Índio quer ensino superior e menos preconceito

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Publicada em 24 de junho de 2001
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
O cacique Kahtir está mais orgulhoso do que nunca. Líder de 4.442 índios da
aldeia Chapecó, em Santa Catarina, ele fala com entusiasmo dos seus três
representantes caingangues aprovados no vestibular da Universidade Estadual
do Mato Grosso (Unemat). “Eles foram lá e levantaram o canudo”, comemora o
cacique. A partir do dia 2, os três caingangues vão se juntar a outros 197
índios para dar início ao 3.º grau indígena. Numa iniciativa inédita, serão
oferecidos cursos de licenciatura exclusivos para formar professores índios
em nível superior. É também o passo decisivo para ser criada a primeira
universidade do gênero no País.
Os cursos serão dados no câmpus de Barra do Bugres, a 160 quilômetros da
capital Cuiabá. A idéia de reunir só universitários indígenas em salas de
aula soaria maluca até bem pouco tempo. No Brasil, há 3.041 professores
índios espalhados em 1.666 escolas. Estudaram com muita dificuldade o 1.º e
o 2.º graus. São leigos, termo usado para os instrutores sem diploma
universitário.
O cacique Kahtir, que significa “madeira verde” mas também é conhecido como
Orides Belino, sabe o que isso representa. Ele estudou até a 4.ª série.
Tentou ir adiante, mas não conseguiu. Restou-lhe o consolo de fazer seus
índios tomarem gosto pela educação. “Essa experiência própria me fez acordar
para essa nova realidade”, explica. “Vivemos numa sociedade que nos
discrimina por causa da nossa falta de formação.” Em 1994, os caingangues
conseguiram criar a primeira escola de 2.º grau dentro de uma área indígena,
fruto do esforço de Kahtir. Há 11 escolas de ensino fundamental, espalhadas
nos 15 mil hectares de Ipuaçú e Entre Rios.
Temas – A primeira aula do 3.º grau indígena na Unemat abordará um tema
particularmente interessante: a origem do universo. A teoria do big bang
será dada, mas não será a única. Ao lado da explicação de que a vida surgiu
de uma explosão cósmica, que resultou na formação de galáxias, planetas, da
Terra e do homem, os índios terão a oportunidade de dar a sua versão. Os
parecis dirão que surgiram da pedra. Os pataxós saíram de um imenso buraco,
que acreditam existir até hoje em Juacema, o Monte Pascoal, no litoral sul
da Bahia. Já os umutinas poderão dizer que a civilização humana existe
graças a um casal de sua etnia, que gerou filhos da sua e de outras raças.
Esse vai ser o tom das aulas para as 35 etnias presentes no 3.º grau
indígena. Um verdadeiro debate intercultural com os índios. Dos 200
universitários aprovados nas provas de março e abril, 20 são de outros
Estados e 180 de Mato Grosso. Maria Alice de Souza Cupudunepá, de 43 anos, é
uma das aprovadas pelo Estado matogrossense. Ela mora em Barra do Bugres,
próximo ao câmpus da Unemat.
Professora do ensino primário, Maria Alice dá aulas para 64 alunos da aldeia
Umutina. Sonha em criar turmas da 5.ª à 8.ª séries, para que os jovens não
parem de estudar e os adultos participem. “Educação não é só a sala de aula
para as crianças. Precisamos envolver também os mais velhos. A melhora só
vai acontecer com nosso aperfeiçoamento.”
O bacairi Edson Oliveira Santos, de 29 anos, dá aulas na aldeia Santana, em
Nobres (MT). Kulewâra, como é chamado entre os índios, considerou “um pouco
difícil” a prova do vestibular, que teve uma dissertação sobre a vida dos
índios. Mas garantiu que tudo estava dentro do conhecimento de seu povo.
Candidatos – A maioria dos novos universitários é, como Kulewâra, professor
em suas aldeias. Dos aprovados, 167 são homens e as idades variam de 18 a 50
anos. As aulas serão sempre em julho, janeiro e fevereiro, meses das férias
escolares. Depois de cinco anos, uma nova safra de professores de
matemática, ciências sociais e português será formada. Professores de outras
universidades brasileiras, como USP, Unicamp, Puccamp, UFRJ e UFPR, darão as
aulas, em português, para os índios.
Francisca Novantino Pinto de Ângelo, de 41 anos, a Chiquinha ou Nezokemaerô,
terá um papel especial. Índia pareci, ela será uma espécie de
professora-auxiliar. Formada em licenciatura de história, com especialização
em antropologia, Chiquinha preside o Conselho de Educação Escolar Indígena
do Mato Grosso. Ela tem a certeza de que só conquistou um diploma
universitário porque era filha de índios que trabalharam com o marechal
Cândido Rondon. “As universidades dos brancos ensinam como ser egoísta,
competir no mercado de trabalho e que só é melhor quem tem mais competência.
Para o índio, isso não importa. Valorizamos a coletividade”, explica.
Poucos Estados no Brasil preocupam-se, de fato, com a educação indígena em
todos os níveis. Em abril, a Assembléia Legislativa do Paraná aprovou uma
lei que destina 15 vagas nas universidades estaduais para índios
paranaenses. Mas eles terão de estudar com os brancos. No País, menos de cem
índios têm acesso ao ensino superior. Em São Paulo, o enfoque ainda está no
magistério. Em agosto, começa o primeiro curso de formação especial para 50
professores índios. Atualmente, as 700 crianças índias, de 7 a 14 anos, têm
aulas com instrutores leigos. Para piorar, em muitas das 21 aldeias
paulistas com salas, estas estão em condições precárias ou em construção.
A mesma triste realidade pode ser encontrada nas 649 escolas em tribos no
Amazonas, muitas feitas de madeira. No último Encontro dos Povos Indígenas,
no início do ano em Manaus, o presidente do Conselho de Educação Indígena do
Amazonas, Ademir Ramos, informou que a situação é crítica. Muitas unidades
estariam até ameaçadas de cair sobre as crianças.
Universidade – Em 1991, a responsabilidade pelo ensino nas tribos passou das
mãos da Fundação Nacional do Índio para as do Ministério da Educação. Pela
lei, deve ser feito preferencialmente por índios. A mesma lei prevê que até
2007 todos os professores dos ensinos fundamental e médio, incluindo os
indígenas, devem ter diploma universitário. Uma realidade longe de ser
conquistada. “Não faz muito tempo, a escola servia para catequizar,
civilizar e integrar o índio. Torná-lo um cidadão brasileiro”, critica
Chiquinha.
Uma universidade indígena, que ofereça outros cursos tão necessários aos
índios como de medicina, enfermagem, agronomia e direito, ainda levará um
bom tempo. “Estamos dando o pontapé para que daqui a uns 8 ou 10 anos
tenhamos uma instituição superior para os índios”, afirma Elias Januário,
coordenador dos cursos na Unemat, que contou com o apoio do governo estadual.
No total, Mato Grosso investiu R$ 3 milhões para criar o 3.º grau indígena.
O dinheiro será utilizado para pagar os professores que darão os cursos e
para financiar a viagem e hospedagem dos alunos. “Apesar de toda a
legislação favorável, esbarramos na falta de apoio às minorias. Muitos me
perguntavam por que colocar um índio na faculdade”, lembra. Essa é uma
dificuldade mundial. Só Nicaraguá, México, Canadá e agora o Equador possuem
universidades indígenas.
Manifesto – “Não queremos que nossas crianças sofram o mesmo que nós.
Cheguei a negar a minha condição de pataxó, por vergonha”, lembra Jerry
Adriane dos Santos Jesus, ou Matalawê, um professor de 25 anos. Esse índio,
aprovado no vestibular indígena, ficou conhecido nacionalmente durante as
tumultuadas comemorações dos 500 anos do Brasil.
Na missa de 26 de abril do ano passado, dias depois do confronto entre a PM
baiana e índios em Porto Seguro, Matalawê leu um manifesto em que pedia mais
justiça para as minorias. Entre as suas reivindicações, o pataxó falava em
educação. “Estamos numa sociedade que nos tira o sentido de grupo. A escola
vai permitir melhorar a nossa auto-estima.”
A aula inaugural em Barra do Bugres, que por conta da agenda dos políticos
ficou marcada para uma semana depois do início das atividades, terá a
presença de Marcos Terena, uma das maiores lideranças indígenas no País.
Segundo ele, o índio não pode mais fugir da educação.
É de Marcos Terena o ensinamento que servirá aos novos universitários, mas
também aos demais brasileiros: “O grande desafio dos povos indígenas no
século 21 é respondermos como conciliar tradição versus modernidade. Vamos
demonstrar que podemos ser índios, usando a arma da educação, sem deixarmos
de sermos índios, com todos nossos conhecimentos. Romperemos a muralha do
preconceito.”

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