha para não ser
flagrado por eles. Num shopping center, numa loja, num prédio ou mesmo numa
banca de jornal, circuitos de TV controlam cada um de seus movimentos. Se
possui um e-mail, há uma grande chance de esse endereço já estar sendo
vendido por empresas de marketing. E cuidado com o que escreve, pois sua
empresa ou mesmo seu provedor de acesso pode ler tudo o que envia ou recebe
pela Internet. Bem-vindo à sociedade da informação!
A privacidade acabou. Essa afirmação foi repetida mais de uma vez pelo
escritor português José Saramago, que esteve em São Paulo na semana passada.
Numa entrevista ao Estado para o lançamento de seu novo livro, A Caverna,
ele explicou o motivo de sua agonia: “As palavras que estou a dizer, com a
vibração que produzem nos vidros, essa vibração poderia estar a ser captada
no prédio em frente. É surpreendente como a humanidade aceita viver dessa
maneira.” Aos 78 anos, o premiado com o Nobel de Literatura em 1998 está
mais lúcido do que nunca. A obra fala exatamente de parafernálias
eletrônicas que vigiam uma sociedade oprimida.
No trabalho – A tecnologia possibilita que as informações circulem quase
instantaneamente e tudo passe a girar em torno delas. “A noção de
privacidade está mudando por causa dos meios eletrônicos. Com isso, a
distinção entre público e privado ficou confusa”, relata James Wygand,
diretor da Control Risks do Brasil, especializada em apurar fraudes em
empresas. Foi vasculhando o sistema de e-mail de uma companhia de manufatura
que Wygand e sua equipe descobriram que um funcionário aplicava um golpe
contra a empresa. Da mesa de seu computador, ele checava sua conta bancária
e fazia as movimentações do cerca de US$ 1 milhão que recebeu de
fornecedores usando da influência de seu cargo. A pessoa foi demitida.
Nos Estados Unidos, 40 funcionários da Xerox Corporation foram demitidos no
ano passado, porque usaram os computadores da empresa para visitar sites
pornográficos ou esportivos durante o expediente. Esse caso mostra uma
realidade que muitas empresas preferem esconder. É cada vez maior o controle
dos patrões sobre seus empregados. Hoje, metade das companhias americanas
admite que monitora telefonemas, fax, e-mails e arquivos de computadores de
seus empregados. Embora os funcionários abominem, os empregadores têm
direito de fazer isso, uma vez que os meios utilizados pertencem à empresa.
A própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) brasileira prevê demissão
pelo mau uso de equipamentos.
“As empresas são absolutamente paranóicas com relação ao seu sigilo”,
explica o presidente da Softway Telemarketing, Roberto Josuá. Sua empresa
presta serviços para companhias como Telefonica e Credicard, realizando
telefonemas para os consumidores. Os 1.800 funcionários têm acesso, quando
necessário, a bancos de dados com uma série de informações pessoais, como
nome, telefone, endereço e renda mensal. Para evitar erros, a privacidade do
consumidor é mantida à custa de um controle absoluto dos empregados. Todas
as ligações são gravadas e há câmeras de vídeo vigiando todos. “Esse sistema
permite que o funcionário jamais seja acusado de ter roubado uma
informação”, justifica Josuá.
Na rua – Mas o que dizer de câmeras que começam a se espalhar por todos os
lugares? Em Boituva, até o fim do mês, serão instaladas 12 câmeras em
entradas de bancos, ruas comerciais, escolas e outros locais públicos. A
Universidade de São Paulo já tem uma funcionando no estacionamento da
Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis (FEA), na Cidade
Universitária. Antes do vigia eletrônico, eram roubados de 3 a 4 carros todo
mês. Desde o início do controle, não há mais registros. Até o primeiro
semestre de 2001, serão dez câmeras acompanhando os passos dos
universitários. Na FEA e também no Escola Politécnica, os estacionamentos
deverão contar com crachás de acesso no ano que vem. Em Bauru, duas escolas
estaduais que instalaram os equipamentos nos banheiros e corredores foram
obrigadas a voltar atrás em sua decisão. Pais e alunos protestaram contra a
invasão da privacidade.
A justificativa para essas medidas sempre é a segurança. Em outros casos, a
segurança não parece ser uma boa explicação.
Para as agências de inteligência, outros motivos justificam a espionagem de
pessoas e empresas. “A forma como esses serviços agem define as prioridades
do País”, explica Wygand, da Control Risks do Brasil. Na extinta União
Soviética, a KGB preocupava-se com a estabilidade interna do país,
investigando os próprios cidadãos à procura de focos de subversão. A CIA
tentava descobrir, nos Estados Unidos e em outros países, pessoas que
estivessem propagandeando o comunismo mundo afora.
O Big Brother existe então? “Sim e não. A armazenagem eletrônica de dados
pessoais permite a criação de um Big Brother, mas não necessariamente obriga
que ele seja criado”, responde Pedro Vazquez, coordenador do grupo de
segurança do Comitê Gestor da Internet. “O perigo reside em centralizar
essas informações ou na possibilidade de cruzamento delas por qualquer um e
sem o conhecimento da pessoa.”
Para Roberto Josuá, não existe. “Como há uma quantidade enorme de
informações fragmentadas circulando, é impossível ter controle total sobre
as pessoas”, raciocina. Wygand é mais otimista: “O Big Brother não é tão big
(grande) assim. Ainda há formas de protestarmos contra essas invasões de
privacidade. Enquanto o ser humano for humano, sempre haverá formas de impor
limites a esses excessos.” (Colaborou Haroldo Ceravolo Sereza)

Bisbilhotice sai dos livros de ficção e entra na vida moderna
O que antes fazia parte de filmes de ficção, hoje integra nosso dia-a-dia.
São filmadoras, circuitos de TVs, gravadores e câmeras fotográficas. Estão
espalhados em tantos locais que muitos já se acostumam com sua presença. Há
uma outra lista de aparelhos menos conhecida, mas que surpreende pelo seu
poder de bisbilhotice. São relógios-gravadores, câmeras ocultas menores que
uma caixa de fósforo, microtransmissores do tamanho de um isqueiro que podem
captar conversas a 300 metros de distância, aparelhos de escuta através de
paredes, programas “invisíveis” de computadores que gravam todos os textos
digitados, e-mails enviados e recebidos, comandos executados e sites
visitados.
“Quem tem a informação tem o poder”, filosofa João Evangelista Pinto,
proprietário da Jeptron, uma empresa que vende aparelhos de segurança.
Segundo ele, muitos de seus clientes são empresas que utilizam esses
artifícios, ainda que a maioria seja ilegal, para pressionar funcionários ou
confirmar suspeitas de atos criminosos.
Vedetes – Hoje, as microcâmeras ocultas são um dos objetos mais vendidos no
mercado da espionagem. Há poucos meses, um cliente da Jeptron comprou uma
delas para um propósito curioso. Como seu cachorro começou a ter
comportamentos estranhos, ele decidiu vigiá-lo por alguns dias. Para sua
surpresa, descobriu que a empregada surrava o animal sistematicamente com a
vassoura. A empregada foi demitida.
Os sistemas de vigilância por câmeras são os mais populares. Tanto que
poucos se dão conta de que elas estão por toda parte. Um exemplo são os 89
aparelhos espalhados em cinco túneis da capital paulista. Não há um
centímetro deles que não esteja vigiado pelos técnicos da Companhia de
Engenharia de Tráfego (CET).
Segundo o engenheiro Luiz Paulo D’Ângelo Santiago, os equipamentos não são
vistos pelos motoristas como uma invasão da privacidade. “É diferente de
filmar um elevador. No trânsito, é um veículo controlado; no elevador, uma
pessoa sendo bisbilhotada”, compara Santiago.
Depois de seis anos desde a instalação da primeira câmera, além da monotonia
do controle do trânsito de veículos, a equipe da CET já captou diversas
imagens curiosas. Dos casais que param no acostamento para brigar até os
rapazes que faziam do local um banheiro público. A primeira reação de quem é
flagrado é sempre a mesma: “Mas como vocês descobriram que eu estava parado
aqui?” O Big Brother sabe.

Informações pessoais são vendidaspor mísero centésimo de centavo
Um centésimo de centavo. Esse é o valor de seu e-mail vendido por sistemas
de mala-direta no Brasil. Grandes empresas estão se valendo desses endereços
eletrônicos para fazer propaganda de seus produtos. Mesmo sem o seu
consentimento. Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), a
comercialização desses cadastros não é proibida, mas a lei diz que os dados
só podem ser usados com a autorização dos consumidores.
Com a expansão do comércio eletrônico, a quantidade de informação que
circula nos bancos de dados é enorme. Além dos dados pessoais, as empresas
coletam informações sobre os hábitos de compra, os horários preferidos, os
assuntos de maior interesse e até sites preferidos. A sua personalidade está
exposta.
“Qualquer um pode solicitar as informações de seus dados pessoais
cadastrados nesses bancos de dados”, explica o coordenador do Idec Marcos
Diegues. Uma tarefa complicada se a sua compra for realizada em sites
estrangeiros. A Amazon.com, que recentemente avisou aos clientes que poderia
vender seu cadastro para outras empresas, não informa com exatidão o que
coleta de cada pessoa, nem permite que ela seja eliminada dos registros.
Depois de gastar quase US$ 500 em várias compras na Amazon.com, o americano
Mark Hochhauser decidiu nunca mais entrar naquele site. Ele conduziu um
estudo sobre como empresas virtuais americanas lidam com a questão da
privacidade. Descobriu que muitos usam expressões complicadas, de difícil
compreensão. “O que é uma boa política de privacidade, se as pessoas não
podem entendê-la?”, indaga Hochhauser.
Roubos – Ainda que as empresas garantam que não vão explorar a privacidade
dos clientes, há o risco de que os dados caíam nas mãos de invasores
virtuais. Na semana passada, o centro de medicina da Universidade de
Washington reconheceu que 5 mil fichas de pacientes, alguns com problemas
cardíacos, foram roubadas por hackers entre junho e agosto. Até agora,
ninguém foi preso.
Outro risco que todos correm é ser vítima da superespionagem do Echelon,
projeto de pirataria cibernética da Agência de Segurança Nacional americana,
a NSA. O grampo virtual começou no fim dos anos 40 e hoje pode interceptar
qualquer mensagem transmitida dentro e fora dos Estados Unidos por
televisão, telefone, telex, fax e e-mail. Soma-se a ele o sistema do FBI,
batizado de Carnivore, que também extrai dados da Internet. O objetivo dos
dois espiões, segundo o governo americano, é controlar atividades ilícitas,
como o narcotráfico.
Outros países também admitem controlar os meios eletrônicos. A Inglaterra,
que tem câmeras para observar pedestres, aprovou lei que permite vigiar
e-mails e telefonemas. Autoridades policiais da Austrália podem invadir,
modificar e extrair dados de computadores secretamente. A Holanda vigia,
sistematicamente, as mensagens eletrônicas que são enviadas ao exterior por
empresas.
E isso é apenas o que se sabe. O resto continua oculto.

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