Publicada em 14 de abril de 2001
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Diz um provérbio que o homem não sabe por que bate, mas a mulher sabe por
que apanha. Essa meia-verdade oculta uma realidade triste. Nem sempre as
vítimas denunciam seu agressor. Muitas não registram queixas na polícia e
nos hospitais raramente se abrem. Também ninguém lhes pergunta nada. Voltam
para casa e silenciam. Um grupo de mulheres de Santos decidiu mudar essa
história lançando um manual que ensina profissionais da saúde a
reconhecerem, orientarem e encaminharem as vítimas da violência doméstica.
Para elas, ainda é preciso lembrar que um simples tapinha dói. E muito.
O manual Violência Contra a Mulher, Um Novo Olhar é uma iniciativa da Casa
de Cultura da Mulher Negra (CCMN), uma organização não-governamental que
descobriu que a melhor forma de combater esse problema social é atuar nos
locais onde as mulheres sempre terão de recorrer. Do porteiro à atendente e
da enfermeira ao médico, a proposta é fazer com que todos eles saibam
atender as vítimas. Afinal, são eles que observarão os hematomas nos olhos,
os cortes de faca pelo corpo, a pele arranhada, a face de horror e medo que
elas apresentam. São eles que podem descobrir que não foi um tombo na escada
que fez tudo isso, mas a mão de um agressor.
Pacientes – “As mulheres podem não ir a uma delegacia, mas aos médicos elas
vão. O que não pode continuar ocorrendo é um profissional de saúde tratar
esse caso como se fosse uma paciente qualquer”, afirma a presidente da CCMN,
Alzira Rufino. Ex-enfermeira, Alzira sabe que a violência doméstica é um
ciclo que começa e termina nas casas e são poucos os que tentam intervir.
Ângela Cuofamo Mariano, coordenadora da Secretaria Municipal de Santos,
abraçou a idéia e reconhece que ela tem efeitos imediatos. No mês passado,
em seu consultório, ao atender uma antiga paciente desconfiou que ela
poderia ser vítima de agressões do marido. Adotando os métodos propostos
pelo manual, a médica obteve a confirmação e uma resposta inesperada: “Por
que a senhora não me perguntou isso há 12 anos, quando eu estava grávida e
apanhei pela primeira vez.”A paciente foi encaminhada à CCMN.
Protocolo – Santos já se prepara para ser a primeira cidade a adotar um
protocolo de reconhecimento de agressões à mulher em toda a rede de saúde.
“Há um certo distanciamento entre médico e paciente. Ele se preocupa com a
saúde física dela, mas o que queremos fazer é orientá-lo a abordar a mulher
corretamente”, explica Tomas Söderberg, secretário de Saúde de Santos. Em
Belo Horizonte, há dois anos, foi iniciada uma proposta semelhante e
provavelmente pioneira no País, adotando um protocolo para prontos-socorros.
Agora, trabalham para ampliar o projeto para a rede básica de atendimento. A
capital paulista ainda ignora essa questão.
“É muito duro ser tratada pelo médico e não poder confidenciar que está
sendo vítima do marido”, explica Maria Amélia de Almeida Teles, coordenadora
da União de Mulheres de São Paulo. Segundo ela, os órgãos públicos de saúde
não dão a devida atenção a esse tema e acabam fechando uma porta importante.
“Muitos problemas podem ser decorrência de agressões, mas isso não é levado
em conta.”
A idéia de criar um protocolo, como propõe o manual, é atender sigilosamente
as vítimas e encaminhá-las para um centro de referência que daria
prosseguimento aos cuidados. A vítima poderia receber tratamento psicológico
e, se ela aceitar, seria encaminhada a uma delegacia para fazer a denúncia.
No mínimo, ela receberá um amparo emocional.
É uma proposta de prevenir um mal que atinge uma em cada quatro brasileiras.
Segundo outra estatística, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida na
sua própria casa pelo parceiro. Como as vítimas têm medo de continuarem
sendo agredidas e, ao mesmo tempo, alegam outros motivos para permanecerem
ao lado do agressor, os profissionais de saúde precisam saber como se
aproximar delas.
Mulheres sofrem até nos hospitais
Depois de 12 anos de convivência, dezenas de idas a hospitais e
prontos-socorros e nenhum boletim de ocorrência, Ana (nome fictício) decidiu
separar-se do marido. O que parecia ser a solução se tornou um pesadelo. Foi
acusada pelo homem, que a traiu com a vizinha, de ser louca. Ela ficou
abalada, entrou em depressão e chegou a procurar vários médicos.
Encaminharam-na a neurologistas, que lhe davam remédios controlados. “Eu não
vivia, vegetava.”
Felizmente, um psiquiatra surgiu na vida da baiana de 42 anos, ajudando-lhe
a sair do sofrimento. Ele descobriu o motivo das agonias de Ana e emitiu um
laudo falando do impacto da violência que sofria. Com o documento, ela
conseguiu a separação judicial e agora quer obter a pensão alimentícia.
Casos como o dela são comuns, afirma Alzira Rufino, da Casa de Cultura da
Mulher Negra. Daí, a necessidade de informar os profissionais a lidarem com
a questão.
Luta – A violência é ignorada até mesmo em casos de emergência. Há alguns
anos, Teresa recorreu a um pronto-socorro com o risco de sofrer um aborto
forçado. Ela chegou ao hospital em estado de choque, depois de correr
quilômetros para se livrar do marido armado de um facão. “Ele não queria que
eu ficasse grávida de novo”, explica ela, hoje com 55 anos e cinco filhos.
Conseguiu salvar os gêmeos, mas voltou para casa. “Era pancadaria, cachaça e
humilhação.” Hoje, separou-se do agressor e luta para ficar com a casa.
Casa de Cultura da Mulher Negra: (0–13) 3221-2650 ou 3223-2493
Secretaria Municipal de Saúde de Santos: (0–13) 3232-6464